domingo, 23 de março de 2014

Adeus, estrangeira



Vinha a ouvir no carro o Goodbye Stranger dos Supertramp e fui transportada para um outro mundo através daquela máquina do tempo sem sofisticação tecnológica que só a música tem a capacidade de proporcionar.
Às tardes remotas e frias de Vila Real onde o pináculo do dia era uma fatia de broa de milho com manteiga e um chá escaldante no intervalo do estudo. Ao Vómer e ao Etmoide. Que decorávamos invertidos para cumprir a troca cristalizada do interrogador no exame.  As viagens a Lamas d’Olo com a neve impregnada de “poesia genealógica” do Miguel Torga, com as suas fragas e giestas e socalcos. Tanto frio. A água passava ao estado sólido nas torneiras de manhã e dormia de barrete de lã, botas de lã e luvas de lã, só com o nariz de fora ainda assim a enregelar. E tudo isso era encarado com uma alegria, uma admiração encantatória. Uma puríssima fragilidade. Lembras-te? Mesmo que agora sejas uma pessoa diferente, com uma família muito mais completa, consegues recordar esse teu outro eu, tão vizinho, tão próximo, tão longínquo?
As carraças a invadirem-nos o alpendre como batalhão em marcha implacável e invencível. E agora, e agora? O Jordão a sorrir-nos caninamente, preso na corrente do seu destino, em frente à casa: desculpem, desculpem... E nós logo ali a travar a guerra da creolina, cheios de força, cheios de certezas e de produtos tóxicos.
The Logical Song, no concerto em Paris, num Domingo de manhã na cama, ainda e sempre os Supertramp. Sem coragem para me levantar e enfrentar a temperatura agreste contrariava estoicamente os lamentos da bexiga em contracção desesperada. Tudo era límpido. Tudo era claro. O Inverno, a roupa para lavar no tanque de água fria, o Alvão ao fundo sempre à espreita, sempre à espera. Como um amigo seguro de braços fortes e aconchegantes. Mesmo que cobertos com neve.
Sim, lembro-me ainda e bem, apesar de ser outra pessoa, e ter outra família, mais completa, mais segura. Lembro-me desse meu outro eu. Tão vizinho. Próximo, quase aderido, colado, de raízes entrelaçadas no que sou agora. E no entanto... longe, longe, como num tempo estranho, num país diferente, rodeada de uma outra luz.
E aquela canção a mandar-me recados a fazer profecias que recusava ouvir ou entender.
Não queria partir, dizer adeus, seguir.

Goodbye strange it's been nice, hope you find your paradise
Tried to see your point of view, hope your dreams will all come true
Goodbye Mary, goodbye Jane, will we ever meet again
Feel no sorrow, feel no shame, come tomorrow, feel no pain
Sweet devotion (Goodbye Mary), it's not for me (Goodbye Jane)
Just give me motion (Will we ever) and set me free (Meet again).