sábado, 30 de março de 2019

Inequação




Um jardim a incendiar atalhos
no banco acanhado
sob o céu público

árvores avaras
de esconderijo escassas
olhares sub-reptícios
um alongamento vertical
quando o mundo ameaça acabar
num ápice
a pele desadequada garrota
o membro urgente
e o tempo coagula por inteiro
na espera alucinada
o flagrante delito  prestes
a desnudar-se
na espera  a pele árida
congela de medo
os olhares cortantes
o mundo prestes a terminar
o céu a ameaçar incêndios
o banco acanhado a girar
o alongamento vertical
traindo a frequência do pêndulo
pulsação exponencial
num ritmo preso
as minhas mãos terapêuticas
libertam por fim a pele
desadequada
o céu já flui na tarde longa
o vento curativo apaga a luz
o mundo ainda tentando acabar
numa profecia mal cumprida
o mundo a forçar o fim
no banco acanhado de jardim
o mundo a borrifar-se
no festina lente







sexta-feira, 29 de março de 2019

Assimptota

Foto de Jon Tyson no Unsplash






Quantas vezes falhaste
tentando dissecar
a raiz de uma ideia
as vezes que glorificaste
a queda no fosso banal:
uma humilhação épica

Se pudesses ao menos
parar a travessia
dessa velha estrada

Uma rajada de vento
põe a nu um homem a menos
junto aos alicerces da cidade
devorada pelo fogo
distingue-se claramente
a sucessão central
no pelotão da frente
calha a ser uma baixa
na listagem masculina
um curto saque
um fruto falso
um golpe fundo
na bissetriz do conto clássico
entornado numa escola
de intervalos

Os poemas incomunicáveis

E tudo o que deixaste a fermentar
não passou de pão de sofrimento
tábula rasa
que se foi inundando
por cálculos errados
à hora certa
convertidos em estatística
de pequenos números
uma pedrada no caos
uma abstração puída
três impiedades
idolatria
e trinta cartas de volta
um volte-face
coisas vãs
calvário
à saída ao arraial
ferrão
tombo final
parágrafo

Talvez um dia
perto do infinito
se desfaça o desencontro                             
batia o meio-dia
e picos
um nada ficou
como Dante
Deus o tenha
entre tantos
























quinta-feira, 28 de março de 2019

Cinemática

Pintura de Leonora Carrington



Um homem a cavalo
há-de parecer
sempre
um herói o homem
a cavalo pode ser
um macho efémero
o anti homem-elefante
o homem-bode
até fazer vibrar a boca
numa catarata
de blasfémias
ex-herói
o homem-boi
as palavras inundam as máscaras
rasgando os disfarces
à bela e clássica maneira
de Agatha Christie
o homem fácil
do herói sobrou apenas
uma montanha cevada
a feromonas
as palavras deflagram
a jugular ao cavalo
mas o corpo  não vê para além
da inocência do corpo
jura em vão renunciar à subida
no exacto momento do declínio
de Sísifo a vocação
aos solavancos
demora sempre
profeticamente
uns parcos meses




terça-feira, 19 de março de 2019

Matadouro 5




De Lot lembramos
a mulher
volúvel que ousa
olhar para trás
e vê a centopeia fatiada
de todos os momentos
no Tempo

A mulher de Lot
visita regularmente
as crianças cruzando
as trevas a caminho
de Jerusalém

O nome da mulher
de Lot não faz
parte da história
ela é coluna
de sal conserva
na pupila a imagem
da cidade destruída
pela chuva de enxofre
e fogo decisão
dos céus

só a eloquência
do sal pode dizer
o silêncio da cidade
arrasada pelo arbítrio
terreno esse braço
de ferro ganho
na imaginação
do Homem

A mulher de Lot
senta-se à porta
da cidade sente
o cheiro a rosas
e a gás mostarda
ouve a conversa
cristalina dos pássaros
coluna de sal
é uma mulher-memória


sexta-feira, 15 de março de 2019

confessionário





O poema tudo acolhe

o desabafo
do trolha a locução
do talhante o deslize
o obsceno da beata
o transe ocasional
do amante a preguiça
o poeta ocioso

tudo lhe vem
ao seio
tudo lhe vai
à boca
de cena sai
e escorre

quinta-feira, 14 de março de 2019

Espaço Cidadão




Dona Dina faz o gosto
ao dedo e mostra
o pulso na cadeira
no seu compasso
de espera frente
à segurança social
doi-lhe como um raio
irradia a descascar
metáforas

manejando a panela
de pressão braço
acima ombro arcaico
baço resmungando
o diapasão
de um carapau médio
enterrado na goela
obrigara a visita
ao Santa Maria

médicos avisados
dão-se ao luxo
no Hospital da Luz
onde a conta
é preço certo
e anda pela hora
da morte adiada
ufa ainda não foi desta

os números deslizam
devagar as senhas
progridem no trajecto
da obviedade passa
uma jovem inquieta
é jornalista Dina
avança do desporto
e das bonitas hoje
em dia até essas
são inteligentes

mudado que tudo está
Salazar vem à baila
raro o português
ou portuguesa
que não carregue
(Senhor) às costas
o passado