sexta-feira, 26 de abril de 2019

Vanitas

"Still Life With a Skull and a Writing Quill", pintura de Pieter Claesz



O vapor de água sempre
foi a melhor cortina
tapar sem fumo é superior
 à simples espera de um olhar
precrustante a antevisão
do que está por vir
tudo o que não sei
já tenho imaginado
o espectaculo é
um grande limão solitário
onde as guitarras gemem
contra veias e ampulhetas
a bolha um destes dias
rebenta


quinta-feira, 25 de abril de 2019

Insónia

Imagem de 1973, do filme animado francês, La Planète sauvage
 (Fantastic Planet), realizado por René Laloux.




Paredes ao alto
coração aceso
um chibo
a correr na noite
contra a vidraça
trémulos mil
milhafres fluídos
atrapalhando
nos estores
a fúria

frágil o dique
rebenta
o aneurisma
à solta minotauro
correndo contrário
ao ponteiro do relógio
a fome sinistra
de chegar
a nenhum destino

no final
de ferir o céu
e abalar a terra
um silêncio
que fulmina
um anátema

conto sílabas
como carneiros
engomo frases
junto ao colarinho
sinto o pulso
à carótida o teu
ritmo






terça-feira, 16 de abril de 2019

categórica



durou um inverno só
a colecção memorial
de altos cedros
e baixos nomes

agora
antes da saliva o som
comove-me a descrição
da zona franca nativa
a palavra donairosa
o arremesso da voz
reverberando
contra o peito
uma palavra categórica
eis a questão
penso insisto
no discurso
desbravando cornucópias
ao toque de uma geometria
descritiva audível
variante do vocábulo singular
a palavra detonada
o arremesso da voz

depois
o silêncio
tradução de Aquiles
quase flecha
uma incapacidade
na queda
um calcanhar







domingo, 14 de abril de 2019

Impedância


Fotografia de Francesca Woodman




Toda a constrição
tem o seu cataclismo
a sua fuga em alvoroço
remorsos obsoletos
impedância por oposição
dizia naquele tempo
o rosto calafetado
por cada ponto de confluência
sangue em derrame
na corrente desenfreada
o rio que tudo alaga em verde
musgo no fundo de olhos puros
depois no intervalo do espanto
descobre-se a descida
ao poço de algemas
pulsantes sobre um chão
de mescal e miosótis
onde reina impávida
e severa a besta
adormecida e castigadora
vai fazer pesar um excesso algas
nas cavalgadas noturnas
cordas extensas
rasteiras plenas
travões
o rosto
desistindo da descolagem
o seu último desígnio

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Tangente de Declive Mínimo


Guadi, Barcelona: A Sagrada Família




a infinita ironia de um nome
nas borras do café curto
corço de cascos barrocos
polvilhado de açúcar
num templo expiatório
de pináculos jesuítas
a respiração nos mínimos
o raspar dos cascos no chão
recebendo os vapores
da lixívia que viaja
da sanita aos mármores
a mão mergulhada em grão
frescos no tecto
um leito de rio seco
sob uma nesga de céu
musgos nas alpondras
e um ranger de cintura
sobre o silêncio imaculado
da cama nada a dizer
o tempo condensava-se
nas paredes
da Sagrada Família
apenas a magra abside
e a infinita ironia de um nome