terça-feira, 22 de outubro de 2019

Homeopoesia




As palavras
rarefeitas
afogadas


num mundo
de água


dissimulando






vários




nós





dão-nos





um




murro




no












estômago

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

terraplanistas




A Terra é plana
plana como a palma
da minha mão,
vês?
Podemos cair se
corrermos aflitos
mundo a fora
de mão dada
se sonharmos agitando
inadvertidamente as pernas
somos adultos
adultos que dedilham
no adultério
em intervalos dos dias
difíceis
soam sinfonias de antagonistas
que sobem pelas chaminés
e se propagam como imitações
de andorinhas
andorinhas com plano de voo
o mundo é um disco
um milagre suspenso
que ainda não acabou
por puro milagre
somos adultos
adultos que já foram
pequeníssimos homens
vivendo nos espermatozoides
foi só entrar no ventre e crescer
crescer como quem não conhece
as fronteiras do Universo
como astronautas enlouquecidos
pendurados no tecto por araldite
a fingir de morcegos cegos
andorinhas de imitação
que recusam ver:
a Terra é uma frigideira
e o sol uma garrafa
de vinho branco esporádico
que queremos beber
até à exaustão
dá-me a mão
sonhemos















segunda-feira, 14 de outubro de 2019

não vais morrer


Peça de Jan Rafman



Podes ficar descansada: não vais morrer, calma.
Essa que vês aí será resgatada.
Morrerá outra pessoa, muito diferente da que se apresenta diante de ti. 
Esse rosto não vai entrar num caixão, não vai ser o banquete num festival de vermes.
O pó não será o seu destino.
O que vês agora no espelho, daqui a uns anos, terá dado lugar a uma outra imagem.
A figura reflectida, vai transformar-se noutra, como uma lagarta a metamorfosear-se subtilmente  noutro bicho ainda mais indiferenciado e neutro: uma mulher envelhecida.
Essa outra pessoa, por sua vez, cederá o lugar a uma outra que fará o mesmo a uma seguinte e assim sucessivamente.
Até um dia.
No final sobrará a testemunha da morte.
Não serás tu.
Com um bocadinho de sorte estás a salvo.
Foste ilibada.
Só tens de desaparecer silenciosamente, bem devagar.
Começa, pois, agora, a ir-te embora.















quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Férias




Numa terra sem tempo
bisturis
utopias
a pele veste
o silêncio inteiro
o vento  morde
os cabelos
como uma gaivota
doida e atrevida
adivinho  por entre
a longínqua  solidão do mar
na companhia dos dois cães
e um  sumo de beterraba
o remédio
para a inevitável renovação
do sangue

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Aparição

Foto de Tamsin Swait


Era de noite
e não fui autorizada 
a contemplar o teu corpo
como seria devido

o tempo breve foi 
avidamente gasto pela pele
a invadir a pele

o olhar ficou em falta
não se permitindo demorar 
nos contornos da carne

todas as imagens 
foram fotografias 
subtraídas à memória

foi sempre de noite
mesmo quando havia Sol
cada fugaz encontro 
era um retrato 
roubado à investida

entender o fulcro 
da aparição é recorrer
ao arquivo 
da polpa dos dedos

ficaram marcados 
pelo relevo dos ossos
emergindo à superfície


o tacto resgatou 
o território do diálogo
a confirmação de uma escultura
adivinhada na escuridão

um escudo no quiasma óptico
máquina de filmar sem luz
um sequestro irreparável
de negativos 
ondulados pelo calor


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Valete de Paus ou Espingarda? (isto de não ser amado é fodido)

Valete



O verdadeiro artista faz o que quer, escreve o que lhe vem à cabeça, inventa o que a sua liberdade oferece.
Estamos todos de acordo: não há machado que corte a raiz ao pensamento, como dizia Carlos de Oliveira.
O pensamento liberta mas também pode prender. Todos construimos as nossas prisões, as nossa fugas, as nossas viagens. Somos feitos de água e ferro. Deslizamos e vamos ao fundo. Dizemos coisas.

No meio da polémica "Valete versus Feministas" senti necessidade de analisar a letra da obra de que tanto se fala.. A que ele nega ter mensagem para depois vir a admitir que a dita só se revelará no fim de uma trilogia de músicas.

A liberdade passa regularmente por aqui. E hoje vamos dedicar a nossa atenção à letra do BFF de Valete.


Foda-se a sério mano?
Não te ia mentir, mano!
Foda-se!
Ya, não te ia mentir
'Tá-se bem, eu vou ver isso! Tchau ai mano
Ya Tchau



Vê-se claramente que são dois estudantes de filosofia a falar (o videoclip esclarece que a conversa é telefónica o que prova que são alunos aplicados, até à distância se dedicam à matéria)
Discutem Kant, obviamente.
No meio do seu elaborado sistema metafísico Kant "perdeu" algum tempo a discutir sobre o valor da “mentira por propósitos altruístas”:

“Imagine que esconde um amigo inocente na sua cave. Vem um assassino à sua procura para o matar. Pergunta por ele. Deve mentir para o salvar?”
A situação inventada por Kant era esta e a resposta dele é “Não”.
Argumenta que, mentindo, o assassino iria embora, continuando a sua busca e, entretanto, o amigo sentindo-se em perigo teria fugido pelas traseiras e inevitavelmente eles iriam dar de caras um com o outro. Parece estúpido e várias pessoas sérias conjeturaram que o senhor nesta altura do campeonato estaria já com Alzheimer.
Mas, depois de bem meditarem, outras pessoas concluíram de modo diferente. Ou seja, o que Kant descobriu (sem ouvir Rap nem ter saído de uma pequena cidade da Prússia toda a vida) foi que o poder que temos sobre as consequências das nossas ações é muito pequeno. Não controlamos nada do que acontece. Por isso mais vale cumprir as regras. E dizer a verdade.

Portanto é isto que o estudante faz ao telefone: diz a verdade ao amigo na esperança que tudo corra pelo melhor. Mentindo talvez o desfecho tivesse sido bem mais trágico. Mas não quero dar spoilers...



Com o coração golpeado gravemente
Ansiosamente ele põe a chave na fechadura
Roda a chave para a esquerda ele roda suavemente
Abre a porta e vê a casa toda escura
Do quarto ouve um som que parece Jovanotti
Nah, afinal é Luciano Pavarotti




Aqui nitidamente começa a mensagem de preocupação social implícita na obra musical. Trata-se um homem com claros problemas auditivos. Ele confunde Pavarotti, um cantor de Ópera com Jovanotti, um cantor pop e de rap. São ambos italianos e isto prova que a personagem desta história está a usar um aparelho auditivo. Valete a chamar a atenção do público para este flagelo que é a venda agressiva, e sem regras, destes aparelhos sem um correto diagnóstico dirigido à patologia de cada um. Isto tem levado a um aumento exponencial de queixas como dizia um senhor da DECO que eu vinha a ouvir na Rádio no caminho para aqui. E estão a ver as consequências, baralhar Pavarotti com Jovanotti não lembra nem ao diabo.

Por isso, malta, não façam mau figurino: para melhor ouvir Valete  escutem o vosso otorrino.



Para não fazer barulho ele anda bem ligeiro
Sorrateiro enquanto anda assenta o calcanhar primeiro
Tem a caçadeira no armário do escritório



Muito bem: a caçadeira está no armário no escritório, fechada, para segurança da família, segundo as regras da lei da caça. É muito importante esta medida para evitar acidentes envolvendo crianças, seres ingénuos, que tomam as armas por meros brinquedos, podendo aleijar-se a sério. Ninguém quer essas tragédias.


Instinto predatório para mandá-los para o crematório

Preocupação ambiental explícita. A cremação é o processo de transformação do corpo sem contaminação de agentes patogénicos nem resíduos sólidos ou líquidos, só se liberta cálcio e potássio.
Ainda por cima há um problema de falta de espaço nos cemitérios: Valete bem.


Pega na arma com uma postura insegura
E a tremer empurra para a direita a patilha de abertura



Mensagem política: virar à Direita é perigoso e mete medo.



Bem insano ele vai entrar sem plano
Um cartuxo em cada cano e cerra o semblante
Puxa a patilha e pensa no amigo de infância
A seguir engatilha a arma para a trilha de vingança
Faceta de louco põe a mão na maçaneta
Ele quer matá-los e fazê-los apodrecer numa sarjeta
Revolta macabra ele quer ver a cabra morta
É a reviravolta, respira fundo ele abre a porta



Crítica à política de detenção de armas nos EUA onde até os loucos podem possuir armas e daí o absurdo número de massacres de pessoas.




Uma vida radicada numa entrega tresloucada
Uma vida debitada, dedicada a ti
O esforço que fiz para teres a vida acautelada
Porque trabalho como um escravo para que não te falte nada

Senti-te estranha, senti o clima alterado
Eu devia ter calculado que era tudo falseado
Relação já não tinha chama
Mas nunca pensei que acabasses com essa doninha na minha cama
Forreta, era o que ouvia nas tuas bocas
Quando fui eu que comprei as tuas joias, as tuas roupas



Atentai bem nestes versos, jovens, que neles reside um grande ensinamento de Valete: o amor e a lealdade não correspondem a qualquer valor pecuniário.

Precisam que esmiúce mais um pouco esta noção?
Amor e lealdade não se compram. Não se compra uma pessoa. Portanto não se pode vir depois cobrar o carcanhol investido quando as coisas dão para o torto.
Aliás, já vai sendo tempo de os moçoilos perceberem que não têm de sustentar as mulheres, elas bastam-se a si próprias, o mundo do trabalho já não lhe está vedado como nos tempos de antanho.
Portanto, jovem: entre uma rapariguinha do shopping bem vestida e petulante e uma moça que tem de manter dois empregos para sustentar os filhos do casamento anterior escolhe a segunda, porque ela nem tempo vai ter para ti quanto mais para o teu melhor amigo.

E para as garinas: não têm de servir para serem servidas. Vocês bastam-se a si próprias. Estar na dependência financeira de um homem é uma perda de autonomia limitante que nos dias de hoje não faz sentido, nem sequer é vantajoso. Libertem-se da educação machista que tiveram.

Acabo de ler um clássico da literatura, do Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde esta problemática é desenvolvida quando ele nos conta a primeira paixão da personagem, ainda muito jovem e ingénuo: a bela Marcela. Uma moça que tudo fazia em troca de joias caras. Só muito mais tarde o incauto apaixonado se dá conta que era a cobiça e não o amor que movia a donzela.

Por isso, amigos, leiam os clássicos, releiam-nos, ou então atentem no que diz Valete.




Puta, cona alargada, pura insana
Encharcada de moralismo sempre armada em puritana
Agora vais sentir a sequela
Com a caçadeira enfiada na tua goela
A bala a perfurar a traqueia



Outra dica importante de Valete para os adolescentes: não comparem pilinhas uns com os outros. São brincadeiras que parecem inconsequentes: ai e tal, deixa cá medir a tua e a minha, a ver quem tem maior e assim, mas depois aquilo fica a germinar na cabecinha, na de cima, bem entendido: o nosso melhor amigo é mais abonado que nós. Vai daí um dia acreditamos que a cona da nossa namorada fica alargada só porque levou com um mangalho maior que o nosso, e não fica, que o criador fez o músculo vaginal com uma elasticidade a toda a prova e de modos que ser grosso ou fino, ser curto ou comprido o efeito no feminil saguão é o mesmo.



E o teu corpo como plateia enquanto a morte fraseia:



Bela metáfora, ironias à parte.



Nós éramos únicos, os últimos moicanos
Melhores amigos desde os 8 anos
Éramos os putos das trapaças e chalaças e toda gente
Com graça chamava-nos de comparsas
Laço alquímico, sentimento mítico
Dei-te amor bíblico tu eras só um cínico




Amor bíblico é um sinónimo de sexo e assim estamos perante um momento Brokeback Mountain o que só prova que a homofobia não está a passar por aqui. Valente bem.




Lembras-te do nosso pacto de sangue
Se fosse preciso era morrer um pelo outro como num gangue
Para a minha mãe eras como eu, deu-te o me'mo trato
Sangrámos juntos, comemos do me'mo prato
Quem diria que iria ver-te com essa fingida
Quem diria que seria o teu melhor amigo a tirar-te a vida
Vosso casamento no inferno é o que eu prevejo
Puta, dá-lhe um beijo e pede um último desejo
Vê a gruta do abismo na viagem conjunta
E a bruta pena capital, o karma da vossa conduta




Momento "abaixo a xenofobia": se na Arábia Saudita o adultério é crime e aqui em Portugal, na mente de muito boa gente, também deveria ser, é porque somos todos irmãos, não?

Falemos então de Monogamia.
O Valete tem uma música cujo título é: Monogamia. Fala de uma relação que o Valete tem com a Liberdade. Em oposição à Liberdade existe a Religião. E o nosso artista é um fundamentalista desta Monogamia: não troca a Liberdade pela Religião nem para dar uma escapadelazinha sequer. E tem toda a razão. Haverá melhor Monogamia?

Desconfio que a protagonista feminina do BBF é uma fã incondicional do Valete. Somos todos, não é verdade?


Tiago- “Uhn Uhn”
Ana- “Ei então o que é que foi?”
Tiago - “Foda-se, pesadelo do caralho!”
Ana - “Estás todo suado!”
Tiago - “Foda-se!”
Ana- “Vai Tomar um banho!”
Tiago- “Ya!”



Momento de defesa da saúde pública: o suor é um meio ideal para a multiplicação de bactérias. Tomar banho dá saúde e faz crescer.


Esta é a minha interpretação do texto do artista. Se ele não gostar tenho outras. (nah, estava a brincar.)