sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

tio Alfredo

pormenor de decoração na Pensão do Amor



O tio Alfredo era só putas e vinho verde. Qualquer tipo de vinho aliás, que a sua esquisitice não se estendia aos licores de Baco. Trabalhar não era com ele. Bonito demais, engatava quem queria. Para mal dos seus pecados também haveria de engatar quem não queria.
Um dia depois de cravar a  irmã mais velha em dois contos de réis, saiu para a farra, frenético. Seduziu, incauto, um travesti. Quando descobriu o equívoco partiu para a violência esquecendo-se que não era com uma mulher que lutava. Não foi suficientemente forte para superar os músculos másculos que, de forma aviltante, desprezara. E uma queda abrupta da escada da pensão levou-o a um longo internamento no Egas Moniz. Era assim derrotado pelo preconceito, um vencido da homofobia. Ao traumatismo craniano recente juntou-se a loucura congénita e um belo dia lançou-se de uma janela do edifício para o meio do chão.
O tio Alfredo, de pélvis partida, ofereceu-se a si mesmo mais um ano de hospitalização. Jamais haveria de largar a cama.
Passaria para a casa de repouso onde espalhava o terror pelos velhinhos espancando-os até partir ossos ou fazer sangue.
Morreu aos cinquenta anos da funesta doença cujo diagnóstico permaneceu obscuro.
Ainda hoje, em eventos familiares, quando olho os rostos à mesa, ainda consigo ver, mais diluído, menos diluído, o tio Alfredo entre nós.

crime sem perdão


Camille Claudel, The Implorer, 1899. Bronze, France, private collection.


Se
o olho cobra
o olho,
se
o dente  dobra
o dente,
quero
o amor como vigança
o amor como sentença
do crime sem perdão
agravado 
de palavra,
nome e nervo.
Gratidão.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

inimigo

Ártemis, deusa grega da caça e da Lua



Sou o inimigo.
Surpresa
na trincheira negra
apesar do tricot
telepático
topo-te à légua
escolhes ignorar
a bandeira da paz
cegueira branca
lês claramente
os meus lábios-bala
e ainda assim recusas
a lei inerme.
Sou o inimigo.
Não te renderás muito
para além
da minha pena,
o teu prisioneiro és tu.





UM POEMA DE JOAQUIM MARQUES

D is for Devil, Edward Gorey



Joaquim Marques, 94 anos, acerca da tragédia que se abateu, há muito tempo atrás na sua aldeia, sobre um casal jovem que tinha por hábito dormir com o bebé recém-nascido na cama:

No lugar das Martianas
o desastre aconteceu
debaixo do Escangalhado
o Evaristo morreu


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

cabras

Egon Schiele, Auto-retrato


Cansada das cabras e conas
dos respeitáveis escritores
notabilizados,
obsessões de rebeldia serôdia,
sacos de sémen
e culpa
exibidos
num longo desfile
de primorosas páginas.
Cabras e conas,
denúncias de frustrações
mal amparadas,
murros escritos,
tiros falhados
de pontaria zarolha.
Cansados de cabras e conas,
casados com cabras,
sem cona,
no desamparo
da recusa do desamor
como quem procura,
e não encontra,
cama para morrer.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

exercício de ausência




criei-te
à tua imagem
num exercício
de ausência

sem cruz
sem corpo
sem código
sem consolo
sem redenção


a oração é o poema
roubado ao arquivo
num inferno
de indiferença.

e vem-me uma fé,
um desejo
de fuga ao castigo
pela hipótese
da tua inexistência

sábado, 17 de janeiro de 2015

duas vias

Noite estrelada sobre o Ródano, Vicente Van Gogh



Há buracos na noite,
pontos de fuga,
alçapões,
olhos 
que pulsam.

Há feridas acesas
no céu
em sangue
como riscos na carne,
penetrações.

Iluminam-se ratoeiras
superiores,
corações ao alto,
caminhos de duas vias,
escapes
ou prisões.








quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

revólver

Natalie Wood photographed  by Raph Crane for Life Magazine, 1956



Que a minha boca
seja um túnel
como o largo
cano
do revólver.
Com
uma só palavra
repetida
inequívoca
escondida
na culatra
contra a cabeça
dura e nua
tenta furar
fura
fura
cai cartucho
mais cartucho
no chão
inchado
de epístolas e pústulas.
Uma palavra pequena
sempre em frente
nada
pára
o cão
engatilhado.
Uma palavra categórica
inscrita no osso
do crânio.
Uma palavra singular
pode parar o mundo
só não há-de parar
o sangue.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Assassinos entre nós





Leio, hoje, um dia depois dos assassinatos de 12 pessoas no Charlie Hebdo, comentários (tantos!) nas redes sociais a tentar justificar a carnificina. Dizem-me, pessoas, que até aqui tinha em conta de sensatas, que nada é a preto e branco, chamando a atenção para os cinquenta tons de cinzento.
Ora se os cinquenta tons existem, não haverá dúvida que sim, não deixa de haver por isso a cor branca e a cor preta.
Este caso é todo a preto e branco. Quem não vê claramente os dois tons antagónicos está mal das vistas, deve mudar de lentes ou de oculista.
Nada, nada, mesmo nada pode servir de justificação, álibi ou atenuante a estes assassinos.
Os jornalistas escreveram. Desenharam. Nada mais.
Se alguém se sentiu ofendido deveria ter agido em conformidade.
E qualquer pessoa de bem, bem integrada em qualquer Estado de Direito do mundo Ocidental e do mundo Islâmico sabe que para ofensas há queixas em Tribunais.
Existem muitas religiões no Mundo. Existe até a possibilidade de não se ter religião nenhuma. Uma religião pode ser a coisa mais sagrada do Mundo para uma pessoa e ser lixo para a pessoa da casa ao lado, que pode ser crente doutra religião ou seita, ou nem sequer acreditar em nada. (podem repetir a frase substituindo a palavra “pessoa” por “ “povo” e a palavra “casa” por “pais”). À mesma terão de se suportar. Coexistir. Caso contrário não haverá futuro para ninguém (se fizerem questão substituam a palavra “futuro” por “salvação”).
Voltemos ao caso concreto: os jornalistas assassinados em algum ponto, ou de alguma maneira, impediram a liberdade de culto dos assassinos? De alguma forma impediram os assassinos de acreditar no seu respectivo Deus? E os assassinos, de alguma forma impediram os jornalistas de expressarem a sua opinião?
A resposta é óbvia: sim os assassinos faltaram ao culto no dia dos crimes, foram impedidos de rezar. Por eles próprios. Parece que, afinal, tinham mais que fazer.
E os jornalistas foram impedidos de escrever. De desenhar. De respirar. De viver.
Onde está o branco? Onde está o preto? Consegue focar os olhos?