segunda-feira, 31 de março de 2014

Febre de Inverno


Uma Carta

Há muito que não te escrevo mas não tenho encontrado forças nem disposição para palavras. Ainda para mais escritas. Dão trabalho e dores de cabeça, estas putas. Custam a encontrar e mesmo depois de caçadas parecem enguias escorregadias e remexidas. De modos que tenho vindo a adiar. Mas como hoje nem sequer me dói as costas por aí além resolvi dar dois dedos de prosa contigo. Sinto a tua falta. De falar contigo. De pensar contigo. As horas que passámos analisando a vida foram tantas que todas juntas seriam anos. E isso ajuda muito. A suportar as maleitas que o mundo nos lança. Porque lança e não me venham com tretas de que somos nós a pedir porque muitas vezes tudo se passa quando dormimos. Como daquela vez em que me levantei para ir trabalhar e o meu carro estava sem gasolina. Gasta na farra da noite anterior pelo estroina do meu marido. E eu a sonhar com os bailes da corte de Versalhes. O que pedia nesse momento era alegria e colorido e jardins e cedros altos. Por isso me consolava tanto dividir as minhas insignificantes desgraças do dia-a-dia contigo. E também as grandes catástrofes. Os nevões, os enterros, as manifestações de protesto político, a correria pelas igrejas da terra à procura do Santo António para oferecer o cravo, as malgas de tripas, as garraiadas, o Gato das Botas Altas, a música clássica no palácio e as palestras.
Riamos de nós mesmas e tentávamos descortinar quem tínhamos sido nas vidas transactas. E o que seria de nós. Estávamos a enviar mensagens para o momento de agora. E podemos responder para lá. Divirtam-se. Aproveitem e não maldigam nem por um instante o enredo da vossa história. Porque aí tudo é forte e belo. As pedras graníticas e o brilho dos astros é vosso.
Então por cá vai tudo andando tão devagar que é como estar parado. Quando algo se mexe é para derrocar. Melhor é a imobilidade. Ter gesso nas pernas até à cintura para nem sequer nos levantarmos da cama. Mas isto sou só eu a descarregar. Tu vais bem e folgo muito em sabe-lo. A tragédia deu lugar à boa-nova. Fico muito feliz. Ao menos uma de nós tem motivos para sorrir.
Agora tenho de ir pastar o carneiro. Não pára de me mordiscar a toalha de mesa. Vou passear para uns maninhos aqui ao lado de casa.
Fica na paz dos anjos e um grande beijo da tua querida irmã que te adora.

DESPERDÍCIO


Redondo é o mostrador do desperdício,
essa montra demoníaca
de filigranas finamente eficientes
na demonstração da fuga.
Cada movimento
uma dissipação,
uma perda irremediável.
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo do desperdício
és um dos infinitos olhos de Deus,
delirante de riso com
os nossos ademanes
enquanto as pernas marcham
e as penas murcham
por não sabermos voar.
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo do desperdício
quanto tempo terá a minha eternidade?
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo do desperdício
quanto tempo tenho para perder?
(A que horas vens?)
Para mim,
ainda que seja tarde
será sempre cedo.

BOLO DE FARINHA DE MILHO


Era o bolo da minha avó,
um mito,
um misto de memória nostálgica,
tradição,
bomba calórica
(quatrocentos grama de açúcar).

Pede cinco (um número invulgar de)
ovos.

A farinha foge à regra (do trigo),
o perigo está no lume
que queimará em exagero
se for alto.

A manteiga dança em proporção
elegante com o cereal:
cento e vinte cinco grama de uma
com mais uma dezena do outro.

O segredo vai todo
para a protecção da forma
direita e lisa,
barrada com margarina.
Demanda também uma folha
de papel vegetal que
se quer untada
ainda generosamente,
tarefa que sem carinho
não alcançará o objectivo.

Nos casos de sucesso
é uma delícia que se come húmida
(pelo menos) na parte de baixo.

O CÃO

Quero ser o teu cão
contente,
correr pela casa
procurando a tua sombra,
ambicionando a cova
do teu colchão silente.
Quero ser o teu cão,
galgar as escadas da entrada
sempre que te vejo à porta
num arfar desmedido
quase rebenta a aorta
de quem não contém
a pressa
de se engalfinhar nas tuas
pernas
e entregar minhas carícias
subalternas.
O teu cão complacente,
o chão, o apoio,
o conforto, o meio
para chegar
mais alto e mais longe
nessa doce indignidade
de nem reparar
em quem é tão
baixo e pequeno
e com a língua te unge.
O teu chiuaua de circo
pateando as patinhas
da frente erguidas
num frenesim
de alegria, de pedincha
por um pouco de atenção
de toucinho, de courato
de um pingo de vinho
para que me esqueça
que sou cão e sou rato
incapaz de morder
a menos que alguém me peça
com ternura e carinho.


À PORTA


À porta
estou à porta,
opaca
impenetrável
e lá dentro tanto cinema
ou um pouco da tua vida.
Chega-me uma palavra
deste lado da porta
e uma palavra é tão pouco,
tão árido,
que não chega
com tanto cinema lá dentro
ou apenas um momento
da tua vida.

sábado, 29 de março de 2014

Pai e Filho



Meu pai dê-me uns vinte alqueires de pão
Ando trabucar pró ano ter cabonde
Lavro como mouro, hei-de ter bom grão
Empreste-me, venda-me, que responde?

Cuidas que te sustento a familagem?
Casaste com a fome linda, pirangão!
A minha casa não é estalagem
Tens fome vai roubar, filho dum cão.

Casei-me. O que está feito, feito está
Tenho mulher, sogra e o irmão dela
Empreste o pão, não se arrependerá
Para a sua fortuna é bagatela.

Tens vinte centos de mil réis no papo
Que gastei a fazer de ti estudante,
Larápio, bajoujo, humano farrapo!
Querias bagalhoça, que desplante!

Unhas-de-fome, judeu de uma fona
Pensa que o leva todo pró inferno?
Que lhe dê uma febre nessa mona
E vá pró purgatório sempiterno!






La donna è mobile



A mulher é volúvel
Como a pluma ao vento;
Tão depressa é afável
Como muda seu intento.

O turco e o magiar,
O rico e o pobretanas,
O velho lobo-do-mar
Mudo ou doidivanas;

O alfaiate e o pastor,
O esquimó e o cigano,
O saloio e o doutor,
O sisudo ou magano

São de acordo na ideia:
Mulher é caprichosa,
Quer seja bonita ou feia
Amante ou boa esposa.

No entanto não é feliz
O homem mais sabedor
Que do seu seio de actriz
Não beba o doce amor.

sexta-feira, 28 de março de 2014

CARTAS

Há dias em que não visto bem o branco, o poema não me vai bem na cintura como aquelas saias pingonas de um lado que deixam a perna contrária à mostra.
Há dias em que o poema sabe a cigarro estragado,a nicotina adulterada por demasiado alcatrão.
Dias de tamanho frio que só as cartas agasalham. Essas que me fazem acordar a meio da noite na urgência de serem enviadas e lidas. Essas que profissionalmente te ceifam o silêncio.
Há dias em que só uma palavra basta.
E quando vem dilata-se a prolongar a fome.

THE WIRE



The Wire é uma série de Tv que aborda temas sociais de forma complexa e profunda.
Desde o mundo da criminalidade associada às drogas, a corrupção na política, a falência do sistema de educação ao declínio da imprensa escrita, podemos encontrar tudo isto e muito mais ao longo das cinco temporadas.
Podíamos dizer que se trata de um retrato de uma cidade específica dos EUA chamada Baltimore. Mas  de facto é mais do que isso. Tudo o que vemos, tirando o típico jargão local, é universalmente humano.
A prova disso é que na última temporada quando McNulty faz espoletar a trama  recordei-me de Kant, o filósofo do séc. XVIII, e da sua famosa lei moral.
Isto porque no meio do seu elaborado sistema metafísico Kant dedicou algum tempo a discutir sobre o valor da “mentira por propósitos altruistas”.
No fundo é o que McNulty faz no início da 5ª parte da história. Mente  e com essa mentira consegue desencadear um desbloqueio de meios que permite à polícia executar o seu trabalho, concluindo, entre muitas outras coisas, uma investigação longa que leva ao desmantelamento e prisão de uma rede de narcotráfico.
Parece que fez bem. Os bons puderam fazer o seu trabalho honesto. Os maus vão parar à prisão. Podemos justificar a mentira inicial. Podemos Sr. Kant?
Não, não podemos. Não é assim que o mundo funciona, infelizmente, diz o senhor Kant.
Se o filósofo Immanuel Kant tivesse tido a sorte de ter visionado a excelente série “ the Wire” no seu tempo teria ficado radiante. Poderia ter dado este exemplo para apoiar a sua teoria sobre a “mentira por motivos altruistas”. Com McNulty, Kant não teria sido gozado pelos críticos como o foi por ter utilizado um estranho exemplo.
“Imagine que esconde um amigo inocente na sua cave. Vem um assassino à sua procura para o matar. Pergunta  por ele. Deve mentir para o salvar?” A situação inventada por Kant era esta e a resposta dele é “Não”. E argumenta que mentindo o assassino iria embora continuando a sua busca e entretanto o amigo sentindo-se em perigo teria fugido pelas traseiras e inevitavelmente eles iriam dar de caras um com o outro. Parece estúpido e várias pessoas sérias conjecturaram que o senhor nesta altura do campeonato estaria já com Alzeimer.
Mas, depois de bem meditarem, outras pessoas concluíram de modo diferente. Ou seja, o que Kant descobriu (sem ver televisão nem ter saído de uma pequena cidade da Prússia toda a vida) foi que o nosso poder sobre as consequências das nossas acções é muito pequeno. Não controlamos nada do que acontece. Por isso mais vale cumprir as regras. A lei moral.
McNulty não ligou muito aos estudos e até escarnecia de quem tinha curso superior. Por isso não leu Kant. Para além disso estava numa fase de imaturidade que lhe deu a ilusão de ser Deus.
Mas ao longo desta história vai aprender esta lição de Kant.
Ora vejamos.
A brigada dos crimes graves está prestes a descobrir, através de escutas montadas e descodificação de códigos, uma rede de traficantes que passara um ano inteiro a matar e a esconder corpos em casas abandonadas. De uma assentada 23 corpos aparecem e têm de ser investigados. Quando ao fim de um ano os profissionais que estão quase prontos a prende-los recebem ordens para parar a investigação por conveniências políticas do presidente da câmara. Este político havia passado a temporada anterior a fazer promessas para ser eleito de modo a resolver os problemas da sua amada cidade e assim que chega ao poder resolve que quer ser governador daí a dois anos. Os problemas da cidade terão de esperar. Para atingir os seus objectivos o orçamento da polícia é desviado para a educação (área que lhe trará mais votos). Sem recursos a polícia paralisa.
McNulty inventa um serial Killer que mata uns sem-abrigo. Monta uma farsa. Um jornalista sem escrúpulos e ambicioso aumenta a farsa e depois existe um efeito bola de neve e o escândalo chega a todos os media. O que é certo é que o dinheiro aparece e com esforço e muitas mentiras o trabalho da polícia é retomado e os maus são todos apanhados.
Parece que ao intervalo está 1 para McNukty e 0 para Kant...
Mas... eis que quase no final do jogo o resultado sofre uma reviravolta. As malhas do acaso vão sendo tecidas e por uma coincidência ali e acolá o rei dos maus acaba sendo solto. Os chefes da polícia, o presidente da câmara, a procuradora do ministério público descobrem tudo. Mcnulty e Lester (seu cúmplice) perdem o emprego.
O grande caso de desmantelamento de droga não pode ir a tribunal pois a escuta era ilegal.
Por outras palavras: o amigo inocente fugiu pelas traseiras e deu de caras com o assassino! Vitória para Kant.
O dilema inicial subjacente da história era: será que os fins justificam os meios?
O objectivo era tão justo que confesso que fiquei desde o inicio do lado de McNulty.
O problema não é a justiça do fim. O problema é que os meios quando ilegais (a mentira) não só não garantem o fim em si como o podem prejudicar.
Neste caso McNulty aprendeu uma lição de Kant: não somos Deus, nunca seremos Deus. E amadurecer é tomarmos consciência das nossas limitações.
No final, nem todos os maus tiveram o castigo que mereciam. Nem todos os bons acabaram bem. Mas a vida é assim mesmo. A virtude não garante a felicidade. No entanto deve fazer-se o correcto independentemente das consequências, sem esperar recompensas. (De outra forma, se soubéssemos que seriamos recompensados sempre que fossemos virtuosos não seriamos simplesmente interesseiros?) E enquanto isso procurar a felicidade. Pois uma coisa não está directamente relacionada com a outra.
Será este o melhor dos mundos possíveis? Pode não ser, mas é o único que temos.
E de vez enquando temos o privilégio de assistir a séries de televisão que são maravilhosas...

quinta-feira, 27 de março de 2014

Flores


O Ridículo


O Ridículo sorri.
Antes chorasse.
Só ri.
Só, ri.
Ele sabe de quê
mas não adequa
a emoção
à sua categoria.
Não aceita a pena,
a humilhação.

O Bom Pastor

Uma vez conheci um criador de Pastores Alemães escrupuloso. Aconteceu-me mesmo. Ele explicou-me algo muito esclarecedor. Existem duas linhagens de Pastores Alemães, uma de trabalho e outra de companhia. Na primeira incluem-se cães extremamente agressivos e pouco sociáveis que só obedecem a um líder. Na outra estão os animais meigos e de bom carácter. Ao contrário deste senhor, que só vende a linhagem de trabalho para a GNR e reserva a linhagem de companhia para os civis, os outros criadores da raça misturam as duas linhagens e vendem-nas indiscriminadamente.
Adoro um bom Pastor Alemão, aquele cão simpático, ternurento e inteligente que se torna meu amigo à segunda visita e que passa a confiar em mim para a vida toda.
Por outro lado a minha maior cicatriz foi provocada pelos caninos de um Pastor Alemão altamente agressivo.
Esse episódio marcante não alterou a minha simpatia incondicional pelos Pastores Alemães. Pelos bons Pastores Alemães. Mesmo que seja uma minoria à relação à outra a tipologia da linhagem de companhia faz com que esta raça seja uma das minhas preferidas.
Gosto de me lembrar desta história sempre que sou mordida por algum humano maldoso ou quando encontro alguém com um medo excessivo de conhecer pessoas.

MARATONA



Os pés correm
sobre água
sangue aflito
2º quilómetro
estratégia
dos passos
visão da meta.
Os olhos correm
sobre água
sangue detonado
20º quilómetro
cadência
dos passos
pisar da meta.
Os dentes correm
sobre água
sangue dilatado
40º quilómetro
memória
dos passos
cheirar a meta.
Os braços correm
sobre água
sangue envenenado
42º quilómetro
turbilhão
dos passos
ranger a meta.


quarta-feira, 26 de março de 2014

AURORA


SEM ESCOLHA








Encolho.
Enrosco-me em concha.
Escondo o choro.
Despeço os olhos.
Espanto o sonho.
Falho,
foge-me o sangue
em jorro,
eu desisto,
eu morro.

Acordo.
Lanço num mar de fogo,
a metralhadora.
Desfaço a esperança
por entre zumbidos
dançando com vento.
Chove-me o sangue,
eu corro,
eu mato,
eu morro.





CONTÁGIO





Tenho o homem de costas e o revólver apontado à cabeça.
O dedo no gatilho pronto a disparar.
Há um desejo que cresce como um contágio.
Conto os segundos à espera da coragem.
Preferia poupar o homem.
 Mas tenho de lhe tirar a vida.
 É o desejo que cresce.
 Como um contágio.
 Ele está prestes a virar-se e a ver que uma pistola mede forças com a sua cabeça.
Poderia poupa-lo?
Terei ânimo para exercer a pequena força que move o dedo?
Começo a suar.
O meu suor está diferente.
Como uma voz que chamasse outro nome.
Queria salvá-lo.
Mas é o desejo que manda.
Como um contágio, ele quer destruir.
Dilatar-se-ão as pupilas do homem quando vir a pistola apontada à sua testa?
De momento nem sonha que algo ameaçador conta os segundos para o fim.
Vai virar-se a todo o instante.
E vontade derradeira não chegou ainda.
Um sopro de determinação.
O desejo grita.
Como um contágio que se espalha longamente.
Oiço o bater de um relógio a marcar uma hora certa.
Quase a conseguir premir o gatilho.
Ele a voltar-se devagar.
O dedo move-se um milímetro.
Penso em virar a pistola contra mim.
O desejo explode como um contágio.
E nada é mais irremediável que um contágio.

Debaixo para cima


segunda-feira, 24 de março de 2014

A mais completa resposta


Ele respondia-lhe com o silêncio. Não há resposta mais completa que o silêncio.
Um dia ela percebeu que aquilo que julgara ser cuidado era afinal medo. Um medo terrível que as palavras denunciassem uma alma menos elevada ou um carácter menos impoluto do que se supunha. Mas pensando bem a doce ilusão só a beneficiava a ela. Uma vez que a ele correspondia a mais perfeita indiferença.
Assim ela descobriu que ele era melhor do que ambos pensavam.

Longínquo habitante

Como um longínquo habitante de um país estrangeiro falando cantonês ou mandarim oiço-o e julgo entendê-lo. Mesmo sem capacidade de decifração o que diz é tão semelhante ao que imagino que talvez as coincidências sejam ainda mais tremendas e tenham afinal algum significado.

FEITIÇO



Quando o corpo cospe
um nome
com toda a saliva
inventada
o corpo já não é nosso
muito menos o nome
que nunca o foi
fica o atavio
do feitiço
feito fome
feito viço
a cair
na nossa cara
a cada golfada
de ar.

domingo, 23 de março de 2014

Sete Palmos de Terra




Aviso: Spoiler da última temporada de “Sete Palmos de Terra” (só eu não tinha visto mas, pelo sim pelo não, fica a nota)

Volto aqui a sublinhar que aquilo ontem no canto do meu olho era um cisco. Que foi preciso remover, afastar, limpar. Com um lenço.
Agora o que realmente não estava à espera era de ter ficado a ressacar com a morte do Nate Fisher.
Durante as 5 temporadas de “Sete Palmos de Terra”, foi das personagens menos interessantes. Era apenas um rapaz vulgar. Nem bonito nem feio. Nem muito sacana nem muito bem comportado. Nem muito esperto nem muito idiota. Apenas um homem.
Enquanto que o resto do elenco brilhava na interpretação de uma riquíssima fauna de espécimes raros: a excêntrica e romântica-inveterada Ruth; o frágil doce-pecador David com o seu namorado podre de bom e cheio de mau feitio Keith; a criativa irreverente Claire e as outras personagens verdadeiramente irritantes: a destrambelhada  Brenda, a histérico-histriónica Lisa; o insuportavelmente desequilibrado Billy; o secante ainda que lunático George; o infantilóide Rico mais a cabra da mulher  dele.
O Nate era despretensioso. Não ambicionava senão a viver o melhor possível. A agarrar a vida, a efémera vida, da forma que mais (ou menos) sentido fizesse. Só queria sair-se bem no meio da selva de personagens exóticas que faziam parte da sua vida.
Como todos nós. O Nate era o menos especial da história. E podia ser qualquer pessoa. Qualquer um de nós.
A cena do enterro foi forte mas bela. Um enterro despojado. Sem artifícios. Sem caixão, sem maquilhagem. Sem mentiras nem enfeites. Apenas o corpo morto lançado à terra. E a dor dos que ficam.
Percebendo, por fim, que o negócio da Funerária da família se baseava  numa farsa, numa fuga, numa recusa, Nate preferiu abraçar a verdade da vida: a morte. Tal como ela é.  Sem liquido de embalsamar,  sem paliativos, sem contemplações com os que ainda têm medo. Por ainda estarem vivos. Nate quis um enterro sem atavios.
E foi essa a lição de Nate. Aceitemos a vida como ela é. Aceitemos a morte.


Escrava feia



Ainda ontem servia banquetes ao meu senhor e já hoje não passo de uma escrava feia.
Fiquei a morar com os cães. Mas em vez de dormir sonho com o Sol da minha aldeia.
Nesse tempo a montanha era branca. Essa côr fugiu para se esconder. Gostava de um dia arrancar os olhos ao meu Senhor para lhe espreitar os pensamentos. Seria preciso muita força pois tem olhos de ferro. As minhas mãos, paus fininhos. Talvez pensar seja coisa de escravo. Tal como viver é coisa de Senhor. Nesse caso seria como espreitar para um buraco sem fim. Lançar-me-ia nele para alcançar o outro lado do mundo.
O meu trabalho é escolher os grãos. O que não é fácil pois são como meus irmãos. Sinto-lhes a alma. Por isso deixei de comer. Cresce-me na barriga um mar de lágrimas. As que não posso chorar pelo meu amor.

Adeus, estrangeira



Vinha a ouvir no carro o Goodbye Stranger dos Supertramp e fui transportada para um outro mundo através daquela máquina do tempo sem sofisticação tecnológica que só a música tem a capacidade de proporcionar.
Às tardes remotas e frias de Vila Real onde o pináculo do dia era uma fatia de broa de milho com manteiga e um chá escaldante no intervalo do estudo. Ao Vómer e ao Etmoide. Que decorávamos invertidos para cumprir a troca cristalizada do interrogador no exame.  As viagens a Lamas d’Olo com a neve impregnada de “poesia genealógica” do Miguel Torga, com as suas fragas e giestas e socalcos. Tanto frio. A água passava ao estado sólido nas torneiras de manhã e dormia de barrete de lã, botas de lã e luvas de lã, só com o nariz de fora ainda assim a enregelar. E tudo isso era encarado com uma alegria, uma admiração encantatória. Uma puríssima fragilidade. Lembras-te? Mesmo que agora sejas uma pessoa diferente, com uma família muito mais completa, consegues recordar esse teu outro eu, tão vizinho, tão próximo, tão longínquo?
As carraças a invadirem-nos o alpendre como batalhão em marcha implacável e invencível. E agora, e agora? O Jordão a sorrir-nos caninamente, preso na corrente do seu destino, em frente à casa: desculpem, desculpem... E nós logo ali a travar a guerra da creolina, cheios de força, cheios de certezas e de produtos tóxicos.
The Logical Song, no concerto em Paris, num Domingo de manhã na cama, ainda e sempre os Supertramp. Sem coragem para me levantar e enfrentar a temperatura agreste contrariava estoicamente os lamentos da bexiga em contracção desesperada. Tudo era límpido. Tudo era claro. O Inverno, a roupa para lavar no tanque de água fria, o Alvão ao fundo sempre à espreita, sempre à espera. Como um amigo seguro de braços fortes e aconchegantes. Mesmo que cobertos com neve.
Sim, lembro-me ainda e bem, apesar de ser outra pessoa, e ter outra família, mais completa, mais segura. Lembro-me desse meu outro eu. Tão vizinho. Próximo, quase aderido, colado, de raízes entrelaçadas no que sou agora. E no entanto... longe, longe, como num tempo estranho, num país diferente, rodeada de uma outra luz.
E aquela canção a mandar-me recados a fazer profecias que recusava ouvir ou entender.
Não queria partir, dizer adeus, seguir.

Goodbye strange it's been nice, hope you find your paradise
Tried to see your point of view, hope your dreams will all come true
Goodbye Mary, goodbye Jane, will we ever meet again
Feel no sorrow, feel no shame, come tomorrow, feel no pain
Sweet devotion (Goodbye Mary), it's not for me (Goodbye Jane)
Just give me motion (Will we ever) and set me free (Meet again).

sexta-feira, 21 de março de 2014

O PREVISÍVEL ELEFANTE

Um dos insultos mais cerimoniosos, subtis e maldosos é apelidar alguém de previsível. Como se a previsibilidade fosse um sinónimo de tédio ou enfado. Como se o imprevisto não fosse na maior parte das vezes fruto da desinformação, da ignorância ou da pura distracção. Como se só o imprevisto fosse capaz de arrancar uma reacção de espanto do observador.
Ora ninguém há-de esperar que um elefante de repente enrole a tromba e a transforme num carrapito permanente. No entanto, um apêndice dérmico de dois metros que sai do centro da face num elefante não deixa de me surpreender. Sempre.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O COMBOIO DE ZHOU YU





O teu amor correu
ao encontro do poeta
no comboio furioso
o verde fugia na janela.
Ele o mestre, tu a musa
lábios rimando com a blusa,
olhos chorando sonetos,
dedos luzindo palavras
que abraçavam o corpo.
A tua língua, serpente
na sua boca, lago,
inundado de ti.
O teu amor escorreu
como tinta em porcelana,
ele não viu, Zhou Yu,
escrito nos carris
que o poeta eras tu.

CURANDEIRA



Escreve com pinças.
A tinta é um fio
que passa
de um lado ao outro,
agarra e fecha
Deixa curar
com o tempo.
Breve, breve
não se lê.

Umas pinças são delicadas
mas outras esmagam
e por vezes estão sós
os dedos
que procuram ansas
e línguas esconsas,
poças de sangue
sem cor
que deixam um traço
leve,
duradouro,
letras desenhadas
em margens
que se encontram
como estranhos
que não se rejeitam.

No fim das pinças
as foices
na razia do arame
afiado e lúcido
catando, deitando fora
a mácula
que se inutiliza
no mata-borrão.




terça-feira, 18 de março de 2014

SARAR


AVÔ



Pá.
Braços na pá.
Pá no ar.
Pá na terra.
Terra na terra.
Braços, pá, terra.
Terra, terra, terra.
Terra, flores, paz.
O corpo enterrado.
A alma connosco.
Flores.
Paz.

SEM TEMPO



Não paro os dias.
Fico a ver os minutos correrem esbaforidos
Impassível
cavalgo
nessa voragem.

RELÓGIO DE PÊNDULO




Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Toma-tiro.

Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.

domingo, 16 de março de 2014

EGON SCHIELE, O PÁSSARO PROSCRITO







Egon Schiele foi um pintor que viveu no início do século XX em Viena.
A personagem é fascinante. A sua história de vida daria um filme. 
Egon era proveniente de uma família burguesa que vivia em Ulln, junto ao Danúbio. O seu avô paterno era artista, arquitecto e engenheiro dos caminhos-de-ferro. Estas características saltaram uma geração e passaram para o neto. Cresceu a ver chegar e  partir os comboios e tendo acesso a um passe gratuito. Como filho de funcionário, viajava com a sua irmã sempre que podia. Com dezasseis anos desenhou comboios com exactidão técnica em quadros que transmitem o seu desejo de evasão.
A vida não era fácil para o jovem Egon. O pai sofria de demência causada pela fase terminal da Sífilis. Os ataques de fúria eram constantes e tinha visões que obrigavam a colocar um prato extra à mesa para uma visita que só ele via. Morreu quando o filho tinha apenas 15 anos. O tio, casado com a irmã do pai, passou a ser o tutor de Schiele.
Em 1906 Egon foi aceite na Academia de Viena. A mesma Academia que uns anos mais tarde reprovou Adolf Hitler no exame de admissão.
Egon depressa se incompatibilizou com o seu tutor e com o ultraconservador professor de pintura que irritado um dia lhe disse: “o diabo cuspiu-o a si para a minha escola”. Deve ter sido a única frase que lhe ficou para a posteridade. O professor Christian Griepenkerl apenas é mencionado como professor de Egon Schiele.
Em 1907 conheceu Gustav Klimt que reconheceu o talento do jovem com apenas dezassete anos, e o promoveu sem invejas. Seria o seu mestre e admirado como um pai.
Em 1909 abandonou a Academia e formou com alguns colegas o “Grupo para a Nova Arte”.
Apesar de ter origens tão burguesas quanto os seus colegas e mestre, Egon havia se  rebelado contra  esse mundo. Passava por isso dificuldades. A roupa que usava era larga demais, o chapéu tinha de ser forrado por dentro com jornais para lhe assentar na cabeça e os sapatos eram tão grandes que só conseguia andar arrastando os pés. A sua natureza permanecia apaixonada e inabalável. Acreditava em si. Narcisista, estudava o seu corpo em frente a um grande espelho e pintou mais de cem auto-retratos.  Descobria o seu corpo. Explorava o seu prazer. Tal como Freud, algures na mesma cidade, ao mesmo tempo, Egon dedicava-se ao estudo do sexo. Depressa se demarcou do estilo de superficíe ornamental de Klint para um estilo mais expressivo.
Em simultâneo, Egon descobria e desbravava o corpo feminino. Começou por pintar meninas das classes baixas, por serem modelos mais baratos. E também mandava fazer bonecas de pano a costureiras o que ainda lhe custaria menos dinheiro. Era o corpo que lhe interessava. Visto de cima. Como se fosse um pássaro. Uma ave de rapina que se apodera da sua presa. Era assim que queria observar tudo. Até as cidades que pintava. Subia às colinas e obtinha a sua visão lá do alto. No seu quarto usava um escadote.
Egon aderiu ao Expressionismo. São expressionistas os vários movimentos de vanguarda no fim do sec. XIX e início do séc. XX que estavam interessados na interiorização da criação artística em detrimento da sua exteriorização, projectando na obra de arte uma reflexão individual sempre subjectiva. O Expressionismo contrapõe-se assim ao Realismo.
Pintava as mulheres-meninas nuas como ele as via. Realçava a vulva e as mãos que eram sempre demasiado grandes e ossudas. Procurou temas considerados inapropriados e pornográficos para a época, como a masturbação feminina e masculina, a homossexualidade feminina, o sexo entre membros do clero, a anatomia feminina explicita. Recusou a censura.
Foi preso, claro está. Acusado de ter sequestrado uma menor que lhe servira de modelo. Vivia em concubinato com uma mulher de dezassete anos que lhe era profundamente devotada: Wally. Egon e Wally tiveram a ingénua ideia de se mudarem para uma pequena aldeola onde recebiam em sua casa lolitas que serviam de modelos ao pintor. Foi um escândalo. Acabaram expulsos.
Durante o julgamento ficou provado que a acusação de sequestro era falsa mas durante as buscas a sua casa foram encontrados desenhos considerados obscenos. Durante a leitura da sentença o juiz queimou uma tela de Egon. O pássaro foi para a gaiola. Quinze dias de pena. Aproveitados para pintar e escrever poemas. “Aprisionar o artista é cometer um crime, significa matar a vida no ovo!”
Em 1915 dá-se uma reviravolta na sua vida: casa-se. Mas não com Wally que considerou inferior à sua classe social. Talvez por cansaço de tanta privação, talvez por um apelo às origens burguesas ou mero calculismo procura uma rapariga de boas famílias: Edith.
Tentou no entanto fazer um acordo (sob a forma de contrato escrito!) com Wally: fazer com ela uma viagem por ano, como amantes. O pássaro não queria largar a sua presa. Wally recusou e morreu poucos anos depois.
Edith tinha uma irmã, Adele, que também serviu de modelo e de amante. Tudo sem a esposa ciumenta saber.
Com este casamento proveitoso Egon entrou na sua fase mais serena e chegou a ter um quadro num museu estatal, o Moderne Galerie: Retrato da Mulher do Artista, Sentada.
A morte chegou cedo, aos vinte e oito anos, por culpa de um vírus. A gripe espanhola matou em todo o mundo vinte milhões de pessoas. Foi uma pandemia que atingiu até as regiões do Árctico. Esta doença foi o resultado de uma mutação de extrema virulência do vírus influenza, o da simples gripe. Foi a imprensa espanhola que por ter sido a que mais importância deu ao assunto que acabou por baptizar a praga mundial.
Edith foi a primeira a morrer, grávida de seis meses, subitamente e em sofrimento atroz. Egon teve três dias para a chorar e pintar já cadáver. A sua morte foi também fulminante. O pássaro morreu de gripe.



sábado, 15 de março de 2014

Esperar


Quero esperar por ti
rocha no meio do rio
sorrindo
à erosão dos anos
no lodo verde
freira ajoelhada
carpindo um rosário
em curto-circuito
alimentando o corpo
com um amor sem retorno
paciente e terno
como um fóssil incrustado
num mármore,
conservado
desde o início dos dias
como uma migalha de pão
esquecida na tua camisola
saboreando o teu suor
lavando a memória
com sabão de sangue
propagando-se no vazio
entre os planetas
até às muralhas imaginárias

Quero esperar por ti
como um flamingo cor-de-rosa
apoiado
ora numa perna
ora noutra
descansando
o corpo estátua
congelado
no espaço-tempo
como um monge tibetano
treinando Yoga
pernas entrelaçadas
por cima do pescoço
levitando a alma
acima da cabeça
num reino
de brancos fantasmas
despedidos do mundo,


Quero esperar por ti
simplesmente,
por teimosia,
sentar-me
separada da vida,
cruzando os braços
entrelaçando as lágrimas
e
esperar

STOP

Continuo cristalizada.

Pequeno Atraso


sexta-feira, 14 de março de 2014

GATO


ASSALTO




Um milagre ou a vida!
A esperança apontada à cabeça,
eu congelada
revolvendo a cartola
procurando uma voz,
uma fórmula, um coelho,
a pomba branca, as purpurinas.
O tempo a contar
a vida escoando pelos joelhos,
um milagre ou a vida!
Os dedos espremendo migalhas
esquecidas nos bolsos do fraque,
indagando receitas, perfumes,
artes, diabruras, pactos ocultos,
a Lua a nascer
e a vida cada vez mais viscosa,
descendo pelas pernas.
Um milagre ou a vida!
A esperança detonando na cabeça
e de repente, num segundo,
aqui estavas tu.