sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Um Livro de Edward Gorey






Hoje de manhã encontrei no chão da minha sala um livro caído (e um Buda). Foram os gatos de noite nas suas brincadeiras frenéticas. Não conhecia este livro, este belo livro de formato fora do vulgar. O autor é Edward Gorey.. Os gatos trazem-nos muitas vantagens. Uma delas é deitarem aos nosso pés livros que não conhecíamos e que de outra maneira nunca nos chegariam às mãos.
Esta é uma obra com quatro histórias ilustradas pelo autor.
Diz a nota introdutória: “A julgar pelo que dele se diz, Edward Gorey será um dos melhores autores de qualquer coisa que não se sabe bem o quê do século vinte.”
Eu ainda só li a primeira história, “ Um Casal Execrável” mas já acredito nesta frase piamente.
Gorey apesar de ter sido dado (morreu em 2000) a temáticas sombrias nomeadamente “os infortúnios infantis” e “ “o grotesco melancólico” dizem que era pessoa afável. De tal forma que até gostava bastante de gatos e vivia com vários.
Os gatos fazem bastante companhia e decerto que ajudam a fazer livros, e por vezes a descobrir outros.
A tradução da versão portuguesa é da Margarida Vale de Gato. Faz sentido.
“Um Casal Execrável” é a primeira história, como já disse. “Se fosse só um” pensei eu, mas logo me arrependi pois de facto não privo com nenhum que a minha visão periférica é apurada e a minha capacidade de fuga é alta.
É a história de um casal de assassinos de crianças. Muito sombrio. Muito desassombrado e maravilhosamente ilustrado. Vale a pena ler/ver. Se não tiverem gatos, comprem.

Treina-me, tigre, a atazanar-te...

As Sirenes ou as Sereias?

Poema do Ovo (Poema Oferta)

ovo
ao longe o trovão
no céu estrelado
mexido distante de mim
num desejo que a noite gema
antes que clara
chegue a manhã

Um Poema de Oferta



Ganhei um poema de oferta. Um poema que desejei ter escrito e agora é meu. Foi a prenda mais importante que alguém me deu até hoje. E duvido que venha a receber algo mais valioso.

Barriga De Poemas



Escrevo
porque me fizeste
nascer
uma barriga de poemas.
À revelia
lutam
por ver a luz
do dia,
independentes
da minha vontade.

O Manequim


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Equilíbrio

Descobrir um certo desequilíbrio em quem aparenta ser um poço de constância é por um lado desconcertante e por outro encorajador.

Oração


Feliz possa caminhar.
Feliz com abundantes nuvens negras possa caminhar.
Feliz com abundantes chuvas possa caminhar.
Feliz com abundantes plantas possa caminhar.
Feliz por uma senda de pólen possa caminhar.
Feliz possa caminhar.
Como aconteceu em dias distantes possa agora caminhar.
Que defronte de mim seja tudo belo.
Que atrás de mim seja tudo belo.
Que debaixo de mim seja tudo belo.
Que por cima de mim seja tudo belo. Que derredor de mim seja tudo belo.
Belo belo acaba aqui.
Belo belo acaba aqui.


América do Norte, Navajos, in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro

Copla de Amor




Se eu fosse um touro,
Um touro, um belo touro,
Belo mas teimoso,
O mercador comprar-me-ia.

Comprar-me-ia e matar-me-ia,
Esticaria a minha pele,
Levar-me-ia para o mercado.

A mulher grosseira tentaria negociar-me em vão,
A bela rapariga comprar-me-ia;
Amassaria aromas sobre mim.

Eu passaria a noite enrolado à sua volta;
Eu passaria a tarde enrolado à sua volta.
O seu marido diria: “é uma pele morta”!
Mas eu estaria junto do meu amor.


Etiópia, Oromo in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro

Nas Entrelinhas




Entretanto
nas entrelinhas
paira
o sentimento
impronunciável,
uma faca,
uma pedra,
um castigo
e uma bênção.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Anonimato

O anonimato é uma capa demasiado fina para o que se pretende esconder.

Estado De Espírito

http://www.youtube.com/watch?v=BrvEnXOpWC0

Pontaria

Oferecer bolos a um diabético ou enviar o " Chatterton" do Seu Jorge que começa por "sangue, sangue, sangue!" a um hemofílico, eis o tipo de pontaria que ela tinha.

Carne



A carne não é fraca.
A carne é muda.
A carne não é fraca mas não perdura.
O que faz prolongar a carne é a palavra.
E, muitas palavras depois, o gesto.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Serpente





As longas gotas 
corriam cara abaixo.
Os soluços alternavam 

com palavras roucas,
serpente, serpente.
Confessavas-me 

que nunca tinhas chorado na vida.
O espanto ultrapassou 

o meu terror pelas tuas lágrimas,
meu pai.
Era a única que te fazia chorar.
Fazia-te chorar, meu pai,

que durante meio século
havias estado a salvo 

das desprezíveis
manifestações de sentimento.
Fazer-te chorar, meu pai, 

era um crime
para além do crime primordial.
Serpente, repetias.
Quando teria acontecido, 

queria imaginar.
Quando me via ao espelho nua,
talvez, numa dessas vezes,
tentando criar curvas,
criar corpo,
tentando ondular,
ser mulher.
Agora, ali estava eu,
serpente vertical,
braços pendentes
a ver a água escorrendo
pela tua face, meu pai.
Era tarde e a tua revolta tão justa,
oportuna, serpente, serpente,
meu pai.
Serpente sibilante,
víbora no próprio ninho,
exalando um forte odor
a pecado.
Expulsei-me por fim
em ziguezagues
do teu pequeno paraíso
infernal.

É Muito Tarde



Fui ler aquele teu poema de que gosto muito.
É muito tarde.
Só assim me falas e posso ouvir-te.
Vejo as luzes da tua casa
que se vão apagando
à medida que avanças pelas divisões até ao quarto.
É muito tarde,
estás muito cansado.
Vejo o bailado de luzes que acendes na noite
com os candeeiros.
Invade-me uma tranquilidade triste,
e regresso à escuridão do sonho.
Enquanto o teu corpo adormece
fico de vigília
até acordar.

Oci Ciornie


 


O Sr. Romano,
pantomineiro sedutor,
já se esqueceu
(toda a gente se esquece)
das brumas da Rússia,
do canto dos ciganos.
Da viagem ficou
a história para contar
ao Sr. Pavel,
que não se esquece
(não é verdade
que toda a gente esqueça).
O Sr. Pavel viajou nove vezes
até ao coração de uma mulher
em sete anos
e veio de lá casado,
rapaz envelhecido,
feliz e destroçado.
O Sr. Pavel
morrerá um dia,
de coração cheio,
na sua tímida nulidade
acompanhado
pelo bem que fez.
O Sr. Romano
ficará só,
rindo das suas figuras,
cantando a música
cigana, chorando
de uns olhos negros.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Doenças

Descobrir que a minha doença não é uma doença, é a doença.

Saudades

agora que já aqui
não estás
que nunca
estiveste
a saudade nova
entrelaça os dedos
nos dedos
da saudade antiga
juntos sob o lençol
de silêncio
imaculado e morno
tecem o fino
frágil manto
da memória

Montanha-russa



Vou na montanha-russa
de cristal
até ao cimo
até ao sol
sobre carris tão finos
rodas tão frágeis
de sol tão frio.
As palavras são vento
que tudo estremece
e o sol tão calado
tão frio
balanço, balanço
antes de cair
tento elevar o corpo
mais para cima
para o sol
tão frio
tão calado
tão perto
um só fio
de luz
e a queda
começa.

Gelo



uma estátua de gelo sobre o mar
o sol comendo-lhe a cabeça
o sal devorando-lhe os pés

Passado


o passado não existe
a memória é
um machado
colhendo a flor
do algodão
a memória
mancha
e destrói

A Generosidade de Estranhos

herdar a melancolia
de quem se amou
ficar num itinerário
circular
num desejo
incansável
sem saída
nu desejo
de um corpo eléctrico
num copo brando

Poema lido de um(a) índio(a) Kawakutl do Sul do Alasca para um(a) Missionário(a) em 1896 lido pela Helen Fischer numa das suas palestras.


O fogo percorre-me o corpo
com a dor do meu amor por ti.
A dor percorre-me o corpo
com o fogo do meu amor por ti.

A dor como uma bolha
prestes a rebentar
de amor por ti,
consumida pelo fogo
do meu amor por ti.
Lembro-me do que me disseste.
Estou a pensar no teu amor por mim.
Estou desfeita pelo teu amor por mim.
Dor e mais dor.
Onde vais com o meu amor por ti?
Dizem-me que vais partir.
Dizem-me que me vais deixar aqui.
O meu corpo está dormente de dor.
Lembra-te do que te disse meu amor.
Adeus, meu amor,
adeus.