terça-feira, 21 de março de 2017

Mistério diário





O dia é sempre o mesmo,
recomeça pela manhã,
mistério ao rubro.
De muito olhar
pela janela,
o homem
desamparado,
vai morrer
por
falta de asas.
Ainda hoje
e sempre.

domingo, 12 de março de 2017

os russos



Devo a minha vida aos russos. Não falo do povo da Rússia, nada contra, mas sim dos bolos, aqueles deliciosos folhados com recheio branco no meio, quase chantili, muito melhor que esse creme. Ainda parece que estou a saboreá-los agora, a sentir essa espessura por todos os dentes e com todo o poder de língua como por altura dos meus sete anos quando a minha mãe chegava da baixa e me trazia, da pastelaria Suíça, uma caixa branca fechada a cordelinho com meia dúzia deles. 
Eu era, na época, uma criancinha enfezada de muito pouco apetite, quase sempre afectada por amigdalites recalcitrantes. Era um castigo para comer, para mim e para a minha família. Levava horas à mesa enrolando a comida nas bochechas, mastigando a custo, cuspindo sempre que podia e de cada vez que ninguém via. Levava até umas belas palmadas da minha avó que era dada a enervações repentinas durante as dilatadas horas das refeições de fastio. 
Teria sido uma infância feliz não fosse este martírio da alimentação.
A vida mudava perante a caixinha dos bolos. Mal eu pressentia a minha mãe chegar dessas paragens gastronomicamente paradisíacas corria para a receber, ou melhor, para usufruir da minha iguaria preferida. Não, minto, não se tratava de primazia, na verdade, para além desses doces, não havia mais nada que me soubesse bem ou ingerisse com satisfação. Os russos ou o jejum, sem compromisso.
Foi assim que um dia, ao abrir a caixa e olhar para as ditas guloseimas recusando-as, a minha mãe correu comigo ao hospital onde me salvaram de morrer sufocada. As amígdalas estavam transformadas em duas bolas gigantes de pus branco. E, não fora a caixa dos bolitos, ninguém adivinharia os monstruosos abcessos. Benditos, os russos.

sábado, 11 de março de 2017

Senhor Carlos





O Sr. Carlos não se chama Sr. Carlos. Na verdade não sei o seu nome. Um dia ouvi-o tratar por  Carlos alguém que tem outro nome, apenas por familiaridade, ou quem sabe, por gostar muito do nome. Ficou a ser, para mim, o Sr. Carlos, porque não? Afinal também gosto de baptizar as pessoas.


O Sr. Carlos gosta de falar com os passageiros da camioneta entre Lisboa e Carnaxide ou no percurso inverso. Aprecia ainda mais o diálogo com os motoristas a quem trata com respeito e admiração. Desses acredito que saiba até o nome verdadeiro. Um dia assisti a uma conversa com o Sr. Simão, o condutor. O homem desejou-lhe um feliz aniversário e obteve como resposta:

"Obrigado, Sr. Simão, muito obrigado. Na verdade eu só faço anos amanhã. Dizem que dá azar dar os parabéns adiantados mas eu não vejo as coisas dessa maneira. Afinal, se não me desse agora os parabéns não mos podia dar, pois amanhã não venho. E além de que isso são crendices. Ora quando uma pessoa deseja boa viagem a outra também é sempre antes e não há azar por causa disso, não é verdade, Sr. Simão? Por isso olhe muito obrigo pelos parabéns, fez muito bem."

E a partir daqui a conversa desenrolou-se à volta da temática dos santos e das procissões das paróquias que servem a freguesia de Carnaxide-Queijas. Foi um subir e descer de ruas e ruelas atrás dos variados andores, sempre culminando na expressão "e foi muito lindo, muito bonito". Até que o Sr. Carlos pergunta ao Sr. Simão, talvez um pouco perplexo com o seu silêncio, se era seu costume frequentar a Igreja. Ao que este responde que não, nem por isso. E vai o Sr. Carlos:
"Pois, então é como eu, Sr. Simão, eu também não ligo muito."

Eu, no meu lugar à janela, passei o resto da viagem lamentando não terem levado o sr. Carlos como braço direito do António Guterres, lá para q ONU, ou no mínimo para uma embaixada de um país qualquer, seria uma mais valia, certamente.  Sendo assim, foi uma brilhante carreira diplomática que se trocou por outra de curto percurso  entre uns simpáticos arrabaldes e o centro da capital portuguesa. É a vida, como diria o Senhor outro.

pescador

Bathing Man, Edvard Munch, 1918


fecho eclair
abrindo
sai
rio abaixo
o isco pendente
esperando passivo
pensando
gente