sábado, 30 de agosto de 2014

Que fracos?

Ah os fracos e os fortes,
os fracos tão justos e bons
e cheios de razões
e valores
e virtude
e consciência
mas onde estão eles?
Só vejo nojo,
altivez
e coveiros
à sombra
a descansar os braços.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

I FELL IN LOVE WITH A DEAD BOY



Volto novamente a este poema do Antony Haegarty.
Depois de "dissecar" as palavras e ter chegado à conclusão que está
a falar dele mesmo e da sua transformação de rapaz em rapariga, gosto
de apreciar novamente o poema na sua superfície.

Na pele do poema
está o amor por uma pessoa morta. Uma pessoa que não está na mesma
dimensão que nós. Não pertence ao mesmo mundo, a este mundo.

Então o que se ama? É o corpo que em breve irá desaparecer, é a alma que nunca morre?

O que desperta esta união?

E se for o corpo quer dizer que o amor é uma memória?

E se for a alma quer dizer que somos de facto imortais e não há separação alguma entre o estado de morte e vida?

Ou apenas podemos concluir que o amor é superior a toda essa condição humana de mortalidade e transmutação?

Deixem cá ouvir pela milionésima vez...



sermão da fanera




Prendo o olhar à pedra,
espreita o verniz do dedão:
olá minha dona,
já estalaste tudo hoje,
ou guardas para estoirar amanhã?
Dá-me uma demão
que já desmaio,
cai-te a beleza
 e ele despreza,
arrebita o nariz,
coragem!
Olha filha, espera aí
que já te atendo,
são cinco minutos
eternos de sossego
e ele, com verniz
ou sem adorno,
é longe e cego
que esta beleza
é desconhecida
de quem não toca guitarra
e por isso é ausente
de unhas.
Não sejas pespineta
que a vida não é tão má,
há males que vêm por bem
e só faz falta quem está.
o queixume pouco adianta,
mais: quem pinta
seus males espanta.
Pois não basta o que basta
ainda levo com a fanera
a debitar sermão
de mim sei eu e ninguém,
deixem-me com a minha
sombra, o meu silêncio,
a solitária confissão.





quarta-feira, 27 de agosto de 2014

heurística



Não se trata de encontrar
o fim do caminho.
Quero o caminho infinito.
Todo o caminho demasiado longo
precisa do seu atalho aqui e ali.
Pequenas tréguas.
Pequenas mágoas paradas
para descansar da viagem
e logo seguir.
Não quero o fim
do caminho infinito.
Apenas descobrir
uma ou outra paragem válida,
por aproximação.
E logo seguir.

O ano da Lua




Nasci em 1969 por isso pode-se dizer que nasci no ano da Lua. 
Criança difícil desde os primeiros meses chorava sem problemas de saúde ou motivo aparente. Chorava de noite e de dia. Chorava porque sim. 
Os quatro avós chegavam a estar à beira do berço a trocar impressões sobre a causa da pueril inquietação da sua primeira neta. 
O meu avô paterno, supersticioso, influenciado pelas notícias espantosas da época sugeriu em certa ocasião, "ó comadre encomende-a à Lua!..." 
A minha avó materna, pragmática e mal dormida, pois era ela que me aturava as noites poupando assim a minha jovem mãe, respondeu-lhe pronta e arrebitada: "é, eu vou mandá-la no próximo foguetão!"

Bowling




A pergunta que não conseguimos de deixar de fazer é se poderíamos ter feito melhor. Sim, poderíamos ter feito melhor. Podemos sempre fazer melhor. Mas isto é como no Bowling se deitámos 4 pinos abaixo podiamos ter deitado 5, se deitámos 5 podiamos ter deitado 6 e por aí fora. Tudo depende da nossa perícia mais do que da força ou da condição física. Mas essa perícia depende de quê? Do modo como se sente  o volume da bola, o seu peso, a sua textura, enfim depende de percepções subjectivas. Todos os cálculos mentais que intervêm para saber como mandar a bola ao chão são quase inconscientes. De maneira que no momento em que a a lançamos não sabemos bem como irá a jogada terminar. Há um momento de profundo suspense. Podemos acertar em cheio, acertar em parte ou falhar redondamente. A calha afinal está ali bem perto, logo ali ao lado. E no final, os pinos são novamente recolocados pelo mecanismo do jogo e tem-se mais uma tentativa, mais uma bola. Não seria mau se a vida fosse como no Bowling.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Meia culpa





"O meu pai um dia disse-me que eu era o feitio dele em bruto. Seria de esperar que me tivesse mandado para um colégio na Suiça. Mas não. Agora não se queixe. Quem se deveria queixar era eu. Pago caro por não ter tido acesso a uma educação requintada e sofro pelas críticas constantes de quem é alvo das minhas tiradas desbocadas. Cada um é como cada qual. Pelo menos não tenho a culpa toda. Como é que se costuma dizer? Meia culpa, tenho meia culpa, é isso."

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

POEMA OPIÁCEO





Se caio de quatro
faço um poema penso-rápido
e com a parte macia protejo
os joelhos.
Se caio de cabeça
faço um poema opiáceo,
com ele inundo  de sonho
o fluxo das veias
e esqueço as dores do mundo.
Se caio com o corpo
em cheio na tua lança
e, não te enganes,
ela trespassa,
faço um poema caixão
onde enterro
os lamentos do fundo
com terra,
lama
e água fria,
não há alívio.

REGRESSO AO FUTURO





Tivesse eu o carro do tempo
que voltasse atrás
para dar o beijo certo
o beijo acertado no nervo
em cheio no meio da boca
ao centro
o beijo marginal
pela boca a dentro
que pudesse mudar o mundo
inquinar de vida
a doença muda
detumescente
a mentira funda
enganosa
dura
tivesse eu o carro
que há-de dominar
o futuro
lá no passado
no poço do mundo
tornando a viagem
num outro itinerário 
duma aceleração
mais generosa
pois a ciência
ainda nos há-de salvar
e não sendo a ciência
talvez o amor

GROUDHOG DAY


Acabou a corrida dos dias.
O tempo é o dia.
Uma marmota adivinha o inverno
e o inverno cai
em avalanche.
Ficas preso no dia.
Como todos nós.
Erras todos os erros do dia.
Como todos nós.
A tua liberdade é do tamanho do dia.
Sentes-te livre, nada importa.
Sentes-te claustrofóbico, nada importa.
Como todos nós.
Procuras o amor no dia.
Como todos nós.
Sofres os desenganos do dia.
Como todos nós.
Acreditas  que o amor te vem salvar.
Como todos nós.
O amor vem
e com ele, por fim,
e só por ele,
o amanhã.



sábado, 23 de agosto de 2014

DESENGANADOR






Não há fugas fáceis,
Houdini,
sabes bem.
a esta hora lutas
contra as ataduras
que cortam
as carnes em sangue.
para o embuste honesto
tem de arder o desengano,
tem de incubar a infecção.
No teu circo de magia
o truque de ilusionista
é uma camisa de forças
invisível, silenciosa
que vais tricotando
com as algemas
quase criminais,
prata e ouro profético.
O medo torna real
a caixa de água fria
e no final do teatro
há que exibir a cerimónia
da varinha mágica quebrada.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

cortinas




eram os olhos como cortinas
círculos de água parada
reposteiros fechados
de veludo azul
cortinas como olhos
omissões descaradas
cobertas de limos
círculos quase perfeitos
de rarefacção líquida
muito afundados
quase a pedir clemência
quase a cair dentro do céu
quase a chegar ao último chão


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

ocultação



Afogas a boca
na pedra vadia
afagas o medo
a vontade da fuga
o clamor do dia
o oculto olhar
fogueira de estrelas

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

EM DEFESA DOS BÁRBAROS



Tu, mulherzinha,
que apareces nas notícias
a defender o facínora conterrâneo
matador de  uma nossa irmã
por ter sido provocado,
provocas-me.
Provocas
todos os homens e mulheres
de boa vontade.
Precisas de ser defendida
para que ninguém te toque
num fio de cabelo.
Só assim nos conseguiremos defender
da desgraça
de sermos como tu,
mulherzinha,
ser pequeno, sem nome,
com um punhado de silvas
no lugar do coração
e um punhado de terra esboroada
em lugar de cérebro.
Assim, inteira e anónima,
esperemos que se cumpra
a tua esterilidade.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

nada de respostas

Não ando à cata de respostas. Deixo as respostas para os mestres-escolas. Prefiro ficar com as perguntas à deriva, em liberdade. Assim guardo as possibilidades, as hipóteses, as fantasias, as ideias totalmente minhas. Sem a interferência de estranhos, gente incerta ou indecisa que se ilude na sua própria ignorância. Eu só sei que nada quero saber.

a queda

das minhas montanhosas palavras
caí a pique
de cabeça

derramando
as perguntas
que espavoridas
se perderam
no chão

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

BARRIGA DE POEMAS, 2º LANÇAMENTO



Por motivos de ordem técnica não consegui publicar o anúncio deste evento antes da data. 
Resta-me recordar o momento e voltar a agradecer ao Alexandre e à Susana Laurent, que tiveram a gentileza de me convidar e receber no Monte Malhão ( local maravilhoso!), ao Nuno Miguel Lopes a generosa apresentação de que fez do livro, e às pessoas presentes que  tão bem me acolheram. Não esquecerei este dia. Muito obrigada.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

PUTA QUE OS PARIU



"Puta Que Os Pariu" é a biografia de Luiz Pacheco escrita por João Pedro George.

Este livro deu-me água pela barba. Trata-se de um calhamaço de mais de 600 páginas escrita nuns caracteres pequeninos intervalados por outros ainda mais minúsculos. Ora eu que nunca tive necessidade de usar óculos vi-me e desejei-me para conseguir focar a vista, pois ainda para mais comecei a ler a obra de noite. Ao outro dia, cheia de papos nos olhos, lá carreguei o volume, e que volume, até à praia: abençoada luz solar sem filtros, via claramente visto, o lume vivo, e as letras!
Assim à primeira vista não parece ser uma leitura muito apropriada para férias à beira-mar, é baseado num trabalho de doutoramento, polvilhado de referências bibliográficas, só as páginas de notas e apêndices são mais de 100 páginas. Mas se é verdade que já li doutoramentos mais superficiais e leves nunca tinha lido um tão interessante e divertido. E também é preciso dizer que o livro está pejado de pormenores sexuais que vão desde o picante ao escabroso  (há para todos os gostos), o que se formos a ver, até condiz com o veraneio na praia.
Quem foi Luiz Pacheco?
Foi um escritor/editor que nasceu em 1925 e conseguiu chegar a velho com uma sorte danada pois teve um vida de excessos de álcool e de grandes loucuras e que colocou a literatura acima de tudo o que os demais acham essencial: o bem-estar, a segurança, o amor, o futuro dos filhos, enfim, a vida.
Era um escritor fora do comum, sem papas na língua, apaixonado pela escrita, completamente livre, sem amarras de espécie alguma, apelidado de escritor maldito.
Tinha uma enorme capacidade para reconhecer talentos, o dos outros (foi o 1º editor do Herberto Helder) e o dele próprio. Escrevia críticas literárias implacáveis. Teve muitos amigos e inimigos. Viveu da caridade, sofreu muitas misérias, várias estadias na prisão (tanto por obras publicadas contra a censura como pelo comportamento sexual considerado impróprio para a época), internamentos para desintoxicações e por doenças várias. Teve relacionamentos amorosos problemáticos com mulheres adolescentes mas também gostava de homens. Escrevia sobre a sua vida, entrelaçando a sua história com os seus livros. Teve 8 filhos. Falava dele próprio na 3ª pessoa (como os jogadores de futebol mas com mais criatividade), dizia: a pessoa pachecal, a prosa pachecal, a ética pachecal, etc.
Ao fim dos 4 dias nesta enorme viagem que foi conhecer a sua vida (acho que conheço melhor o Luiz Pacheco que 95% dos elementos da minha família, o que é um alívio) fiquei com uma obstinada vontade de lhe conhecer a obra. Até porque a tal letra mais miudinha é na maior parte das vezes discurso do autor, e é uma prosa deliciosa. Resta-me, então, ir à procura da famigerada obra pachecal.

Eis uns pequenos aperitivos:

"Partindo do princípio superior da criação artística, Pacheco explorava os valores cristãos da caridade, partilhados e legitimados por uma sociedade católica, como a portuguesa: " o truque é o do Jota Cristo: sentar-se um tipo na Cruz ( o mais confortável possível...) e depois reclamar para a Opinião Pública".

"Aliás, e quero declará-lo a quem o não souber ainda, sempre me considerei, como pessoa, como editor ou como escriba um franco-atirador, um cão sem coleira. Tirando daí todas as vantagens mas também muitos dissabores ou vice-versa: vantagens por vezes nenhumas, dissabores os que resultam de nos sabermos exilados no nosso próprio país, desacompanhados até dos nossos melhores amigos de infância. Mas a cada qual seu caminho e seus espinhos/calos."

"É tempo de gozar um bocado comigo e de mim. porque só tenho duas saídas: essa, da jocosidade, ou da amargura. por este caminho, ninguém vem atrás de mim, não se cativa pela choradeira mas pelo humor. Partes gagas, como a do meu casamento no Limoeiro, a aventura no Mucifal, proezas nas Caldas, as negas a várias fodas com mulheres e até, com rapazes (O Zézito, de Ansiães), de quando ia quase matando o meu pai, os ratos filatélicos, a denúncia da quadrilha ao Óscar, os rapazes bons e a vida louca de Massamá, a Fátima e a Irene, o Rodinhas, é um carrossel de gente e de eventos de que poucos se podem orgulhar no Disparate. A vida com a Kalmeirona, as figuras literárias (as VACAS, tipo Cesariny, Natália, no passado e no presente, eis uma galeria à portuguesa em que não receio confronto). A ideia havia de brotar aqui, na miséria suja da Tribo dos Cospe Cospe.
E isso ainda é o folclore, o anedótico. O principal é a força íntima, a minha força, que me levou a casar no Limoeiro como me trouxe agora ao Barro. A força e/ou fraqueza. O que terá de ser levado a rir. Senão é uma série infindável de "Tomas!" para os outros que me rodeiam, para a Sociedade. Vítima (e carrasco; como eu fui carrasco com a irene, o Paulocas!) mas a rir e risível. No fundo dos fundos, uma MORALIDADE  e a sua opção consciente ou irreprimível."



o silêncio, esse embuste

O silêncio
não rompe aurículas
não fura tímpanos
não desagua.
O silêncio é sangue
sem líquido,
não dá descanso
não alimenta
não se multiplica.
O silêncio
é uma armadilha
que tem o vazio
como isco.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Freud explica

Esta noite passei umas horas em branco a tentar perceber a causa do problema que me tem atormentado nos últimos tempos. E realmente Freud explica muita coisa. Este meu vício só pode ter origem num sentimento enraizado nos primórdios da minha infância. É como se tivesse medo de despedir a parte mais antiga da personalidade. Como se  a pessoa formada por camadas tivesse relutância em perder aquele núcleo primordial, num medo de desintegração ou perda de identidade. E na falta de poder manter o alvo desse sentimento (essa é a parte saudável da coisa) encontra um substituto que alimenta o mesmo ambiente emocional. Tudo criado e mantido pelo inconsciente, sem pingo de elaboração racional.
Muito tenho admirado Freud ao longo da vida. A porra toda é que Freud lá explicar explica, agora resolver é que resolve muito pouco, ou nada.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Mulher-estátua




Nunca fui de paninhos quentes, pezinhos de lã, eufemismos no geral, já da hipérbole não poderei dizer o mesmo, feitios.
Consequências, há que arcar com elas, ainda para mais quando somos nós a provocar as circunstâncias que as causaram.
Dizem que não há nada como um dia atrás do outro, balelas. Os dias são todos clones do dia inicial, sempre com as mesmas horas, os mesmo minutos, os mesmos segundos, as mesmas interrogações, não acrescentando nada, nem retirando, ao que lhes antecede.
Por isso nem oiço o que me contam, sabem lá do que falam, nem calculam. Tudo palavras inúteis, generalistas, que acertam ao lado da mosca por um país inteiro de distância, tretas.
Viver é isto mesmo, actuar como uma barreira. O vento vem, a chuva cai e não nos movemos um milímetro. Permanecemos imperturbáveis, sem ceder movimento, fiéis a nossa posição, qual resiliência qual quê.
Não há lugar para condescendências e arrependimentos, fraquezas de espírito.
Toda a acção é seguida de uma reacção correspondente, há que pegar o touro pelos cornos (ainda que de touro tenha pouco e de cornos em demasia, tudo figuras de estilo, bem entendido) e aguentarmo-nos à bronca, nada de sucumbir.
Pelo menos é assim que entendo as coisas, resistência, eis o truque que não é truque nenhum, é uma filosofia clara como água, à vista de todos, sirvam-se consoante a conveniência e vontade.
E se no final de tudo isto me apetecer gritar hei-de absorver o uivo louco na goela e permanecer calada e contida, mulher-estátua.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

os impiedosos

a piedade
como um pregão
de peixe fresco
na madrugada
salutar
revelador


à noite
a piedade caindo
da boca
como o leite creme
à sobremesa
espumando
nutritiva
convicta.


Na hora da verdade
a fragilidade
como álibi
uma incansável
inconsciência
como atenuante
hóstias de camarão
que se desfazem
em saliva
entre dentes.

domingo, 10 de agosto de 2014

OURO E CINZA



Ouro e Cinza é um livro de crónicas de Paulo Varela Gomes. São crónicas que haviam sido publicadas em várias revistas e jornais e que agora foram compiladas e editadas pela Tinta da China. E em boa hora o foram pois, andei distraída a ler na imprensa escrita os mesmos cronistas de sempre, como quem coleciona os meus cromos, e me passou ao lado os textos do PVG. Costumo estar atenta nos livros desta editora. A partir de agora não voltarei a cair no mesmo erro. Paulo Varela Gomes, eis um nome que despertará toda a minha atenção daqui em diante.


Chamaram-me a atenção as crónicas sobre animais. PVG escreve sobre animais, especialmente sobre cães, com uma sensibilidade rara que comove.



(...) "Há nos humanos um desequilíbrio congénito que se exprime numa insatisfação que não é constante mas é frequente.
Ora, não sucede isto com os animais. Se os alimentarmos, se lhes dermos abrigo, espaço e companhia, se lhes cuidarmos da saúde, se os amarmos, eles são felizes, esfuziantemente felizes, sempre. A infelicidade é a excepção na vida dos animais amados, e não, como no caso dos humanos, a regra. Isto quer dizer que nós, que partilhamos a experiência irreversível do gosto pelos animais, conseguimos por vezes trazer a felicidade absoluta a algumas criaturas deste planeta.
A felicidade dos animais ainda é uma ideia nova na Terra. Estamos a tentar explica-la e impô-la. Pedimos desculpa pelo incómodo causado."


Nem todas as crónicas do livro estão ao mesmo nível. Mas algumas são tão boas, tão tocantes que chegam a doer, a angustiar. E a querer ler mais, muito mais. 


"Uma vez, no Rio de Janeiro, passei por um miudito deitado numa sarjeta seca de uma curva muito apertada. Os carros passavam-lhe as rodas rente à cabeça, um após outro. Ninguém fazia menção de parar. Dobrei-me para ele e reparei que chorava convulsivamente. Tirei-o da rua a custo. O patrão tinha-o mandado fazer um pagamento mas tinha sido assaltado. Estava ali à mercê da sorte. Não sabia se queria morrer, mas também não sabia como continuar a viver."



Existem no livro um secção de crónicas escritas na Índia. Já li vários livros sobre a Índia, todos muito bons, de várias editoras, incluindo a Tinta da China, que tinham originado em mim a convicção de que este era um país a evitar. Eis que leio uma colecção de páginas tão inusitadas e interessantes que faz retirar da minha lista de países riscados este exótico destino. Não sei se lá irei um dia mas confesso que fiquei curiosa quanto à minha reacção à Índia que tanto apaixonou PVG.



"Creio que aqueles de nós que amam a Índia o fazem pela mesma razão que leva os outros a ter medo dela, ou nojo. Não se trata dos monumentos e da miséria, respectivamente. da explosiva variedade de paisagens, e do atraso. Da vastidão das distâncias, e da claustrofobia das multidões. Do cheiro da fruta... e do cheiro do lixo. Trata-se de que tanto os amantes da Índia como aqueles que lhe são alérgicos são forçados a passar por uma prova de fogo da qual a maior parte das vezes nem sequer têm consciência: antes de ser possível repousar no seio da Índia ou fugir dela para nunca mais, atravessa-se um período de loucura, mansa ou feroz, transitória ou irremediável, que acomete todos os europeus, quase sem excepção e que se exprime pela alacridade exuberante, o ataque de pânico, a tensão de todos os momentos, que tantas vezes testemunhei - e sofri. Mais que o calor repentino, e depois líquido, contínuo, incansável, é a dilatação descontrolada dos poros e dos sentidos, imersos numa atmosfera vegetal pastosa que cheira a lixivia dentro de casa e legumes podres na rua. É como se ficássemos nus, como se tivéssemos perdido a pele com que nascemos e aquelas que a educação nos deu, a roupa que se torna inútil num assalto do suor, dos escapes, da chuva torrencial e quente da monção. É a higiene pessoal que se torna ridiculamente irrelevante perante o suor, a lama, a impressão de sujidade de cada parede, cada janela, cada pavimento. São as nossas reservas e boas maneiras, inúteis no caldeirão de gente onde mergulhamos e que nos toca, nos olha na cara e faz corpo connosco, encostando-se, roçando-nos, trocando de cheiros com o nosso."

sábado, 9 de agosto de 2014

Síndrome

Tu tens a síndrome
eu apenas a solidão
sem nome.
Separam-nos,
além do mais,
o diploma
e o diagnóstico.

Metade da Fotografia

Metade da fotografia
rasgada,
eu,
nesse meio
termo
cortado
à faca,
cutelo fundido
batido na mesa,
o punho,
o papel triturado
e metade da fotografia
na minha mão,
eu,
a olhar para mim
como dois pontos
de interrogação
a cair do céu
confetes
como chuva ácida
em calcário branco,
metade da fotografia
contra mim,
eu de corpo inteiro,
metade da história
rasgada
a sangue frio.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Longe De Qualquer Estrada




Letra e música de The Handsome Family
Tradução de Nuno Miguel Lopes



Do planalto poeirento a sombra dela cresce indistinta
Escondida nas ramagens do creosoto venenoso.
Serpeia lentamente os espinhos em direcção ao sol fervente,
E quando lhe toquei na pele, os meus dedos escorreram sangue.
No crepúsculo que se aquieta, sob uma lua prenha prateada,
Vim caminhando com o vento para ver os cactos florir.
Uma estranha fome assombrou-me; as sombras vagas dançaram.
Tombei ao toque espinhoso e senti uma mão trémula.
Quando a última luz aquece as pedras e se desdobram cascavéis,
Os gatos da montanha virão arrastar para longe os teus ossos.
E ergue-te comigo para sempre através da areia silente,
E as estrelas serão os teus olhos e as minhas mãos serão o vento.

muro






em frente ao muro escuto um silêncio por descodificar. Palavras invisíveis que voam de lá para cá para as quais procuro solução.  O muro, grosso e fundo, evita o vento e a face das palavras. Vêm sem rosto e sem voz. Abandonadas e sós. Chegam confusas e não querem colaborar. O muro impenetrável e sombrio, como a minha pele, mantém-me na ignorância. E não há maior crueldade que a que vem da ignorância.

Não é uma ideia

Não, o amor não é uma ideia.
O amor é um sentimento.
O amor vem do corpo e chega, ao fim de certo tempo, à mente. Nesse momento temos consciência dele. Podemos então ter uma ideia do amor. Essa ideia pode dar origem a outra ideia. O amor passa a ser um eco na nossa mente, um eco que em vez de perder intensidade, aumenta a cada reverberação. Mas tudo começa com uma modificação que ocorre nas profundezas do corpo.
Quantas vezes fazemos a pergunta " quando é que comecei a gostar desta pessoa?" E o máximo que conseguimos lembrar é o vago momento em que nos apercebemos do sentimento. Mas sabemos então, que ele já lá estava antes, subterrâneo, enterrado na pele, no ventre.
Há um instante em que os sinais que chegam à mente são tão fortes que acordam a consciência e então dizemos, muitas vezes com imenso espanto, "gosto desta pessoa".
E depois é tarde para recuar.
Porque a partir daí todos os pensamentos vão inflamar essa percepção, esse sentimento. Todos os pensamentos se agregam, como uma cola, a essa imagem tornando-a cada vez mais acesa, mais forte, mais irremediável.


O amor sente-se. E só depois se pensa. E depois passa a sentir-se mais e mais.

Pessoas

Explicas
que não te vejo
como és, no espelho.


Não poderia ver
essa imagem.
Vejo uma outra pessoa
que não nega a primeira.
É a pessoa que sinto,
é a pessoa que vem
da pessoa que és.
E se visse, a do espelho
não teria este sentimento
de forma mais incondicional.
Nem menos.

"AO ENCONTRO DE ESPINOSA"




António Dámasio no livro "Ao Encontro de Espinosa" dá-nos a conhecer algumas descobertas da ciência nos sobre as emoções sociais e a neurologia do sentir.
Damásio conta-nos que o seu filósofo predilecto, Espinosa, tinha, no passado, teorizado sobre emoções e sentimentos utilizando apenas a razão e chegado a teorias com muitos pontos comuns com as conclusões que a sua equipa de neurobiologistas, e outras, têm chegado nos dias de hoje.


Deixo aqui algumas citações que considero essenciais à compreensão do que são emoções, sentimentos, pensamentos, consciência, mente e corpo.




"Na realidade, são os sentimentos que constituem sombras das manifestações emocionais."
"Temos emoções primeiro e sentimentos depois porque, na evolução biológica, as emoções vieram primeiro e os sentimentos depois."


"Mas a experiência da dor ou do prazer não é a causa dos comportamentos de dor ou de prazer, e não é sequer necessária para que esses comportamentos ocorram."


" Como acontece frequentemente quando um dispositivo novo é incorporado no repertório biológico, a natureza serve-se daquilo de que já dispunha, o que, no caso do sentimento, nada mais é que a emoção. No princípio foi a emoção, claro, e no princípio da emoção esteve a acção."




" De um modo geral, os sentimentos traduzem o estado da vida na linguagem do espírito."
"Sentimentos são percepções".


Os sentimentos emergem quando a acumulação dos pormenores mapeados no cérebro atingem um determinado nível."
"Quando se remove a essência corporal, a noção de sentimento desaparece. Deixa de ser possível dizer "sinto-me feliz" e passamos a ser obrigados a dizer "penso-me feliz"
"O substrato imediato dos sentimentos é constituído pelos mapas cerebrais do corpo."
"Um sentimento é uma ideia, uma ideia do corpo, uma ideia de um certo aspecto do corpo, quando um organismo é levado a reagir a um certo objecto ou situação."


" Os objectos e situações que constituem as origens imediatas da essência do sentimento estão colocadas dentro do corpo e não fora do corpo. Os sentimentos são tão mentais como qualquer outra percepção, mas os objectos imediatos que lhes servem de conteúdo fazem parte do organismo vivo de que os sentimentos emergem."


Para além de estarem ligados a um objecto imediato, o corpo, os sentimentos estão também ligados ao objecto emocionalmente competente que deu início á cadeia emoção-sentimento. De uma forma bem curiosa, o objecto emocionalmente competente é responsável pelo estabelecimento do objecto que está na origem imediata do sentimento."


"... os sentimentos não são de todo uma percepção passiva, um relâmpago que desaparece da nossa vista."


" Na realidade, contudo, sentir, leva o seu tempo."


"Aquilo de que nos damos conta é uma série de transições e, nalguns casos, uma luta aberta entre as alterações do corpo, iniciadas pela emoção, e a resistência que o corpo. oferece a essas alterações."


" Está bem de ver que esta perspectiva de forma alguma nega a realidade dos objectos. Os objectos são reais. A perspectiva também não nega a realidade das interacções entre o objecto e o organismo. E, evidentemente, as imagens também são reais. Contudo, as imagens de que temos experiência são construções provocadas por um objecto e não imagens em espelho desse objecto."


" Não há, que eu saiba, qualquer imagem do objecto transferida opticamente da retina para o córtex visual. A óptica pára na retina. Da retina para diante ocorrem transformações físicas em diversas estruturas nervosas a caminho dos córtices visuais, mas não se tratam já de transformações ópticas."


" A mente existe porque há um corpo que fornece os seus conteúdos básicos"


"A mente existe para o corpo, está empenhada no contar da história daquilo que se passa no corpo, e utiliza essa história para melhorar a vida do organismo. O cérebro está repleto dos sinais do corpo, a mente é feita desses mesmos sinais, e ambos são os servidores do corpo."


"Qual é a grande contribuição de Espinosa na resolução do problema mente-corpo?
(...) mente e corpo são processos mutuamente correlacionados que, em grande parte, representam duas vertentes da mesma coisa.
Em 2º lugar, que, por detrás, da dupla face destes fenómenos paralelos, há um mecanismo que permite representar os acontecimentos do corpo na mente; que, apesar da paridade da mente e corpo, há uma certa assimetria nos mecanismos que se ocultam por detrás destes fenómenos. Espinosa sugere que o corpo molda os conteúdos da mente mais do que a mente molda os conteúdos do corpo, embora os processos da mente também influenciem os do corpo. Por outro lado, as ideias podem criar outras ideias, numa autonomia criativa a que o corpo não tem acesso."














sábado, 2 de agosto de 2014

O Rio Zangado






Letra e música de The Hat
 
Tradução de Nuno Miguel Lopes
 
 
 
O Rio Zangado
 
 


 
O vazio fado por nós confessado
No instante do dia mais esbatido
Em Vilautomática produzem estática
Como a presa o seu débil triste gemido
 
O sabor a fel, o rosto invisível
Das crianças perdidas e olvidáveis
A negra necessidade, a lenta celeridade
As dívidas mais irreconciliáveis
 
Estas fotografias nada significam
Ao veneno dado a engolir
Antes da glória do momento
Já a luz se começa a extinguir

Enquanto fingíamos que não víamos
O custo terrível de tudo o que perdemos
O preço saldado por este instrumento malvado
A pagar até ao dia em que nada teremos
 
O rio pressente para onde vai a corrente
Essa luz que devemos destruir
As circunstâncias conspiram manigâncias
que incendeiam o método que nos servir

Estes homens mortos caminham sobre a água
Corre-lhes nas veias sangue gelado
Ao entrarmos nós na chuva
Eleva-se o rio zangado

Estas fotografias nada significam
Ao veneno dado a engolir
Ao entrarmos nós na chuva
Eleva-se o rio zangado


Um Poema de Mark O'Brien


Tradução de Nuno Miguel Lopes


PARA NINGUÉM EM PARTICULAR



Deixa que te toque com as minhas palavras
Pois as minhas mãos jazem prostradas
como luvas vazias
Deixa que as minhas palavras afaguem os teus cabelos
Deslizem pelas tuas costas
E façam cócegas no teu ventre
Pois as minhas mãos
Leves e em voo livre como tijolos
Ignoram o meu querer
E teimosas recusam conceder
os meus mais íntimos desejos
Deixa que as minhas palavras penetrem a tua mente
Carregando tochas
Aceita-as de boa vontade em ti
para que te possam acariciar docemente
por dentro