sábado, 30 de abril de 2016

profissional do vício


O profissional de saúde
proibiu o vício
que faz eclodir duas montanhas
no meu peito
à velocidade de um comboio chamado contágio
e congrega espasmos e medos
na sobrecarga dos músculos
o vício que eriça o ventre
o vício que se propaga na volta
correio que a saliva traz

que exagero
ó senhor profissional
que excesso zelo
este é apenas um singelo vício
inocente no impacto estrondoso
imponente sim
e no entanto doce

ainda está por vir o vício
que me há-de matar
se for outro que não o maior de todos
e haverá maior vício
que viver?













terça-feira, 26 de abril de 2016

Histórias para não contar




Antigamente tinha sempre muitas histórias para contar. Por isso escrevia. Escrevia para mostrar aos outros o que me tinha acontecido ou o que via acontecer à minha volta. Escrever era revelar. Como na Fotografia.
Agora a tarefa tornou-se mais complicada. Quanto mais vivo mais tenho o que escrever e menos me lembro dos pormenores. Agora que existe uma história, a minha história, e a ambição de a contar, veio a memória e baralhou-me os capítulos. O tempo roubou-me as certezas e tudo se apresenta trémulo, desfocado, duvidoso. Entre o que aconteceu e o que consigo lembrar não imagino onde fica a verdade.
Talvez por isso tenha começado a escrever poesia. A poesia serve mais para esconder do que para contar. E o que tenho para colocar na página são coisas ocultas, as quais, eu própria, só consigo alcançar de forma parcial.

músculo usado

Geometric Heart, Kenal Louis


Aqui vos trago
este músculo usado,
entrego também os pontos,
os arames que o prendiam,
as correntes, os freios
de travagem.
Agradeço outro para a troca.
Aqui repousa
este músculo usado
nas minhas mãos,
ainda mexe
batendo baixinho.
Quero trocar por um igual
mas diferente
(é preciso sinal?)
o último modelo, talvez,
o de couraça metálica
resistente aos impactos
e de pequenos orifícios
para a respiração das feridas.
É caro.
Mas dura uma vida.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

sonho mau


The Reclining Womam, Egon Schiele


o corpo cola
o chão da cama
suando
lençois de lama
queima o colchão
essa chama
o sono incendiado

domingo, 17 de abril de 2016

ilhas

Desert Island, Sean Coen



ilhas
ilhas
ilhas
somos ilhas
desertas, sedentas, obstinadas
as folhas da palmeira
são os braços
incapazes de remar
as pernas estão
fincadas no oceano
o corpo não se move
não se move
o corpo não se move
penas estendidas
paradas ao sol
ilhas
ilhas
somos todos ilhas
ilhas
tão longe da terra
como do céu
e a água é o fio
o fio
que nos liga
e separa

quinta-feira, 14 de abril de 2016

causalidade



  
Uma aspirina
ao pequeno almoço
não causa atropelamento.
Mesmo que eu hoje
tenha tomado uma aspirina
ao pequeno-almoço
e cinco minutos depois
levasse
com um autocarro em cima.
Por acaso foi numa passadeira.
Não matem as zebras, por favor!
Oiço o amola-tesouras ao fundo,
anunciando-se com a sua flautazinha
costumeira:
sinal de chuva.