domingo, 30 de outubro de 2022

Do Lado Que Arde

 





Do lado que arde

                                escorre o nome

Do lado que arde

                                o amor à distância

Do lado que arde    

                              uma árvore a quem podaram de mais

Do lado que arde

                                um amor-problema para me situar no mistério

Do lado que arde

                              a minha falta de inclinação para a inocência

Do lado que arde

                              uma flecha aponta para o futuro

Do lado que arde

                                uma parte afunda suavemente

Do lado que arde

                                 um  nevoeiro mercurial 

Do lado que arde

                                o destino tenta a sorte

Do lado que arde

                                a morte ali a olhar

Do lado que arde                                                                                                                                                                            

                                pontapé de baliza a tentar recomeçar a vida

Do lado que arde

                                uma armadilha

Do lado que arde

                                um sabor de azeitona misturado com álcool

Do lado que arde

                                terá a verdade tripas?

Do lado que arde

                                a memória manda no mundo 



Nota: Poema de Rasura do Livro "Do Lado Que Arde" de Mónia Camacho


                      



                                    

                                

                                  

                                

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Confissão Alentejana in "De Língua e Linguística" de José Augusto Carvalho





 O conto seguinte apresenta palavras também desconhecidas pertencentes ao

dialeto alentejano, mas o leitor o entenderá como um texto em língua portuguesa. Para

melhor entendimento do texto, a própria autora apresentou a explicação das expressões

usadas, consultando o Dicionário de falares do Alentejo, de BARROS, Vítor Fernando &

GUERREIRO, Lourivaldo Martins.

CONFISSÃO ALENTEJANA

Conto de Ana R. Marques reeditado em 07-03-2009 (Recanto das Letras.

Código do texto: T 1309830)

__ Louvado seja Jesus Cristo!

__ Louvado seja sempre.

_ _ Há quanto tempo não te confessas, minha filha?


__ Vai fazer um mês, Senhor Padre.

__ Ó minha filha, então por quê? Costumas vir todas as semanas. O que te

apoquenta?

__ Senhor Padre, nem sei como lhe dizer. Anda um assunto aberrundando-me,

mas...

__ Procura-me o que quiseres, filha. Não deves ter melindres de desabafar com o

teu confessor.

__ O meu noivo, Senhor Padre... Está em alas para experimentar...O que as

pessoas fazem depois de casadas...

__ Agora cá! Mas vocês não são casados, valha-me Deus! Não podem ir contra as

leis de Deus, filha! Querem casar ou querem ajoujar-se?

__ Casar, Senhor Padre. Mas ele diz que entre noivos não haveria de ser grande

pecado.

__ Isso é lá a julgadura dele. Mas é a ele que cabe estabelecer a lei de Deus? Que

pachouvada! Tu tens de ser rabeta e ter tinório.

__ Então, como devo fazer? Não quero que ele fique alcanchofrado comigo. E,

Senhor Padre, nós estamos muito encegueirados um pelo outro. Ele anda

desinsofrido.

__ Eu entendo-te, filha. O caso está bichoso. Um homem não é de ferro, e uma

moça também não. Se não existissem esses desejos ninguém casava. Tal como

se não existisse o paladar ninguém comia e morríamos todos. Acontece que o ser

humano quando é cristão tem de seguir as boas leis de Cristo. Não nos devemos

afastar do Evangelho. Atinta nas minhas palavras, pois elas são para teu bem.

Mas para que te possa aconselhar melhor deves contar-me tudo o que vós tendes

feito durante o vosso derrete.

__ Como assim, Senhor Padre?

__ Tudo. Conta-me tudo. Já o viste à espervela? Ele toca-te?

__ Ai Jesus! Que entalo!

__ Mexeu-te nas lanteriscas? Não sejas marreta e conta-me.

__ Senhor Padre, quando estamos beijando ele quer que lhe mexa no martelinho.

Mas eu não sei se devo. Mas nunca o vi nadavau.

__ Ele é merlo mas tu terás de ser mais mérrula. Não podes albardar isso. Tal mimo

desperta os apetites do verdugo e num flaite estás em privança. Não te esqueças

que podes ficar embaraçada. Já viste que papel seria?

__ Não quero isso, Senhor Padre. Que dava um patatum à minha mãe. E o

arrecuão que o meu pai me daria até me causa agasturas.

__ Tem calma, filha. Tenta apressar a boda. Podes beijá-lo com caranço mas sem

escofiar as lanteriscas do moço. Não tomes isto como um recado. És esgalhada,

empapoilada e tens andado a aziá-las. Ele também te mexe na rola?

-- Ai, Senhor Padre!

-- Se não me contas a mim hás-de contar a quem? Dou-te bons conselhos no

sentido de evitar a gadela. Todo o homem é pirata. .Sei que não és moça alvarina.

Confia no teu confessor. É para tua boa orientação, filha. Apressa a boda. Mexeu-

te na pinta? Por cima ou por baixo dos froxéis?

-- Por baixo,l Senhor Padre...

-- Não é galinha-morta esse teu noivo, não! E enquanto isso acontecia estavas

dando-lhe galanduchas no seu romão-cego?

__ Sim, Senhor Padre...

__ Não é nenhum mata-formigas, não. Não ficaram almareados? Conseguiram

parar a tempo?

__ Sim, Senhor Padre... Mas está ficando cada dia mais difícil. Dá-me a espertina

de noite. Sinto uma calorina pelo corpo todo. E passo o tempo afofando estar com

ele outra vez.


__ Apressa a boda! Não te deixes enodoar, filha. A vila está cheia de trogalheiras

sempre à espreita. Fazem de ti uma bagaça e lá vai o noivado para o maneta.

__ Isso é que nunca! Dava-me uma travadinha que nunca mais me recompunha.

Vou ter cautelas, Padre.

__ Agora diz três Ave-Marias e o acto de contrição. Para a semana voltas cá. E

tornas a contar-me tudo.

Pequeno glossário para compreensão do conto. FONTE: BARROS, Vítor Fernando &

GUERREIRO, Lourivaldo Martins. Dicionário de Falares do Alentejo. 3.ed. Lisboa: Âncora

Editora, 2013.


Aberrundar: atormentar

À espervela: à mostra, a nu

Afofar: achar gosto antecipado a qualquer coisa

Agasturas: ânsias

Agora cá!: Não penses nisso!

Ajoujar-se: amancebar-se

Estar em alas: estar ansioso

Albardar: permitir

Alcanchofrado: zangado

Alvarina: leviana

Arrecuão: descompostura

Atintar: ver bem

Bichoso: difícil de resolver

Calorina: calor

Caranço: ternura

Derrete: namoro

Desinsofrido: impaciente

Embaraçada: Grávida

Empapoilada: bem vestida, garrida

Encegueirados: apaixonados

Enodoar: Manchar a reputação de alguém

Entalo: Aflição

Escofiar: acariciar

Esgalhada: airosa, formosa

Estar a aziá-las: estar a pedi-las

Num flaite: num instante

Froxéis: roupa interior de senhora

Gadela: cópula

Galinha-morta: tolo

Julgatura: opinião

Lantriscas. Partes íntimas

Marreta: teimosa

Martelinho: pénis

Mata-formigas: parvo

Merlo: esperto

Mérrula: astuta

Nadavau: nu

Pachouvada: asneirada

Papel: escândalo

Patatum: chelique

Pinta: vagina


Pirata: malandro

Procurar: perguntar

Recado: repreensão

Romão-cego: pénis

Rola: orgão sexual feminino

Tinório: muito juízo

Verdugo. Homem musculoso


Quem quiser pode adquirir a obra aqui: https://www.martinsfontespaulista.com.br/de-lingua-e-linguistica-1008753/p?idsku=1008753&utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=&utm_content=&gclid=CjwKCAjw7p6aBhBiEiwA83fGupQLFcF1GJExP4QTm9w0BN3e5eZW0Kt1SU1LJiXAxKbBBZn4zg7rahoCQCgQAvD_BwE

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Martini




 A Lua em loop

e eu rodando

atrás dela

Martini, esse combustível

fóssil

na terra rugindo

e eu coiso

em loop

assobia lá fora

o temporal à janela

vai-te embora cão

digo eu coiso

de retro Barrabás

o Martini na mão

gelo até derreter o coração

num mar de palha

ao alto as estrelas 

caladas

que nem ratos

só a rabanada de vento 

nas vidraças

o copo redondo

na conquista da boca

aberta a época de caça

aos patos voadores

no ar da tarde

a estrela da serra

 e eu coiso

no chão caída

o galo a cantar na cabeça

e à meia-noite amar

a música era o Martini

a marca dança


terça-feira, 16 de agosto de 2022

A Amante do Tenente Francês




Não serei 

amante do tenente francês

nada contra amantes

nem francês

inglês

bávaro

ou peruano


sagrado

o desejo


Amantes:

mais vale tê-los

que contrair-lhes

a patente

sábado, 9 de julho de 2022

Natureza Morta



Era noite

Era dia

Era dor

O homem levanta-se para um piano

enfrenta a morte com sons


Lá fora a fome ronda as casas

uma crosta enorme sobre a pele de Lisboa


O mundo desaparecia

por detrás da música

uma ameixa que se ilumina

a si própria

no centro do quadro

 

A larva é o coração de tudo


(rasura do livro Natureza Morta de Paulo José Miranda)

terça-feira, 5 de julho de 2022

A Imortalidade

 




Ao som do silêncio

dos pássaros adormecidos

no alto das árvores

um par de amantes 

inseparáveis:

A Morte

Romeu

estende a mão à Imortalidade

Julieta

na sedução de um gesto


Dançam no abraço 

ancorado

a valsa 

do esquecimento


um leve sopro

para além do Tempo


(poema por rasura e versos livres)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Sétimo Dia

Zeus, Foto de Rushan Gilmanshin




Talvez o problema

tenha sido escrever

Deus com maiúscula


deus

é mais tranquilo

e realista


explicação para o mal

que acontece por vezes

 às pessoas boas


a César o imposto de César

ao Homem a ira do Homem

a maiúscula a quem a trabalha


a deus a paz

o pão 

a habituação

de quem se vai espreguiçando

no descanso 

do sétimo abençoado

e eterno dia

terça-feira, 3 de maio de 2022

Já Não Há Ladies No País




 No meu tempo 

é que havia Ladies a valer

agora é só Lunas

e Ninas

muitas Méis

Marias

Kyras

Kikas

uma ou outra

Becas 

Noa

uma ambígua Madona


e todas elas se sentam

e todas elas dão a pata

a toda a gente

em troca do biscoito

com alegria

e extrema facilidade

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Baixinho

Speak Low:
espectáculo da companhia de Wim Vandekeybus



Para lá da janela, uma lágrima branca vem escorrendo das nuvens: um rasto de avião que desce à terra. É a maneira que o céu tem de chorar num dia luminoso e ameno de inverno.

A rapariga acordou há pouco e lembra-se que faz  um mês que o homem desapareceu. E com ele quase todos os vestígios da sua presença.

"Fala-me baixinho, querido, fala-me baixinho, os nossos dias de verão foram murchando cedo demais."

As suas palavras já não a inundam, diariamente, por todas as frentes: cartas, mensagens, publicações, telefonemas, ou presencialmente sob a forma de monólogos, discursos e até sermões. 

Agora, todos os sinais se apagaram. Impera o silêncio no quarto. O planisfério na parede em frente à cama é um mundo sem som. O exército de palavras bateu em retirada, derrotado.

A rapariga recorda um tempo de prazer, oferecido pela  sonoridade das frases curtas sussurradas ao ouvido na cama.

A voz do homem, uma voz de peito, densa e encorpada, ampliava-lhe o desejo até ao arrebatamento final.

Um dia, por um qualquer motivo obscuro, os ouvidos não lhe devolveram a sensação de calor daquela voz redonda e escura. Estava surda para o ruído desse amor. Quebrara-se o encanto.

"Fala-me baixinho, o nosso momento vai deslizando veloz, como barcos à deriva somos varridos tão depressa."

Uma legião de cartas lhe enviou então, o homem apanhado de surpresa, tentando resgatar o feitiço.

A rapariga resistia a ler as epístolas.

Longas missivas de parágrafos fortes e imponentes como montanhas vinham em auxílio dos vocábulos orais,  irmãos do efeito acústico gorado. Ondas de texto atacando por vagas, sonhando provocar na imaginação dela o simulacro hipnótico dos murmúrios amorosos. 

Tinta gasta em vão. 

 A destinatária desistia de descodificar os signos suplentes. A escrita não foi capaz de excitar como as palavras aladas.  Pequenas pombas de ar que voavam do ouvido ao seu refúgio secreto.

"O tempo é tão velho e o amor tão breve. O amor é ouro puro e o tempo é um ladrão"

Ficava a olhar aquelas compactas muralhas de texto, apreciando-lhes a consistência sólida, a robustez, a tenacidade. Imaginava pequenas brechas nesses sólidos muros, construídos vocábulo a vocábulo como tijolos destemidos, teimosos. Desconfiava que haveria de existir um ponto fraco naquela construção magnífica por onde a estrutura  começaria a ceder desamparada, até sucumbir no chão.

Adiava a implosão, a leitura, a confirmação do fim.

" Estamos a ficar para trás, querido. A cortina desce e tudo acaba depressa demais. Baixinho, fala-me baixinho."

Faz hoje um mês que o homem desapareceu a seu pedido,  a rapariga prepara-se para conhecer a primeira carta.

O dia abriu um sorriso de finos cirros. A rapariga desiste da leitura, deixa o quarto, vai em busca da resposta a uma última pergunta. 





sexta-feira, 8 de abril de 2022

Olhos Azuis Cabelo Preto

 

Marguerite Duras



Na parede treme o Sol

ao nível do mar

o rosto coisa incerta

entre a seda e a morte

carícia infinita

um adeus no corpo mártir

cabelo preto


A palidez dos amantes

ele

ela

órfãos de olhos

azuis

náufragos

boias rotas do barco

que passou

choram como se amassem

presos dentro de um livro

devolvidos à diluição da cidade

o corpo abandonado num deserto

azul inteiro que olha

único olhar para um amor inteiro


terça-feira, 5 de abril de 2022

Putineiro Engraçado

Putineiro engraçado

engraçado no falare:

ò Io ai que a Rússia do Putin

ó i o ai pode a Ucrânia  integrar


Putineiro engraçado

é apanhado do clima

ó ió ai devia ir à terra dele

ó ió ai, dar um salto a Kolyma


Já tenho papel e tinta

caneta e mata borrão

Ó i ó ai p'ra escrever ao putineiro

ó i ó ai um valente adeusão


Putineiro é casado

é casado e tem mulher

Ó i ó ai vou escrever ao putineiro

ó i ó ai e bloquear se eu quiser







quinta-feira, 31 de março de 2022

Marguerita




Despeço o véu

a venda

o verso

o código do poema

os signos moucos

o mundo todo 

agora

a descoberto

às escâncaras

nuvens  claras

em ondas

valsando

a cavalo do céu



uma feiticeira livre

voando

invisível 

a Lua por baixo

dos pés

na noite de mil

olhos

nua

no regresso

a casa


terça-feira, 15 de março de 2022

O Contrário de Roma

Óculos coloridos de Hans Hollein




Na vez do coração

um fogo frágil

alçapão

cidade de borboletas

negras

o contrário de Roma


a sede incendiada


mais cedo que tarde

das cinzas amargas

tecem-se memórias



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

McNamara

McNamara surfando uma onda gigante na Nazaré



Dançar com Deus

não é só a boleia roubada 

à crista da onda

impossível

mas também o baile 

implacável

dos meus olhos

nos teus olhos

esse vaivém absoluto

e extremo de mar




segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O Verão a despedir-se

 



No quintal da mãe há uma figueira em fuga para o céu. Crescendo em altura, contrariando os padrões da espécie, tenta, talvez, proteger os frutos da cobiçosa mão humana. Ou pode ser, simplesmente, por altivez. Quem disse que todas as figueiras devem ser humildes?

Uma árvore é uma cidade para os pássaros, escreveu Aquilino Ribeiro. Mas isso era dantes, no campo. Aqui, nos subúrbios da capital, uma árvore é uma aldeia despovoada de asas.

Escasseiam os sicófagos, pousando nestes ramos aéreos. Assim, vão amadurecendo virgens, os figos, aconchegando-se na rugosa folhagem protectora. Esborracham-se moles contra o chão. A pasta de melaço agarra-se teimosa ao pavimento. É preciso varrer com afinco e mangueirar na máxima pressão, durante um par de  horas para que tudo volte a ficar limpo. É setembro, os figos sentem pressa em desabrochar. 

O Verão a despedir-se.

A rapariga limpa o chão e as escadas de mármore diariamente. A pedra está preta. É uma azáfama tornar tudo branco outra vez. A orgulhosa figueira faz da rapariga um sísifo. 

No silêncio do dia vai tocando uma música que só a rapariga escuta: a mamã é giraça, o papá tem umas massas, por isso, cala-te miúda, não choramingues.

Há um momento de esperança, quando o saco cheio da papa de frutos fermentados e folhas velhas é colocado no lixo. 

E logo outro figo fará ploc, cumprindo a gravidade dos corpos. Mas neste momento o quintal está lavado e varrido e valeu a pena. 

Na manhã seguinte a rapariga retornará à rotina, no quintal da mãe. Novos frutos esponjosos irão resistir à devoração animal para se entregarem à  dureza inanimada dos minerais.

Miúda, acalma-te, não chores mais. Os peixes saltitam, o algodão cresce.

Haverá novo momento efémero de tarefa cumprida. A luta é inglória.

Num destes dias, pequena, vais crescer até ao céu. Vais abrir as asas e sair voando pelo mundo.

As vassouras repousam encostadas às sebes. A mangueira pinga, sem fé. Os cães observam distraídos.

Por enquanto fica tranquila, bebé, nada te faltará. Os papás estarão sempre por perto. Eles cuidarão de guardar as tuas costas.

Durante duas horas matinais, no setembro de um quintal de subúrbio, a vida torna-se uma pasta de melaço rijo. O Verão a despedir-se.