terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Poema de Joaquim Marques

Um Grito

Do silêncio se faz um grito
o corpo todo me dói
deixai-me chorar um pouco
aqui me falta uma luz
aqui me falta uma estrela.

Há sempre uma companheira
uma profunda amargura,
ai solidão,
ai quem fora escorpião
que te mordera a cabeça a Deus,
já foi para além da vida
e o que fui já não sou.
O mundo já me esqueceu,
sombra triste
encostado a uma parede.
Ó Deus, vida que tanto duras
Ó morte que tanto tardas
Ai solidão quase loucura.


Joaquim Marques (1920-2018)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

DANOS MAIORES, O LANÇAMENTO








Programa FEIO - 2018 - sábado, dia 15/12/2018.
14h30 – Abertura
15h00 – Álvaro Laborinho Lúcio / Cristina Maria Ovídio Baptista.
15h20 – *Apresentação de livros: Poemanifesto 2.0.18 – João Pedro Azul(org)/ João Silveira.
15h40 – Luis O Brito.
15h50 – Hugo Mezena.
16h00 – Pedro Proença.
16h10 – Andrea Zamorano.
16h20 – Rita Taborda Duarte.
16h30 – *Apresentação de livros: Danos Maiores de Ana Marques.
17h00 – Fernando Pinto do Amaral (Fernando PA).
17h20 – Valério Romão.
17h30 – Paulo José Miranda.
17h40 – João Paulo Cotrim.
18h00 – José Gardeazabal.
18h10 – Nelson Nunes.
18h20 – Patricia Portela.
18h30 – Joana Bértholo.
18h50 – *Apresentação de livros: Tenham Uma Boa Vida de Francisco Resende (apresentação também da “Colecção Crateras”, promovida pela EC.ON).
19h20 – Encerramento.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Séneca senão Seixas









Séneca senão
Seixas
Séneca e a cruzada
contra o espírito hesitante
sem ritmo próprio
o que se retrai em casa
expandindo-se na rua

Séneca denunciando a vida
um jogo ilícito
a farsa da variedade de atitudes
e terás de querer e não querer
sempre a mesma coisa
ó projecto de sábio

Seixas senão
Séneca
Seixas cancela a cruz
que prega o homem
à sua identidade

Seixas construindo
as próprias histórias
diariamente se instila
no ambulatório da metamorfose
uma estrela amanhã brilha
e hoje se apaga

É tão chato ter aquela velha
opinião formada sobre tudo
sobretudo sobre o Amor
e sobre tudo tudo tudo

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Barbi Presa

Pintura de Félix Labisse



Uma Barbi presa
nas fotos montra
à  vigilância do vício
a imagem encosta
presa fácil
uma Barbi presta
ao encontro do Mestre
dedicada monta



Uma fé sem freio
a nascer de baixo
apontando à foto
da medida plástica
o fetichista empresta
o domínio pronto
disposta ao mundo
uma Barbi aberta


A fé manifesta
no derrame o esperma
o fetichista ao leme
na luta espera
imagens caindo
são farpas esperança
cobrindo as fotos
da Barbi fera










quinta-feira, 22 de novembro de 2018

18 Anos



dezoito rondas
noutra terra atrás
a Fortuna tenra
urdia ainda
as suas teias
a meu favor
diria o estóico
percebi pelo meio
das montanhas
que umas pernas
se  abriam ao signo
da palavra vida
uivos para
uma outra vinda
quase pronta
toda troca
nutrientes
por tesouros
leite por lótus
calor por candura
uma alma
amanhecendo
na tarde dolorida
carris paralelos
principiando
a viagem
no comboio
da urgência
desse Amor










segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O Grande Escultor




O Tempo
desbravando
a carne
supérflua
direito aos ossos
libertando
a escultura
no interior
do corpo

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

GRANDE SERTÃO: VEREDAS


GRANDE SERTÃO: VEREDAS (Spoiler alert)





Riobaldo: viver é muito perigoso.
Diadorim: carece de ter muita coragem.

Este pequeno diálogo entre os protagonistas, que se repete ao longo do livro,é o núcleo duro da história, representa a relação entre os dois protagonistas, em redor do qual tudo vai girar.

É logo no início que nos é revelado o grande amor de Riobaldo pelo jagunço Diadorim. A par das descrições maravilhosas das belezas naturais da região, o velho Riobaldo (o narrador) vê-se a si mesmo deixando-se levar por um sentimento de grande delicadeza e ao mesmo tempo de uma força incomum, que nos toca profundamente.
Pensei, com perplexidade, que o livro era uma espécie de Brokeback Mountain brasileiro passado no Sec. XIX. Mas não.
Esta não é uma história de amor gay, não no sentido clássico do termo. Embora haja um homem que ama outro homem. Um homem de orientação heterossexual que se apaixona por um homem, que afinal era uma mulher. Mas ele só descobre a mulher depois da morte desta. O amor por Diadorim é sempre o amor por um homem.

Este não é um romance sobre o Género. Esta é uma história sobre Identidade.

Uma história sobre o Amor. E como o Amor, essa força avassaladora, pode ameaçar a construção frágil que é a Identidade de uma pessoa.

 Até metade do livro nunca desconfiei, nem por um instante, que o Diadorim não fosse homem. Achei esta luta interior do Riobaldo uma coisa extraordinária, que dilema, que drama, que guerra consigo próprio, que maravilha de revolução pessoal íntima! E quanto a mim, a história não precisava da revelação final, fazia sentido igual manter Diadorim homem. Mas percebo que fosse muito ousado para os anos 50. Ainda assim, fico curiosa sobre a reacção do público na altura. Abandonavam o livro a partir das primeiras dezenas de páginas ou adivinhavam logo o enredo final, sendo que dois homens amarem-se seria mais bizarro que ficção científica, entendiam logo que se tratava de uma mulher transvestida?

Tive então a triste ideia de ir espreitar ao Youtube a série da TV Globo, de 1985, haviam-me dito que era muito boa. Eu só queria ver um pouco do início, para ver o ambiente da coisa. Não passei do elenco: protagonistas: Tony Ramos e... Bruna Lombardi, ó merda, é uma mulher! E pronto, vi logo tudo, caldo entornado.

Claro que me choca muito o facto da história ficar toda deturpada na mini série (e no filme de 1965 é igual, é uma tal de Maria Clara a fazer de Diadorim). Já não é uma linda história de amor entre dois jagunços como é no livro. A homofobia é uma desmancha prazeres, em sentido lato.

Mas lá consegui continuar a ler o verdadeiro enredo do amor maior entre dois seres do mesmo sexo, do ponto de vista do Riobaldo. Diadorim sabia a verdade.

Comecei então a pensar que esta seria o argumento ideal para um realizador de cinema (e escritor, ele é escritor também, desde 2014, que boa notícia) chamado David Cronenberg, um tipo que tem como um dos pilares básicos da sua temática cinematográfica a Identidade.

Diz o Cronenberg numa entrevista que se pode encontrar no YouTube (Cronenberg on Cronenberg) : “Somos criadores na nossa própria identidade, embora se possa crer que é algo que nos foi dado,  temos de nos reconstruir todos os dias.”
E diz Riobaldo, a páginas tantas:
“ O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”
e ainda:
“Para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho-caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”

Riobaldo ao longo da história vai fazendo muitas perguntas ao viajante que o escuta. Mas existe uma pergunta oculta por trás de todas as questões: Quem sou eu?
O velho Riobaldo está também a reconstruir-se à medida que conta a sua história, está a descobrir-se, a reconhecer-se nos vários Riobaldos que vão surgindo com o passar dos tempos: o menino Riobaldo que passa o rio São Francisco, cheio de medo, com o menino Diadorim, o Riobaldo secretário e professor de Zé Bebelo, Riobaldo Tatarana, Riobaldo chefe dos jagunços, Riobaldo o mulherengo, Riobaldo o apaixonado por outro jagunço, Riobaldo o que tentou vender a alma.

Há uma parte em que Riobaldo é chefe, e está aprender a agir como chefe e o bando encontra um homem a cavalo numa égua com uma cachorra ao lado. E ele diz que vai matar o homem e nós damo-nos conta de que o velho Riobaldo está a relatar o que acontece ao Riobaldo que se observa a dar aquelas ordens aos seus homens, sem saber bem se consegue manter a sua própria palavra. Ora diz que é para matar o homem mas não consegue, ora diz que é para matar a cachorra mas também não pode e ainda tenta matar a égua e nem isso. Ele procura a sua própria alma através das suas acções, auscultando o seu coração para ver se realmente o Diabo já o fez refém ou se ele ainda é apenas o mesmo Riobaldo de sempre (e quem será esse?). Há aqui o velho Riobaldo que observa o chefe Riobaldo que se observa a si mesmo como uma pessoa separada da sua identidade. Uma Matrioska de Riobaldos.
(engraçado que na referida entrevista Cronenberg menciona Samuel Beckett como um autor que usa muito as personagens separadas na sua própria identidade)

Esta ideia do ser em construção também podemos ouvir em “Pano-cru” do Sérgio Godinho:
Ouve, meu amigo
põe a máquina a gravar
queria só explicar aqui
que eu sou como o pano-cru
como pano-cru
eu ainda estou por acabar
e como o linho vem da terra
assim viemos eu e tu
e como tu eu faço e amo
e luto e dou
e como tu eu estou
entre aquilo que já fiz
e aquilo que eu fizer
eu sou de pano-cru


Quem sou eu? pergunta Riobaldo. Sou destemido, sou bom, sou do Diabo, sou capaz de comandar, sou capaz de matar, de ser jagunço, sou do Joca Ramiro ou sou de Zé Bebelo?
“Que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traição minha, fôsse no que fôsse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa.”

Viver é muito perigoso. Uma Travessia. Muitas. Viver é a travessia. E é para essa derradeira, a maior de todas, que vai ser preciso a tal coragem, a coragem que Diadorim há-de sempre dar a Riobaldo. Começando no rio São Francisco e perdurando pelo Sertão a fora. Podemos dizer que a história acaba em tragédia. Mas o velho Riobaldo a certo ponto diz ao viajante: “ Ao portanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse.  Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia dêles fôr enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, na vai-a-vida inteira. Que; coragem- é o que o coração bate; se não , bate falso. Travessia - do sertão- a tôda travessia.”

Foi um amor vivido a meio termo, mas foi vivido. Apenas não foi consumado a nível físico. Havia coragem no coração mas não havia atrevimento suficiente para quebrar todas as regras do Sertão. Era uma desconstrução que ameaçava a própria identidade dos envolvidos.

E Diadorim? Não podia ela ter aberto o jogo? Riobaldo também diz ao viajante que ela lhe tinha negado  a verdade, culpando-a pela manutenção da impossibilidade falsa de serem dois amantes livres e plenos.
Mas também aqui é uma questão de identidade. Diadorim era jagunço. Não sabia o que era ser mulher. Pelas conversas que ouvia aos outros ela só sabia que “mulher é gente tão infeliz”. Revelar o segredo seria morrer antes de ressuscitar, mas ressuscitar numa forma alienígena. Diadorim desaparecia para sempre. Estávamos em 1890, não havia jagunças, só jagunços. Esta não é uma história de igualdade de género. É uma história sobre identidade e Diadorim era um homem aos olhos de todos. Aos seus próprios olhos. E haveria de morrer homem.

Que força estranha é essa, avassaladora, que faz ameaçar a identidade de uma pessoa, chamada Amor?
Dizem que surgiu como uma pulsão adaptativa/evolutiva, um factor que permite que duas pessoas se mantenham juntas para criar a descendência e preservar a espécie. Talvez tenha sido assim no início mas depois há-de ter ganho vida própria e seguido outras vias, é como um fogo fora de controlo, solto no mundo. Se não, vejamos, por exemplo: que vantagem adaptativa tem o amor por pessoas já falecidas? E o amor entre pessoas do mesmo sexo? O amor é tão inconveniente quanto murro em nariz quebrado. É impiedoso como um terrorista funesto. E não dá tréguas.
Riobaldo bem sabe disso: “Se é que é- eu pensei-estou meio perdido.”

A RODA GIGANTE (Com Spoilers, Brasil e Brad Pitt)








No passado Domingo foram as eleições presidenciais no Brasil. Cheguei a casa no final da tarde a tempo de ouvir as primeiras projeções de resultados.
Nunca umas eleições no Brasil tinham mexido assim comigo. Embora a vitória do Trump tivesse sido um evento de certa forma traumatizante à escala mundial, desde os tempos do primeiro mandato do Mário Soares que não me envolvia com tanto vigor (ainda que a nível virtual) numa campanha política. E desta vez nem sequer foi no meu próprio país.
Achei por bem descontrair antes do doloroso momento da confirmação do que haviam apregoado as múltiplas sondagens: a vitória do candidato de extrema Direita.


Escolhi um filme. Ainda dava tempo. A Roda Gigante, de Woody Allen. Em princípio desviaria a minha atenção para outros temas.  Em princípio desviou. Mas no fundo, no fundo, a conclusão veio bater na mesma tecla: a explicação de uma escolha que o ser humano faz. O que leva uma pessoa a agir, a escolher uma acção, cujas consequências são agudas, dramáticas, irreversíveis e moralmente questionáveis?



A Roda Gigante (Wonder Wheel), dizem que será o último filme do realizador. É um clássico, e ficará como um dos melhores da sua carreira. Absolutamente perfeito, em termos visuais, tem ainda uma interpretação fenomenal dessa grande actriz chamada Kate Winslet dando aqui corpo a uma personagem trágica que não ficará, em carisma e intensidade, atrás da Blanche DuBois de “Um Eléctrico Chamado Desejo”.


Ginny é uma mulher à beira dos 40 anos, na década de 50 do século passado. Ataque de nervos é pouco para explicar como se sente, o quanto lhe pesa o dia-a-dia, sempre que se arrasta para o emprego na marisqueira onde atende às mesas. O segundo casamento com um alcoólico em recuperação entrou na rotina desinteressante e enferrujada dos matrimónios meramente convencionais.

O cenário é Coney Island, Brooklyn, Nova York:  a praia, os carroceis e diversões de feira. A vida é recreio para o povo e uma pasmaceira infernal para Ginny, que já fora uma actriz jovem e cheia de potencial. E por um erro trágico da sua parte perdeu a carreira e quase tudo. Ficou com um filho pequeno e acabou por dar à costa num casamento cujo o único sentido é o desespero de causa, a sobrevivência. Ela sente que aquela empregada de mesa que vê no espelho é o derradeiro papel, no grande palco da vida, que lhe coube em rifa. Não é verdadeiramente a sua pessoa. Há um corte com a sua identidade.


Até que conhece um nadador-salvador. Ironia do destino e ironia do trocadilho. Tornam-se amantes e ela pensa que ele a irá resgatar a uma existência sem significado. Que a levará para um destino paradisíaco e a transformar novamente na mulher deslumbrante que fora em tempos, e que no fundo, ainda continua a ser.
Mas Mickey também não era um nadador-salvador no verdadeiro sentido do termo, nem no metafórico. Ele era um potencial escritor (personagem que faz lembrar todos as outras interpretadas por Woody Allen, que são sempre o próprio) e como tal interessava-se mais pelas histórias das pessoas do que pelas pessoas em si mesmas. A História trágica de Ginny fascinou-o mais do que a própria mulher. Que, entretanto, se foi tornando mais irascível, instável e insegura do que ele estava disposto a suportar.
Tudo isto se agrava com a chegada da filha do marido de Ginny, que vai despertar a paixão de Micky e o ciúme inflamado desta.
Carolina tinha uma história excitante para contar: andava a fugir da Máfia pois casara com um gangster. Claro que Micky ficou imediatamente hipnotizado pela narrativa.
Carolina gosta da madrasta e confidencia-lhe tudo o que vai acontecendo entre ela e Micky.
Por isso Ginny sabe que os dois estão a jantar na pizaria quando os mafiosos chegam para matar a rapariga. E logo aflita corre a telefonar para o restaurante a avisar do perigo que corre. Mas enquanto fala com o empregado fica congelada, bloqueia completamente. E nós vemos aquele olhar fixo, parado, ausente que significa uma mudança crucial. Ginny deixar de pensar, deixa de distinguir o Bem do Mal, do que é certo do que é errado, a lógica, o pensamento racional detém-se naquele ponto, trava e congela.
Há um momento de suspensão a partir do qual a emoção toma conta dela. a paixão avassaladora e o ciúme ardente imobilizam-na, impedindo-a de salvar Carolina. A acção passa a reacção comandada puramente pela emoção.
Desliga o telefone. Vai-se embora. Carolina nunca mais aparece. Micky descobre tudo e passa a ver Ginny como uma assassina. O amor acaba. Ela perde tudo e volta ao seu papel de empregada de mesa, agora colado à sua pele como que por argamassa.



Este momento final, o clímax do filme fez-me lembrar um outro, chamado 7 Pecados Mortais do David Fincher que toda a gente há-de recordar.

Às tantas o assassino está diante do Brad Pitt e chega um carro com um caixa que lhe é deixada aos pés. O polícia abre a caixa e vê a cabeça da sua mulher. O sétimo pecado é a Ira e Kevin Spacey conta com essa emoção para levar o homem a cometer o crime.


 A Ira é uma emoção, uma das mais forte. Brad Pitt luta contra si mesmo, tenta controlar-se. Morgan Freeman, o Polícia mais velho tenta chamá-lo à razão: não deve ceder ao plano do assassino. O melhor é não fazer o que ele quer, o maior castigo será não o matar. Ele hesita, ele está a tentar recuperar o controle, mas a emoção é mais forte, a Ira ganha e ele mata o criminoso.
Podemos entender melhor esta personagem porque a “vítima” é um ser execrável, um monstro desumano, um ser horripilante. Depois haverá outra vítima, o próprio polícia que passa para o outro lado da barricada, desaparecendo a identidade que vestia até ao momento.

 Mas há uma semelhança entre as duas histórias: no fim existe uma dissociação entre a razão e a emoção, uma luta entre estes dois polos da personalidade das pessoas em que uma se torna mais forte e toma as rédeas da acção dando origem a um erro. A emoção não consegue escolher entre o Bem e o Mal, ela não escolhe, não é capaz, apenas reage em função do humor do momento, sem ter em conta as consequências. A emoção é apenas o agora sem o depois. É o sabor do preciso instante. Num instante apenas se pode destruir, para a construção é sempre preciso mais tempo.

Uma acção baseada na emoção pura pode ter um grande poder de destruição.

 Assim como o voto. Assim se viu no Domingo passado, no Brasil. Seja pela ira dos que estavam fartos do PT quer por paixão a Deus dos Evangélicos, a diferença entre o Bem e o Mal foi totalmente aniquilada, a Moral descartada, a lógica suspensa. Nada do que foi dito pelo candidato vencedor teve qualquer efeito na decisão dos votantes pois eles não estavam decidindo com a razão mas apenas reagindo com emoção aos acontecimentos. Para estes o seu acto extinguiu-se no próprio momento do voto e não terá consequências.  Mas elas virão. Para outros, para eles próprios, para todos. E para alguns, mais cedo que tarde.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

feiticeira inédita

Gravura de Albin Brunovsky





o céu sitiado de estrelas
ao comando
uma lua complacente
demissionária

atada
ao mastro fervoroso
a feiticeira inédita
vai ouvindo o crepitar
do fogo preso
horizonte crescente
de um mistério tentacular

promontório lambendo
cada perna devagar
subindo derretendo
a pele obstinada
amolecendo ilíacos
dilatando frestas
ascendente domínio
açulando dentes e língua

o coração arranca
num galope vertiginoso
o corpo avança
perdendo-se
no vicioso círculo
amálgama de aço e forças
no final a cinza
que se há-de aspirar
e engolir inteira

antes do grito da carne
a feiticeira inédita
há-de aprender
a reter o fôlego
nova respiração
porque
o fogo também tem marés
se chamas
será preciso urgir
e atravessar esse
mar de ferro


sábado, 13 de outubro de 2018

O Início

Irises, Marc Quinn





o dedo clica
o cronómetro
o tempo principia
fogem para trás
as nuvens inchadas
de sombras e escuridão
arrastando a lua encardida
dura como ferro
sonâmbula
quando um céu
se inflama de estrelas
pingando e escorrendo
um eflúvio obstinado
uns olhos fixam
detêm-se
noutros olhos siderados
foi o início








vestir o disfarce

"The dress likes to write sculptural gestures in the air", trabalho de Cocky Eek




Tantas máscaras
para tão poucas perucas
pudesse eu arrumar melhor
na indumentária a dúvida
a dúvida sistemática
ou ligeira
sustentada ou suspensa
a fé ao invés de cortar
os mesmos cabelos repetidos
os mesmos brancos semeados
no preto intenso
deixa lugar à tal
velha dúvida
denunciando um cansaço desdobrado
que vai sempre perseguindo
as variadas possibilidades intercalares
um stalker de bengala
claudicando atrás
de cada figura
perucas
dessem-me múltiplas
à Mozart
polvilhadas de pó de talco
acolhedoras
das palavras gaguejantes
na hora de vestir o disfarce
gargalhadas
numa entremeada de coerências
todo um estilo próprio
que se estende de baixo
do courato protector




sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Dias Singulares

Fotografia de John Rawlings



Dias singulares
com o mar em frente

um mar tremendo se fez único
ressarcindo o sal do corpo
lavrando pedras na orla da praia
onde ainda ontem era apenas
chão despojado e nu

Dias semeados amiúde nos meses

um mar-moisés abrindo nas rochas
saciando-as num diálogo recortado
a cada respiração
a cada maré
decifrando as repostas
na volta da onda
esculpidas num corolário
de espuma

Dias singulares com o mar em frente

um mar inteiro e duas gaivotas
povoando um lugar
moradia de fronteira
no intervalo absoluto
das nuvens

dias singulares
pedindo implorando
dias iguais


sábado, 15 de setembro de 2018

O AMOR NÃO SABE NADAR



Pintura de John Wesley





O Amor
é todo carne
espada
sem escamas
outras guelras

barbatanas presas
não nada
não esperes
é todo carne

não lances ao mar
não nada
não esperes
estrada que rasga
terra dentro

boca cortante
entra a eito
não esperes
não nada
é todo carne

não lances
de foz em fora
toda a água
o demora
o devolve
alforreca

o Amor
já murcho
cego e furibundo
não esperes
não nada

todo carne
todo sangue
todo fundo
todo ferro
todo corpo



quinta-feira, 13 de setembro de 2018

VIADUTO

pintura de Amy Shackleton



A vida é
do viaduto
a travessia

em vias
de ruir
a cada passo
deus é a ausência 
do atrito

no fim
o corpo encoberto
roda
em queda livre


sábado, 8 de setembro de 2018

As Acácias




Las Acacias:
 Um filme de Pablo Giorgelli com Gérman De Silva e Hebe Duarte


Mil quilómetros direito
a Buenos Aires de Assunção
uma bebé bonita vai
partir a pedra no olhar
do camionista
uma bebé sem pai
noite e dia derrubando
as acácias troncos
no olhar do camionista
mil quilómetros sempre iguais
mas já diferentes
na cabine silêncio
só o calor do motor
tantos anos sempre
e agora uma gargalhada
de uma bebé bonita
porque a estrada é pesada
e o veículo longo
e o sorriso morno
o homem vai partir
a pedra do seu próprio peito
deixando aberto
o coração





sexta-feira, 7 de setembro de 2018

LUGAR COMUM


Atlas de Nichols Kalmakoff




No poço lodoso
um entulho de palavras pedras
aterra num estardalhaço
uma anunciação
no fundo não chega luz
nada se plantará que cresça
um silêncio fecundado é o ar
que nos falta
não se fará um poema
sobre esterilidade
mãos abrindo
um túnel para o tempo
do posfácio
braços não sobram
para despedidas
mãos a ouvir
nunca houve

O plano inquinado
é o que conduz o corpo
à queda
numa aceleração viciada



quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Mordaças e açaimes


Pintura de Thierry Feuz




Mordaças
a fechar o focinho
ao cão esfaimado
raivas espumantes
de língua e latidos
fabricando um silêncio
espacial

Dentes contra lábios
boca contra palato
lábios contra dentes
glote contra amígdalas
azedas amigas

Açaimes
sequestrando o uivo ao centro
tornando a garganta lobo
animal de poucas falas
estepes algumas
nenhumas preces
só silêncio espacial






JEJUM



Há palavras da moda
ou medicinais
que andam na boca
de toda a gente
mal ao mundo não vem
se tens o atrevimento
de experimentar
uma ou outra

Na realidade
ao fim das vinte
e quatro horas da praxe
vais conhecer
na bendita manteiga
derretida
que barra a preceito
o pão o sabor
verdadeiro da Poesia
o seu cheiro

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

SEMENTEIRA



O céu
sementeira de mundos 
canções
crescem estrelas
quartos minguantes
rondam luas
sonhos que se realizam
na cama da noite
desenhos que se oferecem
histórias  madurando
prontas a colher
se decidirmos abrir
os olhos
ver

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O DEUS DA MIOPIA

Masks designed by Cornelis Floris and engraved by Frans Huys, in 1555


Ao almoço
choques com tinta
o desperdício as palavras
afogadas em espesso líquido
jamais serão lidas

dois tentáculos de silêncio branco
farejam a garganta
o sufoco

o dia abranda
acusando uma ausência
a luz imóvel revela
a rarefação dos minutos
moinha opressiva

há horas que ficam
como farpas aguçadas
alojadas no sabugo
dos dedos
as unhas: testemunhas mudas
prerrogativas
do Deus da Miopia

A escolha dos olhos
seria
sempre não ver

domingo, 2 de setembro de 2018

MULHER NENHUMA

Fotografia de Nicola Kuperus


Alguns olhos incautos
hão-de tomar
a poética da foda
por luminosos
poemas de amor


mais tarde haverá de perder
o desejo pela esposa
tendo passado a amá-la

não a trairá
mulher nenhuma
ganhará a sua cama
só cona
mulher nenhuma

EM PARTE INCERTA

Hiding from love, João Figueira


Em parte estás
por ficar
partiste-me
a certeza de estar aqui
tão longe
indo embora

CORAÇÃO BOIMERANG




Coração de boi
dar e levar com ele
em cheio na nuca
nunca foi pêra
doce dor de quem
viu fugir-lhe
a carroça lá na frente
a força escoar
por nervos ou colares
missangas de esperança
entornadas no chão
da praia onde morrer
um coração
é um boi uma arma
vai e vem
contra nós marra

sábado, 1 de setembro de 2018

MÁ MENINA MÁ

Fotografia de Tatiana Gulenking



Criaturinha das trevas
desacompanhada
na escuridão celeste
criaturinha das trevas
menina fosforejante
suja

vieste do outro lado
do tempo à boleia
num túnel de minhoca
menininha misteriosa

Aprendeste a cosmogonia
do castigo esse ritual
repetido desde a Infância
na oca protetora
ao longo das eras
vens dar-me uma lição
de genealogia

percorre-te a carne
um unguento
de amargura a flecha
enterra-se na espádua
marca de Órion
Caim de cabeça
no corpo meio vazio
um desejo de dor
como um pecado

Ó criaturinha das trevas
má menina má
eu te absorvo






O Elefante Tombado




Ilustração de  Billy Shire




Xeque-mate elefante
no meio da sala
tomei a liberdade de
avançar pelo xadrez
senhora
puxando o tapete
ele tomba
numa invisibilidade
intermitente
um caso de perícia:
jaz
não jaz
elegante


a tromba é de água
criatura minando a noite
coração de um só lóbulo
consolo de lábios tantos
corroído de rugas
rasgos de fúria
um mapa de ruelas onde se
esconde a memória
(que nunca morre)
a esvair-se em sangue
exaurido chilreia
prenda de rajá
um mamute de marfim
assegura o comissário
casca grossa
salvou-se a rainha ao menos
a culpa  serve-se com chá
de  sevícias
e cardamomo

MUTANTE

Macro fotografia dos olhos de um insecto de Yudy Sauw





Acerto com força
na mosca
que insistentemente
me pousa no braço,
caramba, e não morre!

O mutante mor
cego ferra-me
os caninos
no pensamento.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Poema Americano


Fotografia de Lissy Elle



Conheceu os filhos antes
de nascerem
tinha também uma ideia
clara do momento
da sua morte a sua
maldição não saber
o dia e a hora
multiplicava a tormenta

sonhava todos os dias
com uma viagem
num descapotável
vermelho entrava nele
descontraída de cabelos
presos com lenço
de seda à boa maneira
das actrizes francesas
dos anos sessenta o carro
americano

ia divertida
estrada fora
até atravessar um viaduto
suspenso sobre um ribeiro
invisível

galgava os rails
de proteção num voo
picado atravessando
o vento rindo
de uma piada perdida
que iria durar a eternidade
ou na pior das hipóteses
três míseros segundos


sexta-feira, 10 de agosto de 2018

taser


Instalação com Ondas de Daniel Palacio



transpor o silêncio
pronunciar
o termo certo
é taser


uma arma incapacitante
tântalo contraindo
distendendo a pele
o músculo preso
tremendo
arpões paralisantes


dois gatilhos
tudo o que irá transbordar
da baixa letalidade
será o fluir das ondas

os danos colaterais
decididos em plenário
transitando em julgado
pronunciar o termo certo

o teu eletrochoque
música a legendar o fogo
para os meus sentidos
toldados

Respigadora

pintura de Kwangho Lee



Do que é teu
quero apenas
o que não usas
de resto
podes ficar
com o prato
principal

O Homem à solta

Para o Roberto Gamito


Trabalho com Mapas de Mathew Cusick


Deus pariu
o Big Bang
e abalou
para férias
prolongadas
na conchinchina
partiu mais a Esposa
na sua própria paz

anda o Homem à solta
oremos Senhor

brinca aos Olimpos
e às Bolsas de Wall Street
uivos no Universo
nova Meca reconquistada
o maravilhoso
jogo da Macaca
oremos Senhor

diverte-se a alterar
as Alterações milenares
subtileza espetada
no flanco da Natureza
a mudança que tudo muda
implodindo o Antes
oremos Senhor

condimenta  com o medo
a carne dos animais
urina suor cerveja
sangue no caldo
fervente e pervertido
da sofisticação
dos ricos o pitéu
tem por sobremesa
a Pandemia
oremos Senhor


ri Satanás
refastelado
enquanto Sísifo
agarra a pedra
duas mãos arma
de arremesso
contra o olho da noite
oremos Senhor

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

As palavras não contam

Fotografia de Francesca Woodman




À porta
as palavras não contam
cada minuto
vai descendo
não sem antes
arranhar
a garganta
como unhas de gato
pata ante pata
intercalando cada lado
da ferida
sessenta estilhaços
penetrando a pele
até à badalada final
o canino de um tigre
pedra a lapidar
lápis infernal
cautério queimador
e eu capitulando
caindo
dilatadamente
muito abaixo
do chão

a porta cumprirá numa hora
as penitências desse ano
que as palavras não contam

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Barlavento

Pintura de João Figueiredo


dar o corpo
dar o corpo às balas
derrames de borracha
mortíferos
bluffs intempestivos
bíblias e búfalos
os cornos espetados
nas coxas exangues
barra o vento
o corpo
barragem de sabão
bolhinhas e bolhinhas de veneno
à bolina a barca
do inferno as crónicas
em prestações

dar o corpo
dar o corpo à queda
com estrondo
amparar o fim da festa
salvar uma réstia
de suavidade última
suspiro e suor
os braços cravados
cravinho especiarias várias
o chão alagado em hematomas

coser a boca à musa
impôr-lhe a sapo-condição
regredir encolher
num último caso
receber
recados de uma puta mansa
por obséquio
digestão e manta


Slogan


escultura de cerâmica de Ken Price

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

Narciso Sim
Nenúfar Não

domingo, 29 de julho de 2018

o barbeiro faz barba a si próprio


Pintura de Gustav Klimt


a amante é uma mulher
que se deixa humilhar

saber se há mais-valia
ou prejuízo
no processo
só ela o avalia
como o médico que tira o pulso a si mesmo
o juiz em causa própria
ou o barbeiro
que faz a sua barba
e no espelho recebe
o reflexo da medida da grandeza
do olhar do outro

a amante é uma mulher
que se deixa emudecer
e mede as perdas
os ganhos
os tralhos
os bugalhos
pelo método das temperaturas
haja humidade