quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Impostos




o sangue pensa
a pele pede
a boca pesa
só mais um sopro
um tumulto
a mente mói
e manda
o corpo cobra
e cai
na roda da vida
avança
pondo a nu
em cada transação
o seu vascular
valor acrescentado

assim a natureza 
colhe alegre
e distribui
os seus dividendos
a providência
alvoraçada


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

urgência




A meio do dia a urgência
um sinal
a luz que precede a ânsia
a queda 
de véspera a urgência
de viver o dia a meio
o sangue a confluir
a ir ao fundo no dia
no meio a urgência de vir
e permanecer na vida
um momento na curva
a mão a embalar o sangue
o mundo a virar girando
na urgência de cair
a meio do momento tácito
na teia a confluir
ao segundo o sangue
para a urgência
de ouvir cair o mundo 
a luz

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Bypass




Toda a salvação é efémera

Por vezes
ao fim da noite
faço um desvio
uma ponte
sobre a artéria principal
para que o sangue contorne
a rotunda adormecida
a volte a fluir pelo torax
aberto
sabendo de antemão
que toda a salvação
é efémera
procedo à operação
como quem procura
o equilibrio da respiração
sincronizada ao segundo


Ainda que a dor se esbata
irradia pelo corpo
uma aurora que vai durar
apenas até ao nascer do dia

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A fusão do hélio



Lembro-me de olhar pela janela
absorvendo as imagens da fusão do hélio
o ferro das entranhas da casa
era uma espada enterrada de ausência
assim era a vontade alucinada
do homem-eucalipto
os alicerces cresceram trémulos
pilares que lançavam de tempos
a tempos um tentáculo de alegria
um encontro
recolhia breve
um polvo hesitante
como um lampejo de farol
em rotação regular e escassa
pingando na memória

Parco é o alimento
capaz de saciar a imensa fome
migalhas que chegavam de anos luz
de distância
das fontes do hélio em fusão
e eu via essas longas viagens
na casa soterrada
por uma avalanche de palavras
entrelaçadas na sua própria decifração
salvando-se apenas um par de mãos
numa prece a desejar testemunho
uma pequena morte

As casas de homens-eucaliptos
crescem à mingua de água
e dão aos jardins raquíticos arbustos
até ao dia em que a enxurrada tudo varre
e tudo volta a crescer como manda o hélio
pela porta há-de entrar um aríete
de febre incandescente quebrando
a estrutura matematicamente rigorosa
da seca severa
por momentos o encontro
um polvo hesitante
entrelaçado nos alicerces da casa
em rotação regular e breve
enquanto eu olho pela janela
absorvendo as viagens de anos luz
até às fontes da fusão do hélio
a minha pequena morte




quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Desenhador

A Tasca de Belas



O medo mora na estrada de montanha
assim como o frio, a fome e a infâmia
que foram o alimento da alma do avô
é fácil imaginar o salto da máquina
para além do viaduto,
num voo de três segundos.

Acredito em nós
como
na implacável matemática
ou na terra que é plana
como uma laranja.
Acredito no desenhador
que junta os traços
por intuição, unindo pontos
que  lá estão 
com os pontos que faltam
sendo em maior número
os que jamais virão.

Entrei no café da esquina
e os clientes matinais
ruminavam em frente
 aos copos de vinho
do mata-bicho
da jornada de trabalho.
Em Roma sê romana
assim me deslocalizei
abrindo o Correio da Manhã
na mesa do canto.

descobri desse modo que o medo
mora da estrada de montanha
onde o desenhador interrompeu
o esboço por três segundos no céu
e o pobre automobilista perdeu o nome
lá para os lados de Loures.

Era para ter sido uma carta
interrompeu-se por falta da voz
ao fim de muitas página,
por falta de pontos a unir os traços
que se interromperam por segundos
e lá caímos na armadilha
de sermos (involuntariamente)
 a mesma pessoa de sempre,
engenho estéril de asas,
útil apenas
na descida para o grande nada.

A fobia é plana como uma laranja,
recusa, por cobardia, medir forças
com a lógica e os outros frutos
da ciência.
A fobia não vai a jogo
nem sequer faz bluff.
Acredito em nós
como na sequência certa
das histórias ocultas.
Acredito no desenhador
e na sua esplendorosa
caligrafia.
Acredito no desenhador
ainda que me assalte
com dúvidas.







quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O Véu Pintado



"A maior jornada
é a que se faz
percorrendo a distância
entre duas pessoas"


A história começa no instante
em que o segundo nome decide
(por razões ainda indecifráveis)
iniciar a jornada.
Esta antecipação deixa
incubando um contágio
(um beijo de meio segundo)
na boca
do primeiro nome.

Partidas desencontradas
costumam recuperar simetria
no repouso dos nomes.
Abreviam-se desequilíbrios
por crescimento de um desejo.

No que diz respeito
aos nomes
a bondade é uma esgrima
que dá razão à fé
na mobilidade das flores
mais sensíveis.


Assim surgiu um balanço
entre dois extremos
que ora se tocam
oram se afastam
e não se tomam de fastio.


Por isso me atrevo a dizer
que liberdade é
totalmente feminina
quando há um oráculo a corrigir
significados,
a fechar represas
tentando conter incêndios
deflagrados,
a arquitetar obras
remendando
desmoronamentos.


Porque a esgrima
é uma força que apenas avança
(até nos seus recuos teremos de adivinhar
intervalos)
e que nem mesmo pela raiz da cólera
poderá ser travada.

O que dizer da distância entre dois nomes?
Quando o enredo
se enterra num livro,
filme, música ou poema
nada se declara.
Quando a viagem
for mera metáfora
responde
apenas a uma pergunta
que se crê primordial.






quinta-feira, 9 de novembro de 2017

PSEUDO-NAMORO





Bem-vindo, Benjamim,
às acácias floridas
do papel perfumado
do meu namoro.

O teu estranho caso,
não viu, ai não viu,
não viu Benjamim,
é conversa de botões.
Surgir perdido
entre morros de bairro
tão quente e gaiato
é motivo de espanto
bem forte e seguro,
para me distrair
em bailes de poesia falada.

Tua pele macia, Benjamim,
era sumaúma,
cheirando a rosas,
tua pele macia:
rosas escondidas no meu regaço.
O teu sorriso
brincando de artista luminoso
na fímbria de um Novembro
tão rijo e tão doce
de joelhos no chão.

Mandei-te um recado ou dois,
já eram mais de sete,
quem diria,
Benjamim,
que dobrado o primeiro NÃO
pela tua mão seria.

Procuraram por mim
as moças mais lindas
e eu lá estava num canto a rir
vendo um Napoleão
em toda a parte.

Levei ao rei Xerxes,
guerreiro de fama
a marca do pau que a tua fé deixou
para que fizesse um feitiço
espalhando diamantes
dando calor aos sumo das mangas.

Tocámos a rumba, Benjamim,
dançámos na sala
e a estrela riscando o céu,
quando sobre o asfalto
atravessei a cidade,
quem a viu fui eu.

Olhei-te nos olhos,
sorriste para mim:
Deus nos livre de sucumbir
às semelhanças irreconciliáveis,
Benjamim,
Dobremos o SIM.




sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Poema Perverso


Reclining female nude by Egon Schiele


Por vezes, por verso,
de assalto,
temos o avesso
do que está escrito.
Não temo a dulpa
estocada artística
de duas cabeças
condecoradas
ao leme,
à vez
singular
num barco
de alto aprumo.
Amar
é uma soma
de correntes
contramão
multiplicadas
num fio inconcreto,
linhas que se cruzam
desalgemadas.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Bagagem

Beetle car, Brienna Pruce



seguindo
sem hora
estrada a fora
o risco
sob o pneu
as entranhas
do poema
peixe por dentro
aberto
marca pacho
em ferida
pulsação
na curva da voz
peso pesado quase
a fazer voar
as oscilações
do volante
lavo versos
clandestinos
ocultos em maços
dos pacotes
da bagagem
silêncio sôfrego
montanhoso
que me protege
da condenação
pelo colectivo
de meretrizes