segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Poema Mau




é
qualquer coisa
que sobe e
viaja de madrugada
das profundezas
do ser
uma luz veloz

como uma seta cega
e lança
uma mancha sanguínea
na rua da pele de todas as flores
uma marca d' água
em carne húmida
um destroço

e ainda está por provar
se é batom ou bala
descanso o teu caso

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

licor beirão

um rosário de orações
rezado em vão
e ainda aqui estou
boiando num mar
de licor beirão

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

velhice



uma cobra
largando a carne
antes da pele
lagarto
lagarto
lagarto
que me abandonas

O Cavaleiro da Rosa




"O Cavaleiro da Rosa". Cartaz da produção de 2005 da Opera de Los Angeles 

o que vais fazer
com o tempo
que te resta
ficar quieta
feito estátua
esquina na testa
tábua de salvação
não é opção
tanto cão
tanto cão
pouco chão
pouco chão
comboio comichão
carinho atenção
merda roliça
atenção
e o relógio
num galope cabrão
ardendo em combustível
de contrafacção
carvão doce carvão
cada vez mais 
célere mais picante
uma rosa de presente
e não é para ti não
a outra é mais nova 
mais tesão e tu
que vais fazer
nesse tempo do final
picar o ponto
à entrada do dia
à saída do arraial
pouco importa
pena máxima
por pecado venial
o que vais fazer 
agora

domingo, 23 de outubro de 2016

MEET JOE BLACK







É noite. Um homem dorme num palacete. Começa a ouvir uma voz ainda em sonhos, um "sim" no escuro. Uma dor irradia pelo braço abaixo e acorda sobressaltado. Parece um sinal de enfarte do miocárdio. Um prenúncio de morte. E a voz continua a responder "sim"... qual será a pergunta? Ele tenta retomar o sono mas a voz não deixa: "sim".


Agora já é dia e ficamos a saber que o homem é Bill Parrish (Anthony Hopkins), um magnata de Nova York que está a dois dias de celebrar o seu 65º aniversário. Bill Parrish (existe aqui um trocadilho com perish que significa perecer), o nome resume tudo, não é?


A filha mais velha, Allison, uma tontinha adorável anda numa azáfama de preparativos para a grande festa perante a indiferença mal disfarçada do progenitor. O evento irá acontecer nos magníficos jardins do sumptuoso palacete. A história não tem grande acção, durante as suas 3 horas de duração, podia até ser teatro, mas os cenários são lindíssimos. Raras são as salas em que não há pelo menos uma grande obra de arte, um Rothko aqui, um Picasso acolá, e muitas outras cujos autores o meu olho pouco treinado não conseguiu descortinar.


Allison fervilha de emoção pela festa que quer seja um sucesso em homenagem ao seu pai mas fervilha ainda mais de amor por ele, uma adoração esmagadora que sabe não ser correspondida. Ele sente carinho pela sua filha mais velha mas não tem a mesma intensidade no sentimento que tem por exemplo pela sua filha mais nova, Susan, a sua preferida. Allison sente pela irmã um ciúme benigno, sem rivalidade, um ciúme resignado. É um bom papel secundário atribuído à competente Marcia Gay Harden. O marido desta, a cargo do grande Jeffrey Tambor, é Quince, um tontinho adorável e patusco que a adora de verdade.


Susan, protagonizada pela bela Claire Forlani, namora com Drew (Jake Weber, o marido da Patricia Arquette na Medium) que é o braço direito de Bill nos negócios da sua firma. Parece que é o arranjinho perfeito, não seria o que qualquer pai desejaria para sua filha?


Não porque Bill é tudo menos um homem vulgar, conhece a sua filha, adora-a com paixão e sente que não está apaixonada. Talvez nunca tenha estado nem saiba o que isso é. Diz-lhe ele isto, num dos diálogos essenciais no filme:


Bill:"There's not a once of excitement, not a whisper of a thrill. This relation has all the passion of a pair of tick mice. I want you to get swept away, I want you to levitate, I want you to sing with rapture and dance like a dervish."

Susan: " Oh, that's all?"

Bill: "Yes, be deliriously happy or at least have yourself open to be it."

Susan: "Ok"
O amor é paixão, conclui o pai.


Na cena seguinte Susan está numa cafetaria tomando o pequeno-almoço, junto ao Hospital onde trabalha e encontra um rapaz atraente e simpático que mete conversa com ela. Conversa vai, conversa vem, a atracção é óbvia (não fosse ele a cara chapada do Brad Pitt), o interesse é mútuo, a curiosidade intensa... A coisa promete. Despedem-se, cada qual segue a sua direcção. E quando ela desaparece do seu raio visual ele... spoiler alert, spoiler alert, spoiler alert... ah já toda a gente viu, afinal é um filme de 1998... ele é atropelado violentamente! The End? Como se estamos ainda nos primeiros vinte cinco minutos do filme?


Então que história vem a ser esta? Uma comédia romântica boy meets girl etc., etc. não será certamente, que os galãs não morrem assim...


Esta é uma história de fantasmas. Não como uma história de fantasmas normal. Não há um capitão-fantasma da Mrs. Muir, aqui há um fantasma-mor. Este não é um fantasma, é O Fantasma, a Grande Ceifeira, a Morte em carne e osso. Ou melhor dizendo O Morte, pois a marota vai aproveitar o corpinho jeitoso do rapaz da cafetaria, chamem-lhe parva.


O que se passou então com a Grande Certeza? Acontece que sentiu curiosidade pela vida. Ouviu as palavras de Bill, afinal andava mesmo a ronda-lo pois a sua hora aproxima-se, e gostou daquelas palavras que ele dedica à sua filha adorada exortando-a a experimentar a felicidade extrema. É exatamente isso que a Morte quer: a Paixão.


E isto lhe explica, em sua casa, assim que lhe aparece pela primeira vez. Escolheu Bill Parrish como seu cicerone, seu guia turístico numa espécie de férias terrenas para descobrir o que é isso de viver. Escolheu Bill porque o considera um homem honrado, um homem de bem e com ele firma um pacto. Em troca de orientação terrena dá-lhe tempo. Quanto tempo logo se verá. Bill vai acolher, então, o Grande Desconhecido no seu seio familiar, abrir-lhe as portas da sua casa, do seu trabalho, da sua vida.


O "sim" respondia à pergunta que Bill receava fazer e admitir: "vou morrer?"


Bill apresenta o novo "amigo" à família como Joe Black e Susan reconhece-o da cafetaria, pensa ela que é o mesmo rapaz. Ele está diferente, comporta-se como um estranho, é amigo do pai afinal e ela está confusa. Mas a curiosidade continua lá. A curiosidade que rapidamente se torna contagiosa. E Joe está a adorar aprender coisas novas.


Mais adiante vemos Susan acabar a relação com Drew, que se começa por revelar um fuinha ambicioso, e se vai transformar no vilão da trama numa história de traição nos negócios que para aqui agora é secundária mas permite os momentos mais humorísticos e de descontracção do filme.


Assim, podemos ser as testemunhas silenciosas que assistem no sofá aos momentos em que Joe e Susan se apaixonam um pelo outro. E aqui está a singularidade do filme. Nunca antes se tinha visto tal situação, é quase como se fosse filmado em câmara lenta, mas não é. São os actores que no demonstram num trabalho de representação excepcional tanto de Brad como de Claire. São totalmente credíveis. E não esquecer que Joe não só se está a apaixonar por uma mulher belíssima mas se sente daquela forma pela primeira vez na sua eterna existência. É uma situação completamente excepcional.















Dizem as más línguas que Brad sofre neste filme de over-acting mas eu não podia discordar mais.


O realizador, Martin Brest, capta aqui nestas cenas entre Brad/ Claire os misteriosos momentos iniciais que estão na origem, muitas vezes, numa história de vida que duas pessoas constroem em comum. Ao mesmo tempo induz-nos algumas interrogações que provavelmente vamos fazendo ao longo da vida, de tempos a tempos:


Por quem nos apaixonamos quando nos apaixonamos? O que nos faz apaixonar por uma pessoa em particular, é o corpo, é a alma, o que é afinal? Como se cria um laço tão forte, tão importante com uma pessoa mesmo sabendo tão pouco sobre ela? Como se estabelece essa confiança, esse instinto, essa certeza? Naqueles momentos iniciais em que se conhece alguém o que faz despoletar o sentimento?

Que relâmpago é esse que faz a Morte emocionar-se até ás lágrimas no seu primeiro beijo?




Bill começa a ver o que se está a passar com a filha, finalmente ela passa por tudo o que o pai sempre desejou para ela, mas bolas, logo com a Morte? Que pontaria!


Bill confronta Joe, não percebe o que anda ele a fazer a brincar às casinhas com Susan, aos médicos, melhor dizendo... E Joe responde-lhe com as suas próprias palavras: A whisper of a thrill...
Bill enfurece-se, acusa-o de violar as leis do Universo. Joe está a rebelar-se pois então, está farto da não-vida. Está a gostar de viver, de amar, da amada, quer levá-la com ele para a eternidade!


Não conseguindo demover Joe, tenta demover a filha. Esta irrita-se, então ele dá-lhe um optimo conselho e quando ela o segue afinal não está certo porque o pretendente é errado, até parecem ciúmes doentios. E assim se alcança um impasse.




Este é um filme sobre o amor enquanto paixão. Amor correspondido entre um pai e uma filha. Amor não correspondido entre uma filha e um pai, pelo menos não correspondido com o mesmo grau de intensidade. Amor entre uma mulher e o homem/fantasma.

Meet Joe Black é um remake de um filme "Death takes a Holiday" de 1934, "Uma Sombra que Passa" em português, e cujo argumento foi baseado na peça de teatro "La Morte Va in Vacanza" do italiano Alberto Casella (eu não disse que podia ser teatro?)






Chega a noite da festa. Joe volta a dizer ao Bill que irá levar Susan, afinal ela quer ir e tal, ele não quer deixa-la e tal, o costume...
Bill sente que tem de intervir se quiser salvar a filha. Como pode ela amá-lo se não sabe quem é ele de facto, nem sabendo para onde vai?


Esta é cena é quase um duelo homem-Morte. Bill é um homem eloquente. E sabe que a Morte não é desprovida de razão. lança a cartada final: a Ética. A Ética versus Eros, eis o batalha final.
O primeiro objectivo do amor é não ferir a pessoa amada. Eis uma lição que muitos humanos têm toda uma vida para aprender e não conseguem.


Joe vai ter com Susan e esta última cena entre os dois é uma despedida em que ele se mostra, deixa que ela o veja. Ela percebe que ele não é o rapaz da cafetaria. Será que ela percebe que ele não é deste mundo? Não há uma resposta clara mas quanto a mim ela acaba por perceber tudo, depois quando o pai dela se despede e mais ainda quando os vê afastar os dois juntos.

O que importa na última cena entre Joe e Susan é que ela percebe que embora não sabendo quem é ele, de onde veio, conhece-o e ama-o como o vê. E a Morte conhece por fim o verdadeiro amor.






Bill e Joe preparam-se para deixar a Terra, juntos. Últimas palavras:


Bill: it's hard to let go, isn't it?


Joe: Yes it is.


Bill: That's life, what can I say to you?


Should I be afraid?


Joe: Not a man like you, Bill.



Apetece dizer: pode ser o princípio de uma bela amizade...


Mas ainda não é o fim. Não vou contar a última cena, é uma cena importante mas deixo esta última surpresa para quem quiser ainda assim ver o filme. Eu agora quero encontrar o filme original, do Mitchell Leisen.



Este Meet Joe Black não foi um êxito e quanto a mim uma das causas foram os cartazes. Que coisa mais fracota. O filme tem imagens tão bonitas, é visualmente impressionante e mesmo assim tive imensa dificuldade em escolher boas fotos para ilustrar este texto, não sei o que de errado se passou aqui. Depois há quem tenha criticado o cabelo do Brad Pitt, pelo amor de Deus, não há limites para a dor de cotovelo!











E por fim, falta referir que nos créditos finais se ouve a versão do What a Wonderful Life do Israel Kamakawiwo'ole com o seu ukelele. Foi a primeira vez que ouvi esta música, há 16 anos. Um bónus.









segunda-feira, 17 de outubro de 2016

colisão



Não orbitarás
em torno do meu eixo,
não te deixarás
cair em rota de colisão.
Em caso de transgressão
haverá lugar ao esquecimento
no final da última galáxia.

sábado, 24 de setembro de 2016

Testemunhas



Bates à porta
pela minha salvação
não, pela tua
que tens contas a dar.

Bates-me à porta por ti.
Sei porque namorei o belo filho
doutra testemunha.

Serva desse mesmo Deus,
pelos dois milagres adquiridos,
não sabemos o maior,
se a beleza do rapaz
se o próprio nascimento
na altura confundido
com a menopausa.

Tinha de apresentar cotas
de almas resgatadas à perdição
e ao ateísmo, para ganhar o céu.

Bates, para me ajudar
não, para te ajudares.

Bates-me à porta
para que eu te salve um bocadinho
da morte, a prestações,
um paninho quente
no rol de boas ações,
o enxoval da eternidade.

Em boa verdade, com fé ou sem ela,
a beleza desse filho
nem era assim tão apocalíptica
nem inocente.

Em boa verdade, ambas sofremos
a mesma farisaica aparição.
Mas quem diria que Jeová
por vezes está
onde nem sequer existe?

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Deus mãe

"Marilyn puntos rojos" by Antonio de Felipe


Vinha atravessando a praça do Marquês em passo acelerado quando a vi aproximar. Loira, bem penteada, com os lábios bem delineados a vermelho, elegantemente vestida, pareceu-me uma Marilyn de fato à executiva. Perguntou-me se me podia fazer uma pergunta. Claro, pensei logo que vinha tresmalhada dos magotes de turistas do Chiado e estava perdida. Se eu conhecia, da Bíblia, Deus-mãe. Se já tinha ouvido falar de Deus-mãe. E repetia Deus-mãe. Sim, disse-lhe, Deus-mãe, Deus-pai e Deus-filho, a família completa, mentindo a cem à hora. A pressa, essa, era real. E tive pena de não ter ficado à conversa, a tentar perceber se Deus-mãe constava mesmo da Bíblia ou seria talvez um erro de tradução numa dessas passagens de língua em língua que o livro teve de sofrer. Quando contei o episódio lembraram-me que de facto eu já ouvira falar de Deus-mãe. Afinal outras estrangeiras, dessa vez orientais, já haviam deambulado pela faculdade de letras tentando evangelizar estudantes para o Deus feminino. Fiquei mais curiosa ainda. Deus-mãe. Será o deus da beleza e da moda? O deus da graça e da elegância, da doçura e da simpatia? Quem serão os seus discípulos? Jovens musculados, impecavelmente escanhoados de tronco nu? Odaliscas de longas pernas bem torneadas? E as orações, como serão as orações? Preces em favor do calor humano, do amor entre os géneros, ou dentro dos géneros, do amor apenas enquanto tal...
E quantos e quantas se conseguirão abster de rezar, depois de ajoelhar?

sábado, 17 de setembro de 2016

a vidente infeliz

Desde tenra idade que tenho fortes pressentimentos. Premonições e certezas saltam-me do peito, quase acompanhando a regularidade da respiração. Presságios invadem-me os sonhos e acordam-me a meio da noite, em urgência. Infelizmente, estão sempre errados. Nunca nenhum se veio a concretizar.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

quando a máquina de enxotar pássaros...

quando a máquina de enxotar pássaros avaria... passamos a noite a ouvir "tiros". Como um relógio que marca a hora de quarenta em quarenta segundos...

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

rejeição

de ti o corpo
cálice afastado

Cornupópia




Mais uma viagem (Lisboa- Beira Baixa), mais uma compilação, outra uma sessão  de corte e colagem. Continua a ser malta portuguesa a cantar e assim sendo é só amor e melancolia aos molhos, um dó.
O título (Cornupópia) foi inventado e gentilmente cedido pelo Nuno Miguel Lopes.

1-VideoMaria, GNR
2- 40º à Sombra, Radar Kadafi
3- Se Te Amo, Quinta do Bill
4- Maria Albertina, António Variações (versão Humanos)
5- Com um brilhozinho nos olhos, Sérgio Godinho
6- Isto Anda Tudo Ligado, Sérgio Godinho (versão do CD Irmão do Meio)
7- Zap Canal, Três Tristes Tigres
8- Namoro, Fausto (versão Teresa Salgueiro)
9- Atrás dos Tempos (versão Né Ladeiras com Jorge Palma)
10- Problema de Expressão, Clã
11- Bem Bom, Doce (versão Rui Reininho)
12- Solta-se o Beijo (Ala dos Namorados)
13- Chuva Dissolvente, Xutos e Pontapés
14- Eu estou aqui, Pedro Abrunhosa
15- Cavalo à Solta, Fernando Tordo
16- Saudade, Trovante
17- 125 Azul, Trovante
18- Saiu Decidida para a Rua, Rui Veloso (versão Sara Tavares)


Cornupópia (poema compilação II)

aquela rapariga
eu já nem sei o que fazer
que dizer
confesso às paredes de quem gosto
e é tão difícil dizer amor
é bem melhor dizê-lo a cantar
quem canta sempre se levanta
calados é que podemos cair
ah se não tenho a vergonha de o dizer
Maria Albertina deixa que te diga...
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
às duas por três
quem sabe onde isto irá parar
eu mandei-lhe essa carta
(o que é que foi que ele disse?)
e ela disse que não
chegou hoje no correio a notícia
por ti renego
por ti aceito
atirem-me água fria!
de Lisboa vou fugir
não sei mesmo se Lisboa
não partiu para parte incerta
o corpo em câmara lenta
e eu estou aqui
tantos anos tantas noites
sem nunca sentir a paixão
e o que foi feito de mim?
e o que foi feito de ti?

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Pop Corno

Humanos: David Fonseca, Camané e Manuela Azevedo cantanto músicas de António Variações



Vinha na viagem Algarve-Lisboa a ouvir uma compilação de música portuguesa que já tem uns anitos quando me lembrei que seria giro fazer um poema com frases soltas das várias músicas da mesma. E como tinha 3 horas sem nada para fazer senão guiar entretive-me a cortar-baralhar-e-voltar-a-dar com as 18 músicas. (Em boa verdade o CD tem 20 faixas mas eu costumo passar sempre duas delas e não me apeteceu gramar com elas só para roubar frases). Como aquilo é malta portuguesa a cantar tinha de dar para o choradinho, ou para a dor de corno, como se costuma dizer, daí o título.


1- Gaivota, The Gift (Amália Rodrigues)
2- Clandestino, Deolinda
3- Tatuagem, Mafalda Veiga (com Jorge Palma)
4- Hip Hop Sou Eu e És Tu, Boss AC
5- Mudar de Vida, Humanos  (António Variações)
6- Coisas Tontas, Paulo Gonzo e Rui Reininho (
7- Advérbios de modo não combinam com amor, Gato Fedorento
8- Luz Vaga, Mesa
9- Ana Lee, GNR
10- Ouvi Dizer, Ornatos Violeta
11- Dance, David Fonseca
12- Casa, Rodrigo Leão ( com Adriana Calcanhoto)
13- Dancemos no Mundo, Sérgio Godinho (com Clã)
14- Re-tratamento, The Weasel
15- Picture of my own, Fingertips
16-Sopro no Coração, Clã
17- Balada da Gisberta, Pedro Abrunhosa
18- Ok! Do You Want Something Simple, The Gift


Pop Corno (poema compilação)

ouvi dizer que o nosso amor acabou
pois eu não tive a noção do seu fim
já não me deixas ser assim
pequeno almoço só p'ra mim
você me trocou e como alternativa
escolheu um cara que somente adjetiva
perdoar
como perdoar?
faço pinturas de guerra
que eu não sei apagar
as a tear comes from inside
I feel like I'm gonna drown
quis pedir ajuda
mas a língua estava morta
sei lá
sei lá eu o que desejei:
não voltar nunca...
amantes, outra casa...
chega só um pouco perto de mim
acredita nunca me senti assim
só queria dançar contigo
sem corpo visível
dance dance dance dance dance dance
ritmo e poesia é o que nos caracteriza
e quem não sabe dançar improvisa

o amor é tão longe
o amor é tão longe
sim, o amor é vão
todo o amor é vão
ópio do povo
que perfeito coração
no meu peito bateria


behind this sacrifice, can't you see the words?

a cidade está deserta
e alguém escreveu o teu nome em toda a parte
nas casas nos carros nas pontes nas ruas
em todo o lado essa palavra
repetida ao expoente da loucura
ora amarga ora doce
pra nos lembrar que o amor é uma doença
quando nele julgamos ver a nossa cura

(olha que a vida não
não é nem deve ser
como um castigo que terás de viver)





promessas vãs

foto de Sofia Pires


ninguém escapa à sua sombra
desconfia
de quem quer estar sempre feliz
é sentir pela metade
ninguém vai abortar
todas as lágrimas
há qualquer coisa de perverso
em querer amputar do destino
toda a tristeza e dor
enquanto há coração
o sangue corre
o sangue escorre
nos espaços por onde foge

também não verás vida
sem fuga
ou promessas vãs
maratonas de alusão






sábado, 27 de agosto de 2016

um homem extraordinário

ilustração de Frédéric Forest




Ele reclama. Chama o seu nome. Ela pára, volta-se para ele, à saída do quarto, mão na porta, à espera. Ele tenta articular uma palavra, uma frase jocosa e erudita mas desiste sem dizer nada. Ela abre a porta. Ele volta a chamá-la. Ela estaca ao nível da ombreira da porta e espera.
- Não vás ainda.
-Diz lá então.
-Não sei que te diga mas peço-te um pouco mais de tempo.
-Para quê?
-Para falarmos.
-Então fala.
-Não sei o que queres que te diga.
- Eu não quero que me digas nada, és tu que parece que queres dizer alguma coisa.
- Muita coisa, eu quero dizer muita coisa. Fui eu que falhei, é certo. mas não foi por mal, não foi por querer.
-Sim, e o que adianta isso agora? Já tomaste a tua decisão. E eu já acatei essa mesma decisão.
- E se eu voltasse atrás...
-Que lata! Que grande lata. Não, não vais voltar atrás, porque eu não vou andar aqui para trás e para frente ao sabor dos teus caprichos. Já me julgaste e condenaste e agora vou cumprir a sentença proferida. Sem apelo e sem recurso, e quanto mais rápido o tempo começar a contar melhor, mais depressa me vejo livre de...
-De mim, era isso que queria, afinal de contas, deste-te a este trabalho todo para me veres pelas costas. Tinha sido mais fácil se tivesse sido sincera e...
-Tretas! Sabias que eu não estava bem, nada estava bem e fingiste sempre, não querias ouvir, adiaste sempre as conversas, nunca dava jeito, nunca era o tempo certo, porque havia muita coisa importante a acontecer e não dava para parar e falar sobre assuntos desconcertantes, era tudo muito muito desconcertante e eu... eu fui deixando andar, adiando também, fui-me fechando na minha concha, fazendo a minha vida... isolando-me...
-Não lhe chamaria isolamento, propriamente dito...
-Foi isolamento sim, foi isolamento. E o isolamento leva à carência e a carência leva ao desejo e aconteceu, aconteceu-me e nada posso fazer para voltar a trás e desfazer o que fiz e se pudesse nem sei se queria desfazer!
- Está tudo bem então, foi bom para ti, ao menos agora nem preciso de perguntar...
-E quando é que te lembraste de perguntar?
- Nunca, de facto, tens razão, já disse que fui eu a errar
-Não, não te finjas de sonso, tu não te consideras culpado de nada. aqui a rameira sou eu.
-Nunca te disse isso!
-Não, não dizes, é demasiado educado e polido, não desces tão baixo. Não dizes mas pensas e eu até vejo os teus pensamentos como se congelassem no ar, no balão gigante, bem por cima da tua cabeça: RAMEIRA. Não é assim que me classificas? Não é este o termo erudito para puta, o termo clássico?
-Não faças isso, vamos conversar...
-Mais ainda? Não me dissestes já tudo como ironia primeiro, depois com sarcasmo, depois com mágoa, depois com raiva, depois com fúria louca... Já ouvi de tudo e de todas as maneiras, já chega.
Vou-me embora, vou expiar a culpa e tentar um dia, um dia quem sabe... possa fazer tudo diferente, tudo muito mais limpo...
-Desculpa-me, desculpa-me, eu sei que também sou culpado, desculpa-me...
- Nem sei se estás a ser sincero...
-Duvidas de mim? Alguma vez te menti?
-A ausência de mentira não implica sinceridade. Sabes bem disso, és inteligente.
-Que importa isso, não fui suficientemente expedito, suficientemente intuitivo, ou possessivo, talvez...
-Enterraste a cabeça na areia e recusaste falar, foi só isso. De resto não te faltam qualidades.-
-Quais? Diz uma.
-Tu és um homem extraordinário...
-Por isso me traíste com outro.
-Pois, deve ter sido, sou maluquinha e foi isso, não suporto homens bons.
-Então o que foi? Se sou assim tão bom...
-Não és assim tão bom, és extraordinário mas não assim tão bom, tens defeitos, muitos defeitos e eles fizeram-se notar e eu não consegui lidar com eles da melhor forma...
-Então afinal esta traição aconteceu pelos meus ou pelos teus defeitos?
-Pelos meus, agora adeus e até um dia destes. Felicidades.
-Não vás!
-Vou. Aliás tu não precisas de mim para nada, nunca precisaste. Nem de mim nem de ninguém, Tu precisas da ideia de uma mulher, precisas de uma mulher no teu passado para teres material de escrita. Por isso até te estou a fazer um favor. Ficas com a tua história triste e a tua melancolia agora plenamente justificada, quase de papel passado, digamos assim.
-Não digas asneiras!
-Na mouche diria eu, consegui pôr o dedo na ferida. Se começar a escarafunchar muito até vejo que fizeste tudo de propósito, deste trela, fizeste-me apaixonar, depois começaste a cortar trela, a deixar-me à toa, tudo para me destabilizar e entrar em abstinência...
-Que disparate, não fiz tal coisa, estás a virar o bico ao prego. Foste com outro porque quiseste e traíste-me e mentiste-me e foste uma autêntica cabra por me esconderes tudo, eu é que descobri...
-Adeus, tens razão, para quê falar do assunto, chorar sobre leite derramado, adeus, desculpa, desculpa, tens razão...
-Não vás.
-Pára! Pára e deixa-me ir embora! Não quero continuar a alimentar esta tortura. Não tenho mais nada a fazer aqui, deixa-me!
-Não, vamos falar...
-Não temos feito outra coisa durante esta semana toda. Não aguento mais, quero parar com isto, é muito massacre, tenho a cabeça em água.
-Tens razão, tens razão, vamos fazer uma trégua, entra, senta. Calma, vamos ter calma, parar de bater sempre na mesma tecla. Vamos ficar em silêncio, isso, senta-te, Vamos dar uns minutos de silêncio.
-Não sejas condescendente, detesto quando és condescendente.
- Não, pára, a sério, vamos dar uns minutos, nem que sejam uns minutos de paz. Por favor.
-Está bem, eu sento-me, tens um copo de água?, tenho a boca seca. Isto é palavras a mais.
-Sim, vou buscar, espera um bocadinho.

Ela sai assim que ele entra na cozinha.
Ele chega de copo na mão e vê a sala deserta.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Salva pelo Camilo e o Eusébio ( o Castelo Branco e o Macário, não, não é o do cinzeiro beijado...)





Quando depois de leres dois livros do Paulo Varela Gomes te sentes atingida por um certo sentimento de orfandade e não consegues abrir mais nenhum livro, mesmo que te tenham sido profundamente recomendados por pessoas da mais alta confiança, só há um remédio: Camilo Castelo Branco. E é fácil, nos dias que correm, pois eles andam a dá-los grátis com o jornal Expresso. Para felicidade minha esta semana foi a vez do "Eusébio Macário, História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais" e esse nunca tinha lido. É é tão bom, mas tão bom  que não tem explicação. Ora espreitem comigo só uma pedacinho do início ( acreditem que isto é só a ponta do iceberg pois eu já vou a meio do livro e este excerto é da página 1 e 2)




"Moscas zumbiam com as asas lampejantes em giros idiotas; gatos agachados como velhos sicários pinchavam com muitas perfídias à caça dos pássaros nas densas verduras desbotadas dos arvoredos; canos chiavam nas terras baixas, barrentas, com grandes gretas de calcinações do grande Sol; os lentos bois nostálgicos vergastavam com as caudas ásperas os moscardos que os atacavam de entre os tapumes com grandes sedes impetuosas de frescores de sangue. Havia molezas e estonteamentos abafadiços no ar cheio de sensualidades mordentes. Lavandiscas esvoaçavam nas ourelas húmidas dos regatos, muito garbosas, com pipilações joviais; besouros azuis de tons metálicos luzentes rodopiavam em volteios curtos e muito sonoros; pardais abandados infestavam as painçadas, dando pios hilariantes de bandidos canalhas; cerejas bicais vermelhavam as suas provocações sorridentes como beiços rubros de mulheres vitalizadas de lascívias aquecidas de bom sangue; pêssegos abeberados de sucos doces penejavam; varas de porcos com grunhidos regalados esfoçavam nas esterqueiras, banhando-se com grandes espalhafatos como odalíscas epiléticas de volúpias escandecidas; raparigas esguedelhadas, de narizes arrebitados, com caras fuliginosas de suor e poeira, muito escaneladas, com olhos espantadiços, de secreções amarelas, saias de estopa suja, frangalhona, a trapejar nos canelos esburgados, guardavam bácoros, e davam gritos de um timbre muito agudo que punham eco nas colinas batidas do largo sol; galinhas cacarejavam; galos de cristas escarlates e recortadas, arrastavam a asa com arremetidas parlapatonas de sultões.A Natureza estava cheia de mistérios amorosos e de uma grande espiritualização sensual."

Helen Hulick presa por usar calças

Helen Hulick foi presa em 1938 em Los Angeles por usar calças


Adoro esta foto. Adoro a repetição desta foto neste conjunto de imagens todas iguais. Ela é só uma mas ao mesmo tempo são muitas. Muitas mulheres que vieram a adoptar esta ideia e a usar calças como as dela. Aquelas calças que dantes era privilégio do outro género. Como se as mulheres não fossem dignas das mesmas opções e liberdades em termos de vestuário que os homens. E quem diz vestuário diz outras coisas, não é verdade?
Agora imagino as hordas de mulheres a serem entrevistadas, se o tivessem sido, a jurarem a sete pés que usavam saias porque queriam e jamais lhes passaria pela cabeça serem felizes doutra maneira. Pois sim, acredito. Mas à Helen Hulick passou na cabeça outra ideia. A sua ideia. E ousou. E usou calças. E agora também nós. Pelo menos em certas partes do Globo. Pois noutras, mulheres como a Helen, mulheres como nós, são acusadas de indecência por usarem calças em público. Podem ser presas, como a Helen Hulick, e mais grave ainda, serem chicoteadas. 
Que as Helen Hulick possam crescer e multiplicar-se por este desgraçado mundo a fora!

terça-feira, 23 de agosto de 2016

HOTEL E PASSOS PERDIDOS DE PAULO VARELA GOMES






















Da pilha de livros que resolvi trazer para férias, de acordo com a popular expressão "mais olhos que barriga" para quem só vem por 15 dias, resolvi pegar num dos que vinham associados a grandes expectativas: Hotel de Paulo Varela Gomes.
Se eram altas foram largamente ultrapassadas sem dificuldade nenhuma pois à terceira página fiquei rendida à obra.
Que o homem escrevia bem já eu sabia das crónicas do Ouro e Cinza e da Granta mas que nos desse uma história ( uma não, duas. E ainda me faltam dois romances) destas apenas podia ter uma leve suspeita bem fundada.
PVG não só nos oferece uma escrita elegante e admirável mas também um olhar único. Ou não fosse ele um historiador de Arte e de Arquitectura. Primeiro ele ensina-nos a olhar, depois a ver o que estamos a olhar e depois oferece-nos o que estamos a ver. E isto em relação a países, cidades, sítios, ruas, rios, edifícios, portas, janelas, monumentos, flora, enfim, dá-nos o mundo.

Em Hotel a acção centra-se quase toda no dito edifício. Uma das personagens principais é o homem que o engendra (ou não fosse ele um engenheiro), Joaquim Heliodoro (abreviando, que os apelidos são mais que muitos); a segunda é o dito Hotel. Que é uma obra rara e absolutamente fascinante. Para o descrever PVG vai usar  muitos alpendres, torreões, ameias e pináculos, vãos de arco apontado, abóbadas em leque, silhares de pedra e  de azulejo, intradorsos, frontões curvos, conversadeiras e coruchéus, cúpulas e baldoquinos, pórticos e galerias, janelas maineladas e portas manuelinas, bow windows, e outras coisas que tais, tudo na posição correcta e adequada a um edifício monumental e inesquecível.
Hotel é um hotel onde queremos passar férias, onde queremos ficar temporadas, onde queremos viver para sempre. 
E o que dizer do próprio Joaquim? Pois PVG não se fica por personagens estériotipadas e fáceis. Joaquim é tudo menos agradável à vista e ao trato. Mas torna-se uma personagem tão complexa, tão desalinhada, solitária, perdida, partida, fora deste mundo que nos irá prender do princípio ao fim. Diria até que nos consegue contagiar com o o seu vício e arrastar para ele. Seduz-nos, tal como às duas mulheres da história Manuela e Margareta, personagens secundárias, à sua maneira anti-sedutora. 


Depois de Hotel só poderia ter começado imediatamente com outro livro do mesmo autor.
Passos Perdidos faz-nos viajar. À medida que acompanhamos a história de desamor das duas personagens principais Anna W. e C. Brandon vamos conhecendo vários sítios. Primeiro Santa Helena, uma ilha no meio do Atlântico, onde foi exilado e morreu Napoleão. Fiquei a conhecer e a gostar da ilha de tal forma que posso dizer que é talvez o meu "sítio onde nunca irei" favorito.



Apesar de gostado bastante do que se "vê"( do que PVG  nos oferece a ver ) de Milão, Munique,várias cidades belgas, Bijapur, e Diu, o que me ficou na ideia foi Valleta em Malta e as seguintes linhas: "O autor é incapaz de dizer de Valleta o que a cidade merece. É muito bela, muito. É preciso ir lá. É preciso não morrer sem ter conhecido Valleta.

Claro que se trata de um profundo exagero, pois neste ponto já ele nos tinha descrito ao pormenor toda a ilha de Malta e nos tinha feito apaixonar pelo local.
Há quem considere que o romance é uma espécie de vários ensaios encadeados com a ajuda das personagens, não sei, pode ser também considerado uma obra de literatura de viagens. Sei que a história que serve de fio condutor ao passeio pelo mundo tem bastante interesse. Porque mais uma vez, PVG não escolhe figuras certinhas e aprumadas. São seres profundamente perturbados, este homem e esta mulheres que viajem juntos mas se mantém separados por uma ligação angustiante.
Chego ao fim e fico a pensar que este volume merecia um segundo de continuação, se o autor tivesse tido mais tempo. 
E não me conformo com esta interrupção na obra de Paulo Varela Gomes, na vida de Paulo Varela Gomes. Uma grande injustiça para todos.



pais e filhos

The Doubtful Guest, Edward Gorey


Os filhos têm os pais inscritos no seu ADN.  Os filhos têm, por isso, dos pais, um retrato inato. Conhecerem-se é ir reconhecendo a herança que receberam deles e o que depois vão construindo com esse legado. Os filhos vão entendendo os pais à medida que se conhecem a si mesmos. É uma dupla viagem.

Já os pais não têm dentro de si nenhuma pista do que passaram aos filhos. Tudo o que podem saber sobre os filhos vem destes e do esforço que fizerem no sentido dessa descoberta. É um retrato totalmente adquirido onde apenas podem tirar, se prestarem muita atenção, parecenças, à posteriori.
Será uma dupla viagem, totalmente facultativa.






domingo, 14 de agosto de 2016

A ignorância do xamanismo

Chamas.
Chamas.
Chamas.
Deixo-me ficar.
Ou gosto do fresco
ou prefiro ignorar.
A Sibéria é tão longe.

A memória tem mãos de médico

Hands and Eyes, Stanko Abadzic


A memória tem muitas mãos.
Umas afagam-me o cabelo,
outras tapam-me os olhos
para que não entre a luz afiada
na pele cortando caminhos
através da carne,
dilacerante.

A memória tem mãos
que tiram a febre,
auscultam a incapacidade
de voltar a repetir feridas
demasiado ferozes.

A memória tem mãos
que tapam os ouvidos
e nos deixam a salvo da voz
que anunciava
a ilha a arder,
mais não éramos
que essa ilha a arder.

Mãos que nos contagiam
com um sono acordado,
o precário sono da vida.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

dentro do cavalo

Horse Drawing - Andalusian Horse Drawing by Angel Tarantella



A mãe levou-a pela mão
ao matadouro
à procura de uma cura antiga,
sofria dos ossos.
Mandaram-na entrar.
Não queria.
Obrigaram-na. Era pequena.
Lá dentro as paredes eram carne.
O tecto era carne.
O chão era carne.
Dentro do cavalo o cheiro era sangue.
Mas aos ossos foi a solidão,
apenas, que se colou.

sábado, 23 de julho de 2016

terça-feira, 19 de julho de 2016

amnésia querida II

memória vai
memória vem
uma fava
para quem a tem

amnésia querida




Amnésia querida, amnésia querida,
do melhor que a gente tem,
não há outro remédio na vida
igual ao que com amnésia se obtém.

Feliz de quem possa esquecer
o que na vida o faz aborrecer.
Feliz de quem possa apagar
da memória do que o faz chorar.

Graças a Deus, tive esta sorte,
passo todo dia alienada.
Bati com a tola, fiz um corte
e agora não me lembro de nada.


Amnésia querida, amnésia querida,
do melhor que a gente tem,
não há outro remédio na vida
igual ao que com amnésia se obtém.

Dia da amnésia devia ser
todos os dias, alguma coisa esquecer.
Santa branquinha, que alegria,
abençoada esta calmaria.

Nunca na vida, por coisa alguma,
vou agarrar a ideia que se esfuma.
Feliz de quem possa dizer
não tenho magoas, o que é doer?

sábado, 16 de julho de 2016

o meu primeiro morto




Era um homem bonito,
um rapaz, parecia
novo, deitado no chão
de pedra, dormia,
parecia, tinha eu cinco anos.
Na casa dos meus avós
trabalhava com outro homem
mais velho
fechando uma marquise.
De repente o silêncio cortou
o  rugido do berbequim.
Algo estranho acontecia,
na marquise semi fechada,
ele dormia em tronco nu,
parecia.
Tudo estaria bem não fosse
a voz trémula da avó,
o ar demasiado bíblico do avô.
Não me lembro de mais, só um mistério
que ficou no ar
e, na altura,  resolver
não sabia.

sábado, 9 de julho de 2016

INTERVALO PUBLICITÁRIO: NADA, FAZ BEM A TUDO




NADA, faz bem a tudo.





Chegou o comprimido verdadeiramente inovador.
Contra a doença, contra tudo, contra a dor.
Para quem não gosta de químicos agora há NADA
comprimidos que,  quase por milagre,
deixam qualquer pessoa sarada.

E para tirar as dúvidas a quem está de queixo caído, aos mais incrédulos,
deixo o testemunho de uma senhora que desde há meses tem vindo a tomar NADA:

" Dou-me muito bem com NADA. Tomo todos os dias e deixei de ter dores. Tinha uma dor, volta e meia, no joelho, que me chateava bastante. Aquilo só me doía quando estava para vir chuva. O que me irritava bastante pois assim que me dava a dor eu dizia logo, olha, amanhã vai chover. E chovia. Só que, dá-se, eu gosto bastante de ver aquele programa de televisão, o Boletim Meteorológico, e a dor tirava-me o elemento surpresa, é que eu já sabia o que o homem ia dizer. E aborrecia-me. Agora é uma maravilha, mal chega a hora e eu já estou em pulgas para saber que tempo vai fazer no dia seguinte. Tudo graças a NADA. Dantes recusava-me a tomar comprimidos com medo das complicações, das porcarias que lá devem botar. Agora não, tomo NADA, sem problemas e sinto-me feliz.

NADA, até a morte vai ficar desenganada. 



sexta-feira, 8 de julho de 2016

Andrógino




Queres comédia, Aristófanes,
queres? Entra o Andrógino,
o rei dos palhaços,
bicéfalo e balofo,
um par de gémeos, comédia.
Como se algum par de siameses
abdicasse da longa luta
de bisturi e legião
de batas brancas
pela chance de ser só um.
Que comédia!
A pele fez-se para ser tocada,
as mãos querem alcançar,
as pernas querem caminho
para andar
porque não há encontro
sem distância,
não há viagem
sem separação
para quem quer ser inteiro
e completo
a amar o Outro.







terça-feira, 5 de julho de 2016

vingança

no sonho
foi melhor
que na carne
e no osso
a minha
mais dura
vingança

Sylvia

Ilustração de Goya


Nesta cidade tudo é ideia,
nevoeiro.
O Mayor é uma quimera
que toma conta de nós,
habitantes,
fantasmas das musas anémicas,
a maldição a pulsar na alma,
desgrenhados.

Aqui te vim procurar por palavras,
actos e pensamentos.
Inventei uma imagem
a partir do teu nome.

Fui expulsa desta cidade,
ao fim ao cabo,
por tentar trincar a maça concreta,
o bicho gémeo da ameaça.

Na beira da estrada
ainda espero
a boleia de regresso
a Sylvia.

E se voltar,
que mais irei encontrar
nos calabouços
de mim?

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Inteligência Artificial



Pode um engenheiro 
(pode?) 
algo esperto
inventar 
o algoritmo certo
(pode?)
com algum ritmo
(pode?)
vencer um rito perto
(pode?)
fazer o que é recto
(pode?)
criar asas
(pode?)
à nossa máquina íntima
de voar?


quinta-feira, 2 de junho de 2016

Alergia


Seated Pierrot, Pablo Picasso

Quando o  pingo
ultrapassa
o muco
e corre  desenfreado
à entrada
da dupla porta
lanças a mão ao lenço
em urgência,
onde está,
no bolso da calça?
Depressa!
E já a ameaça do rio
escorrendo,
onde está,
na bolsa de alça?

O ar todo entra
de repente no peito,
depressa,
depressa,
o reino por um lenço,
onde está?
Chega por fim
o estrondoso alívio
chuviscoso.
Lembras-te
dos espirros
dos Pierrots.


quarta-feira, 1 de junho de 2016

uma pedra sobre o assunto


The Sleeping Beauty, Arthur Rackham



Não sei se desisti
ou fui derrotada.
A pedra aterrou
sobre o assunto.
A sela pousou
suave
sobre o cavalo
indomável.
Vi o fundo
do poço sem fim.
A cal viva
barrou
o teu corpo
para sempre
adormecido.



quinta-feira, 26 de maio de 2016

CÃO É CÃO

Beckett, o meu cão


Farto-me de rir quando oiço dizer, a propósito do bem estar animal, que hoje em dia se humaniza demasiado os bichos. Fico a pensar que estas pessoas estão a ver o filme todo ao contrário. 
Eu gosto muito de cães, sempre gostei, mas nunca confundi estes animais com pessoas. Muito pelo contrário, sei ver muito bem as diferenças.
Um dia tinha eu quinze ou dezasseis anos, andava pelo quintal dos meus avós com um cachorro ao colo, achando que seria a coisa mais natural do mundo, diz-me um tio assim:
- que andas tu a fazer com esse cão ao colo, não vês que não é uma pessoa?
- E desde quando é que me vê andar por aí com pessoas ao colo?
Foi a primeira vez que me apercebi do erro fundamental desta gente que embirra com quem gosta de bichos, da confusão que lhes vai na alma. Uma pessoa não tem de dar qualidades humanas a um animal para gostar dele. Ainda para mais quando esse animal já tem qualidades de sobra. Isso não quer dizer que não se goste de pessoas. Eu gosto de pessoas, eu vivo rodeada de pessoas. Mas ainda assim, se não existir um cão, pelo menos, na minha vida, há qualquer coisa que falta, e não descanso enquanto não preencher esse vazio.
A relação entre uma pessoa e um cão é única. Existe uma ligação, uma confiança, um consolo que não se retira de nenhuma outra. Um cão olha para nós com benevolência, com abnegação. Não lhes interessa toda a panóplia de defeitos que qualquer humano carrega consigo, como uma cruz. Desde que lhe retribuía o afecto o cão vai estar sempre do seu lado, dê por onde der.
Depois há outra coisa muito importante que o Paulo Varela Gomes descreveu numa das suas magníficas crónicas sobre animais, o estado de felicidade de um cão é muito bom de testemunhar.
Sem cães só conseguimos perceber o que é a felicidade em teoria. Porque somos, por natureza, criaturas insatisfeitas e inquietas, sempre à procura de alguma coisa que nos escapa.
Um cão, desde que tenha as suas necessidades básicas atendidas, comida, água e cama confortável, alcança a felicidade facilmente, através do afecto que lhe damos. Passamos a ter o privilégio de ver um ser feliz todos os dias quando chegamos a casa e nos recebe com a cauda a abanar e os olhinhos agradecidos. Sabemos que a vida é perfeita para ele. Pelo menos ver, ter um exemplo, da tão sonhada Felicidade. Afinal ela mora mesmo ali ao nosso lado, quando já pensavámos que talvez fosse apenas do domínio do imaginário.

sábado, 21 de maio de 2016

Babel conjugal

Azucrinava-me os ouvidos. Disse-lhe: cala-te pá, esquecendo-me que era francês. Falou toda a noite. Falhando-me.

sábado, 14 de maio de 2016

Coisas com bichos





Fico perplexa com a reação de algumas pessoas à mudança do regime jurídico que costumava considerar animais como coisas. Parece que há quem tenha apanhado um susto e reaja com um certo terror. Mas será que ainda não tinham desconfiado que os animais não eram coisas? Nem uma suspeiçãozinha pequena, uma pulguinha a trás da orelha, nada? 
Esta reação remete-me para a época vitoriana, quando o Charles Darwin apresentou o seu "A Origem das Espécies". Também aí elas e eles se passaram completamente pensando que a sua humanidade iria ser rebaixada ao nível dos macacos. Elas com medo que lhes desatasse a crescer o buço e eles em pânico de ficarem com as costas felpudas como o Tony Ramos.
Faz-nos falta, talvez, um batalhão de Carls Sagans que venham explicar em programas de televisão o quão fabulosa e única é a nossa espécie, aqui neste pequeno ponto azul, na periferia do Universo. Como é belo o nosso código genético e excitante é a nossa História ao longo de milhões e milhões de anos no Planeta. Para que não nos sintamos diminuídos quando tentamos dar às outras espécies, especialmente às que nos estão mais próximas, e que partilham connosco esta imensa Casa, uma vida melhor.
Faz-nos falta um pouco mais de autoestima, um pouco mais de confiança. E combater este absurdo medo de sermos ultrapassados em direitos por outrem.