sábado, 23 de julho de 2016

terça-feira, 19 de julho de 2016

amnésia querida II

memória vai
memória vem
uma fava
para quem a tem

amnésia querida




Amnésia querida, amnésia querida,
do melhor que a gente tem,
não há outro remédio na vida
igual ao que com amnésia se obtém.

Feliz de quem possa esquecer
o que na vida o faz aborrecer.
Feliz de quem possa apagar
da memória do que o faz chorar.

Graças a Deus, tive esta sorte,
passo todo dia alienada.
Bati com a tola, fiz um corte
e agora não me lembro de nada.


Amnésia querida, amnésia querida,
do melhor que a gente tem,
não há outro remédio na vida
igual ao que com amnésia se obtém.

Dia da amnésia devia ser
todos os dias, alguma coisa esquecer.
Santa branquinha, que alegria,
abençoada esta calmaria.

Nunca na vida, por coisa alguma,
vou agarrar a ideia que se esfuma.
Feliz de quem possa dizer
não tenho magoas, o que é doer?

sábado, 16 de julho de 2016

o meu primeiro morto




Era um homem bonito,
um rapaz, parecia
novo, deitado no chão
de pedra, dormia,
parecia, tinha eu cinco anos.
Na casa dos meus avós
trabalhava com outro homem
mais velho
fechando uma marquise.
De repente o silêncio cortou
o  rugido do berbequim.
Algo estranho acontecia,
na marquise semi fechada,
ele dormia em tronco nu,
parecia.
Tudo estaria bem não fosse
a voz trémula da avó,
o ar demasiado bíblico do avô.
Não me lembro de mais, só um mistério
que ficou no ar
e, na altura,  resolver
não sabia.

sábado, 9 de julho de 2016

INTERVALO PUBLICITÁRIO: NADA, FAZ BEM A TUDO




NADA, faz bem a tudo.





Chegou o comprimido verdadeiramente inovador.
Contra a doença, contra tudo, contra a dor.
Para quem não gosta de químicos agora há NADA
comprimidos que,  quase por milagre,
deixam qualquer pessoa sarada.

E para tirar as dúvidas a quem está de queixo caído, aos mais incrédulos,
deixo o testemunho de uma senhora que desde há meses tem vindo a tomar NADA:

" Dou-me muito bem com NADA. Tomo todos os dias e deixei de ter dores. Tinha uma dor, volta e meia, no joelho, que me chateava bastante. Aquilo só me doía quando estava para vir chuva. O que me irritava bastante pois assim que me dava a dor eu dizia logo, olha, amanhã vai chover. E chovia. Só que, dá-se, eu gosto bastante de ver aquele programa de televisão, o Boletim Meteorológico, e a dor tirava-me o elemento surpresa, é que eu já sabia o que o homem ia dizer. E aborrecia-me. Agora é uma maravilha, mal chega a hora e eu já estou em pulgas para saber que tempo vai fazer no dia seguinte. Tudo graças a NADA. Dantes recusava-me a tomar comprimidos com medo das complicações, das porcarias que lá devem botar. Agora não, tomo NADA, sem problemas e sinto-me feliz.

NADA, até a morte vai ficar desenganada. 



sexta-feira, 8 de julho de 2016

Andrógino




Queres comédia, Aristófanes,
queres? Entra o Andrógino,
o rei dos palhaços,
bicéfalo e balofo,
um par de gémeos, comédia.
Como se algum par de siameses
abdicasse da longa luta
de bisturi e legião
de batas brancas
pela chance de ser só um.
Que comédia!
A pele fez-se para ser tocada,
as mãos querem alcançar,
as pernas querem caminho
para andar
porque não há encontro
sem distância,
não há viagem
sem separação
para quem quer ser inteiro
e completo
a amar o Outro.







terça-feira, 5 de julho de 2016

vingança

no sonho
foi melhor
que na carne
e no osso
a minha
mais dura
vingança

Sylvia

Ilustração de Goya


Nesta cidade tudo é ideia,
nevoeiro.
O Mayor é uma quimera
que toma conta de nós,
habitantes,
fantasmas das musas anémicas,
a maldição a pulsar na alma,
desgrenhados.

Aqui te vim procurar por palavras,
actos e pensamentos.
Inventei uma imagem
a partir do teu nome.

Fui expulsa desta cidade,
ao fim ao cabo,
por tentar trincar a maça concreta,
o bicho gémeo da ameaça.

Na beira da estrada
ainda espero
a boleia de regresso
a Sylvia.

E se voltar,
que mais irei encontrar
nos calabouços
de mim?