quinta-feira, 24 de junho de 2021

wanderlust






 Um copo na mão e um vazio na cona. Dez dias à espera dele sem saber quando nos voltaremos a ver.

Na maior parte do tempo está tudo bem, calmíssima, animada, abro uma garrafa de Papa Figos e sirvo num copo elegante de cristal. Tudo cheiroso no reino da Dinamarca mediterrânica do sul. Até que chega aquela meia hora aterradora de voltar à terra, à boa maneira do major Tom, queres voltar ao solo, e estás sem rumo fora de órbita, cada vez mais longe de casa, fora de controlo, socorro. Ninguém para te ouvir. Um universo de silêncio.

Estás há dez dias sem saber quando vais ver o homem. Que homem? Como,  que homem? O homem, caralho! O único homem que te interessa de momento, esse homem. Ah, claro, o homem, pois então.

A casa é só caixotes. Caixotes à espera da mudança. A casa é um caos temporário. O meu companheiro está de saída. A solidão em suspenso. 

Cozi um  polvo para o jantar que ainda é a dois. E penso: quando voltarei a ter pachorra para cozer um polvo só para mim? Que farei então: corto e divido por 5 tupperwares? Não vai valer a pena essa trabalheira toda, mais vale uma caixa de gelado em frente à televisão. Qualquer coisa comprada já feita, uma salada, conservas, uma merda dessas. Polvo cozido: o fim de uma era.

As ratoeiras, para a maioria de nós, são transparentes. Não as conseguimos ver, mesmo que nos entrem pelos olhos dentro as pernas garrotadas, o sangue pisado, as esquírolas, os estragos, a dor. Pensamos que somos livres. Mas estamos agarrados até ao tutano.

O homem, por exemplo, está refém do casamento. Do seu casamento perfeito, da sua relação ideal com a sua mulher de sonho. Depois fica rezando aos deuses que a esposa se ausente em trabalho uns dias, o maior número de dias possível, para que se possa encontrar comigo e ter prazer. Ser feliz, como gosta de dizer. Mas será que é feliz quando se satisfaz comigo na cama? Ou com ela, em camas separados, partilhando as refeições, cada um matutando nos seus problemas, nas suas obsessões, fantasias, melodramas com personagens secundários. 

Personagem secundária, eis o que sou, nesta história-cliché. A minha cona ressente-se com a falta de glamour.



DOEM-ME AS ASAS

 



Um campo de papoilas

abrindo-se como uma ferida

As cerejeiras sacodem 

flores ao vento

até à cidade dos loucos


Os olhos são noite

fantasmas fiéis

em forma de surpresa

aridez e solidão

sangue e sombra

luz e ausência


As asas enterradas

à força na carne

a parte mais honesta

do corpo


O amor que ela não sente

terça-feira, 22 de junho de 2021

Um Desejo Chamado Eléctrico

 


Eu já saio de manhã para a rua a pensar: que mais me irá acontecer... 

Todos os dias caem-me problemas no colo para resolver. Chama-se a isto "vida". Pelo menos para a esmagadora maioria dos seres bípedes pensantes. Os outros têm mordomo.

Não são só os desafios inerentes à profissão que escolhi que me apoquentam. Esses estão sempre assegurados para quem se dedica a tratar de animais doentes.

 O que me desgasta mesmo são os incidentes colaterais, as torneiras que pingam, os chuveiros que deixam de jorrar água, as lâmpadas que fundem e teimam em piscar irritantemente, as sanitas que entopem e vertem esgoto, os autoclaves que se tornam preguiçosos na hora do enchimento do líquido, as chaves que partem na fechadura, as gavetas que se recusam a fechar na totalidade, os maus contactos das fichas eléctricas, os ruídos ensurdecedores dos telefones, enfim, o diabo a sete.

Hoje a maquineta do Multibanco estava descarregada e foi impossível reverter este estado. O fio do carregador tinha sido roído durante a noite por um elemento mais entediado desta gataria que por aqui convive. Nada a fazer senão chamar o técnico. Ainda aguardo resposta.

Mas, infelizmente, os problemas não são como as vacinas, não há imunidade para os que chegam a seguir.

Na hora de usar a balança veio o vazio do écran. Inspecionando, depressa se deu conta do fio do carregador cortado por dentes afiados. Deve ter havido por aqui uma rave de fios eléctricos, enquanto os humanos dormiam.

Neste caso foi mais difícil conseguir apoio técnico. Comprar novo carregador parecia a única solução. demasiado morosa e cara para o meu gosto. 

Então resolvi encarar este desastre como uma patologia cirúrgica. Estava perante uma solução de continuidade de um fio. Não era um tendão, não era um vaso sanguíneo, não era um osso, não era um apêndice vivo. Era apenas um feixe de fios eléctricos envolvidos num tudo de borracha. Quão difícil podia ser a sua reparação quando até fémures estilhaçados cheguei a resolver? Ainda por cima com o animal agarrado ao problema.

Transladei o dispositivo para a minha mesinha basculante e debaixo da lâmpada cirúrgica  dei início à operação, não sem antes ter assistido no Youtube a uns tutoriais de como reparar cabos de electricidade, é sempre bom ter umas luzes da teoria antes de mergulhar na prática.

Com a ajuda de um bisturi com lâmina número 23 (é demasiado grande, aconselho dois números a baixo) e uma pinça de adison, comecei a descarnar o tudo de borracha exterior. Foi relativamente fácil quando comparado com as etapas posteriores pois no seu interior existiam ainda dois tubos de borracha mais pequenitos, um vermelho e um preto. Comecei pelo vermelho, para dar sorte. Quinze minutos depois tinha conseguido exteriorizar o feixe de meia dúzia de fios eléctricos da espessura de cabelos, mas cabelos daqueles mais raquíticos, os saudáveis serão mais grossos. A técnica do especialista instantâneo na net ficou logo sem efeito, era impossível separar os cabelos de fio, eu já estava a trabalhar no limite do meu campo de visão com óculos. 

Como qualquer veterinário que se preze restava-me o que sempre acabamos por fazer: improvisar.

Lá uni os fios de um topo aos do outro topo numa espécie de amálgama de cabelos que até ver  que pareciam manter-se unidos. Com isto já tinha passado meia hora.

Mais meia hora para executar a mesma técnica com o mini tubo preto, com os seus dois feixes de cabelos eléctricos desavindos. No fim a coisa parecia um belo de um trambolho. As ligações estavam lá. Havia esperança.

Como o cabo tinha perdido comprimento foi preciso encontrar uma extensão. Outro tormento. Onde páram os objectos quando precisamos deles, senhores? No restante do tempo servem para tropeçarmos neles com regularidade.

Lá se instalou a extensão. Agora era o momento do teste. Ligar o botão e... pura magia: funcionou!

Para prevenir "acidentes" futuros, daqueles causados pelo encontro da borracha com os caninos de felinos desocupados, toca de envolver todo cabo com uma bela de ligadura coflex cor-de-rosa. 

Et voilá!

Agora vou entrar novamente em cirurgia. Tenho à minha espera uma máquina de tosquia que estava encostada às boxes, coitada, e já tinha metido os papéis para a reforma à conta de uns bicos de papagaio mal diagnosticados.