sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Dias Singulares

Fotografia de John Rawlings



Dias singulares
com o mar em frente

um mar tremendo se fez único
ressarcindo o sal do corpo
lavrando pedras na orla da praia
onde ainda ontem era apenas
chão despojado e nu

Dias semeados amiúde nos meses

um mar-moisés abrindo nas rochas
saciando-as num diálogo recortado
a cada respiração
a cada maré
decifrando as repostas
na volta da onda
esculpidas num corolário
de espuma

Dias singulares com o mar em frente

um mar inteiro e duas gaivotas
povoando um lugar
moradia de fronteira
no intervalo absoluto
das nuvens

dias singulares
pedindo implorando
dias iguais


sábado, 15 de setembro de 2018

O AMOR NÃO SABE NADAR



Pintura de John Wesley





O Amor
é todo carne
espada
sem escamas
outras guelras

barbatanas presas
não nada
não esperes
é todo carne

não lances ao mar
não nada
não esperes
estrada que rasga
terra dentro

boca cortante
entra a eito
não esperes
não nada
é todo carne

não lances
de foz em fora
toda a água
o demora
o devolve
alforreca

o Amor
já murcho
cego e furibundo
não esperes
não nada

todo carne
todo sangue
todo fundo
todo ferro
todo corpo



quinta-feira, 13 de setembro de 2018

VIADUTO

pintura de Amy Shackleton



A vida é
do viaduto
a travessia

em vias
de ruir
a cada passo
deus é a ausência 
do atrito

no fim
o corpo encoberto
roda
em queda livre


sábado, 8 de setembro de 2018

As Acácias




Las Acacias:
 Um filme de Pablo Giorgelli com Gérman De Silva e Hebe Duarte


Mil quilómetros direito
a Buenos Aires de Assunção
uma bebé bonita vai
partir a pedra no olhar
do camionista
uma bebé sem pai
noite e dia derrubando
as acácias troncos
no olhar do camionista
mil quilómetros sempre iguais
mas já diferentes
na cabine silêncio
só o calor do motor
tantos anos sempre
e agora uma gargalhada
de uma bebé bonita
porque a estrada é pesada
e o veículo longo
e o sorriso morno
o homem vai partir
a pedra do seu próprio peito
deixando aberto
o coração





sexta-feira, 7 de setembro de 2018

LUGAR COMUM


Atlas de Nichols Kalmakoff




No poço lodoso
um entulho de palavras pedras
aterra num estardalhaço
uma anunciação
no fundo não chega luz
nada se plantará que cresça
um silêncio fecundado é o ar
que nos falta
não se fará um poema
sobre esterilidade
mãos abrindo
um túnel para o tempo
do posfácio
braços não sobram
para despedidas
mãos a ouvir
nunca houve

O plano inquinado
é o que conduz o corpo
à queda
numa aceleração viciada



quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Mordaças e açaimes


Pintura de Thierry Feuz




Mordaças
a fechar o focinho
ao cão esfaimado
raivas espumantes
de língua e latidos
fabricando um silêncio
espacial

Dentes contra lábios
boca contra palato
lábios contra dentes
glote contra amígdalas
azedas amigas

Açaimes
sequestrando o uivo ao centro
tornando a garganta lobo
animal de poucas falas
estepes algumas
nenhumas preces
só silêncio espacial






JEJUM



Há palavras da moda
ou medicinais
que andam na boca
de toda a gente
mal ao mundo não vem
se tens o atrevimento
de experimentar
uma ou outra

Na realidade
ao fim das vinte
e quatro horas da praxe
vais conhecer
na bendita manteiga
derretida
que barra a preceito
o pão o sabor
verdadeiro da Poesia
o seu cheiro

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

SEMENTEIRA



O céu
sementeira de mundos 
canções
crescem estrelas
quartos minguantes
rondam luas
sonhos que se realizam
na cama da noite
desenhos que se oferecem
histórias  madurando
prontas a colher
se decidirmos abrir
os olhos
ver

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O DEUS DA MIOPIA

Masks designed by Cornelis Floris and engraved by Frans Huys, in 1555


Ao almoço
choques com tinta
o desperdício as palavras
afogadas em espesso líquido
jamais serão lidas

dois tentáculos de silêncio branco
farejam a garganta
o sufoco

o dia abranda
acusando uma ausência
a luz imóvel revela
a rarefação dos minutos
moinha opressiva

há horas que ficam
como farpas aguçadas
alojadas no sabugo
dos dedos
as unhas: testemunhas mudas
prerrogativas
do Deus da Miopia

A escolha dos olhos
seria
sempre não ver

domingo, 2 de setembro de 2018

MULHER NENHUMA

Fotografia de Nicola Kuperus


Alguns olhos incautos
hão-de tomar
a poética da foda
por luminosos
poemas de amor


mais tarde haverá de perder
o desejo pela esposa
tendo passado a amá-la

não a trairá
mulher nenhuma
ganhará a sua cama
só cona
mulher nenhuma

EM PARTE INCERTA

Hiding from love, João Figueira


Em parte estás
por ficar
partiste-me
a certeza de estar aqui
tão longe
indo embora

CORAÇÃO BOIMERANG




Coração de boi
dar e levar com ele
em cheio na nuca
nunca foi pêra
doce dor de quem
viu fugir-lhe
a carroça lá na frente
a força escoar
por nervos ou colares
missangas de esperança
entornadas no chão
da praia onde morrer
um coração
é um boi uma arma
vai e vem
contra nós marra

sábado, 1 de setembro de 2018

MÁ MENINA MÁ

Fotografia de Tatiana Gulenking



Criaturinha das trevas
desacompanhada
na escuridão celeste
criaturinha das trevas
menina fosforejante
suja

vieste do outro lado
do tempo à boleia
num túnel de minhoca
menininha misteriosa

Aprendeste a cosmogonia
do castigo esse ritual
repetido desde a Infância
na oca protetora
ao longo das eras
vens dar-me uma lição
de genealogia

percorre-te a carne
um unguento
de amargura a flecha
enterra-se na espádua
marca de Órion
Caim de cabeça
no corpo meio vazio
um desejo de dor
como um pecado

Ó criaturinha das trevas
má menina má
eu te absorvo






O Elefante Tombado




Ilustração de  Billy Shire




Xeque-mate elefante
no meio da sala
tomei a liberdade de
avançar pelo xadrez
senhora
puxando o tapete
ele tomba
numa invisibilidade
intermitente
um caso de perícia:
jaz
não jaz
elegante


a tromba é de água
criatura minando a noite
coração de um só lóbulo
consolo de lábios tantos
corroído de rugas
rasgos de fúria
um mapa de ruelas onde se
esconde a memória
(que nunca morre)
a esvair-se em sangue
exaurido chilreia
prenda de rajá
um mamute de marfim
assegura o comissário
casca grossa
salvou-se a rainha ao menos
a culpa  serve-se com chá
de  sevícias
e cardamomo

MUTANTE

Macro fotografia dos olhos de um insecto de Yudy Sauw





Acerto com força
na mosca
que insistentemente
me pousa no braço,
caramba, e não morre!

O mutante mor
cego ferra-me
os caninos
no pensamento.