quarta-feira, 31 de outubro de 2018

GRANDE SERTÃO: VEREDAS


GRANDE SERTÃO: VEREDAS (Spoiler alert)





Riobaldo: viver é muito perigoso.
Diadorim: carece de ter muita coragem.

Este pequeno diálogo entre os protagonistas, que se repete ao longo do livro,é o núcleo duro da história, representa a relação entre os dois protagonistas, em redor do qual tudo vai girar.

É logo no início que nos é revelado o grande amor de Riobaldo pelo jagunço Diadorim. A par das descrições maravilhosas das belezas naturais da região, o velho Riobaldo (o narrador) vê-se a si mesmo deixando-se levar por um sentimento de grande delicadeza e ao mesmo tempo de uma força incomum, que nos toca profundamente.
Pensei, com perplexidade, que o livro era uma espécie de Brokeback Mountain brasileiro passado no Sec. XIX. Mas não.
Esta não é uma história de amor gay, não no sentido clássico do termo. Embora haja um homem que ama outro homem. Um homem de orientação heterossexual que se apaixona por um homem, que afinal era uma mulher. Mas ele só descobre a mulher depois da morte desta. O amor por Diadorim é sempre o amor por um homem.

Este não é um romance sobre o Género. Esta é uma história sobre Identidade.

Uma história sobre o Amor. E como o Amor, essa força avassaladora, pode ameaçar a construção frágil que é a Identidade de uma pessoa.

 Até metade do livro nunca desconfiei, nem por um instante, que o Diadorim não fosse homem. Achei esta luta interior do Riobaldo uma coisa extraordinária, que dilema, que drama, que guerra consigo próprio, que maravilha de revolução pessoal íntima! E quanto a mim, a história não precisava da revelação final, fazia sentido igual manter Diadorim homem. Mas percebo que fosse muito ousado para os anos 50. Ainda assim, fico curiosa sobre a reacção do público na altura. Abandonavam o livro a partir das primeiras dezenas de páginas ou adivinhavam logo o enredo final, sendo que dois homens amarem-se seria mais bizarro que ficção científica, entendiam logo que se tratava de uma mulher transvestida?

Tive então a triste ideia de ir espreitar ao Youtube a série da TV Globo, de 1985, haviam-me dito que era muito boa. Eu só queria ver um pouco do início, para ver o ambiente da coisa. Não passei do elenco: protagonistas: Tony Ramos e... Bruna Lombardi, ó merda, é uma mulher! E pronto, vi logo tudo, caldo entornado.

Claro que me choca muito o facto da história ficar toda deturpada na mini série (e no filme de 1965 é igual, é uma tal de Maria Clara a fazer de Diadorim). Já não é uma linda história de amor entre dois jagunços como é no livro. A homofobia é uma desmancha prazeres, em sentido lato.

Mas lá consegui continuar a ler o verdadeiro enredo do amor maior entre dois seres do mesmo sexo, do ponto de vista do Riobaldo. Diadorim sabia a verdade.

Comecei então a pensar que esta seria o argumento ideal para um realizador de cinema (e escritor, ele é escritor também, desde 2014, que boa notícia) chamado David Cronenberg, um tipo que tem como um dos pilares básicos da sua temática cinematográfica a Identidade.

Diz o Cronenberg numa entrevista que se pode encontrar no YouTube (Cronenberg on Cronenberg) : “Somos criadores na nossa própria identidade, embora se possa crer que é algo que nos foi dado,  temos de nos reconstruir todos os dias.”
E diz Riobaldo, a páginas tantas:
“ O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”
e ainda:
“Para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho-caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”

Riobaldo ao longo da história vai fazendo muitas perguntas ao viajante que o escuta. Mas existe uma pergunta oculta por trás de todas as questões: Quem sou eu?
O velho Riobaldo está também a reconstruir-se à medida que conta a sua história, está a descobrir-se, a reconhecer-se nos vários Riobaldos que vão surgindo com o passar dos tempos: o menino Riobaldo que passa o rio São Francisco, cheio de medo, com o menino Diadorim, o Riobaldo secretário e professor de Zé Bebelo, Riobaldo Tatarana, Riobaldo chefe dos jagunços, Riobaldo o mulherengo, Riobaldo o apaixonado por outro jagunço, Riobaldo o que tentou vender a alma.

Há uma parte em que Riobaldo é chefe, e está aprender a agir como chefe e o bando encontra um homem a cavalo numa égua com uma cachorra ao lado. E ele diz que vai matar o homem e nós damo-nos conta de que o velho Riobaldo está a relatar o que acontece ao Riobaldo que se observa a dar aquelas ordens aos seus homens, sem saber bem se consegue manter a sua própria palavra. Ora diz que é para matar o homem mas não consegue, ora diz que é para matar a cachorra mas também não pode e ainda tenta matar a égua e nem isso. Ele procura a sua própria alma através das suas acções, auscultando o seu coração para ver se realmente o Diabo já o fez refém ou se ele ainda é apenas o mesmo Riobaldo de sempre (e quem será esse?). Há aqui o velho Riobaldo que observa o chefe Riobaldo que se observa a si mesmo como uma pessoa separada da sua identidade. Uma Matrioska de Riobaldos.
(engraçado que na referida entrevista Cronenberg menciona Samuel Beckett como um autor que usa muito as personagens separadas na sua própria identidade)

Esta ideia do ser em construção também podemos ouvir em “Pano-cru” do Sérgio Godinho:
Ouve, meu amigo
põe a máquina a gravar
queria só explicar aqui
que eu sou como o pano-cru
como pano-cru
eu ainda estou por acabar
e como o linho vem da terra
assim viemos eu e tu
e como tu eu faço e amo
e luto e dou
e como tu eu estou
entre aquilo que já fiz
e aquilo que eu fizer
eu sou de pano-cru


Quem sou eu? pergunta Riobaldo. Sou destemido, sou bom, sou do Diabo, sou capaz de comandar, sou capaz de matar, de ser jagunço, sou do Joca Ramiro ou sou de Zé Bebelo?
“Que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traição minha, fôsse no que fôsse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa.”

Viver é muito perigoso. Uma Travessia. Muitas. Viver é a travessia. E é para essa derradeira, a maior de todas, que vai ser preciso a tal coragem, a coragem que Diadorim há-de sempre dar a Riobaldo. Começando no rio São Francisco e perdurando pelo Sertão a fora. Podemos dizer que a história acaba em tragédia. Mas o velho Riobaldo a certo ponto diz ao viajante: “ Ao portanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse.  Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia dêles fôr enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, na vai-a-vida inteira. Que; coragem- é o que o coração bate; se não , bate falso. Travessia - do sertão- a tôda travessia.”

Foi um amor vivido a meio termo, mas foi vivido. Apenas não foi consumado a nível físico. Havia coragem no coração mas não havia atrevimento suficiente para quebrar todas as regras do Sertão. Era uma desconstrução que ameaçava a própria identidade dos envolvidos.

E Diadorim? Não podia ela ter aberto o jogo? Riobaldo também diz ao viajante que ela lhe tinha negado  a verdade, culpando-a pela manutenção da impossibilidade falsa de serem dois amantes livres e plenos.
Mas também aqui é uma questão de identidade. Diadorim era jagunço. Não sabia o que era ser mulher. Pelas conversas que ouvia aos outros ela só sabia que “mulher é gente tão infeliz”. Revelar o segredo seria morrer antes de ressuscitar, mas ressuscitar numa forma alienígena. Diadorim desaparecia para sempre. Estávamos em 1890, não havia jagunças, só jagunços. Esta não é uma história de igualdade de género. É uma história sobre identidade e Diadorim era um homem aos olhos de todos. Aos seus próprios olhos. E haveria de morrer homem.

Que força estranha é essa, avassaladora, que faz ameaçar a identidade de uma pessoa, chamada Amor?
Dizem que surgiu como uma pulsão adaptativa/evolutiva, um factor que permite que duas pessoas se mantenham juntas para criar a descendência e preservar a espécie. Talvez tenha sido assim no início mas depois há-de ter ganho vida própria e seguido outras vias, é como um fogo fora de controlo, solto no mundo. Se não, vejamos, por exemplo: que vantagem adaptativa tem o amor por pessoas já falecidas? E o amor entre pessoas do mesmo sexo? O amor é tão inconveniente quanto murro em nariz quebrado. É impiedoso como um terrorista funesto. E não dá tréguas.
Riobaldo bem sabe disso: “Se é que é- eu pensei-estou meio perdido.”

A RODA GIGANTE (Com Spoilers, Brasil e Brad Pitt)








No passado Domingo foram as eleições presidenciais no Brasil. Cheguei a casa no final da tarde a tempo de ouvir as primeiras projeções de resultados.
Nunca umas eleições no Brasil tinham mexido assim comigo. Embora a vitória do Trump tivesse sido um evento de certa forma traumatizante à escala mundial, desde os tempos do primeiro mandato do Mário Soares que não me envolvia com tanto vigor (ainda que a nível virtual) numa campanha política. E desta vez nem sequer foi no meu próprio país.
Achei por bem descontrair antes do doloroso momento da confirmação do que haviam apregoado as múltiplas sondagens: a vitória do candidato de extrema Direita.


Escolhi um filme. Ainda dava tempo. A Roda Gigante, de Woody Allen. Em princípio desviaria a minha atenção para outros temas.  Em princípio desviou. Mas no fundo, no fundo, a conclusão veio bater na mesma tecla: a explicação de uma escolha que o ser humano faz. O que leva uma pessoa a agir, a escolher uma acção, cujas consequências são agudas, dramáticas, irreversíveis e moralmente questionáveis?



A Roda Gigante (Wonder Wheel), dizem que será o último filme do realizador. É um clássico, e ficará como um dos melhores da sua carreira. Absolutamente perfeito, em termos visuais, tem ainda uma interpretação fenomenal dessa grande actriz chamada Kate Winslet dando aqui corpo a uma personagem trágica que não ficará, em carisma e intensidade, atrás da Blanche DuBois de “Um Eléctrico Chamado Desejo”.


Ginny é uma mulher à beira dos 40 anos, na década de 50 do século passado. Ataque de nervos é pouco para explicar como se sente, o quanto lhe pesa o dia-a-dia, sempre que se arrasta para o emprego na marisqueira onde atende às mesas. O segundo casamento com um alcoólico em recuperação entrou na rotina desinteressante e enferrujada dos matrimónios meramente convencionais.

O cenário é Coney Island, Brooklyn, Nova York:  a praia, os carroceis e diversões de feira. A vida é recreio para o povo e uma pasmaceira infernal para Ginny, que já fora uma actriz jovem e cheia de potencial. E por um erro trágico da sua parte perdeu a carreira e quase tudo. Ficou com um filho pequeno e acabou por dar à costa num casamento cujo o único sentido é o desespero de causa, a sobrevivência. Ela sente que aquela empregada de mesa que vê no espelho é o derradeiro papel, no grande palco da vida, que lhe coube em rifa. Não é verdadeiramente a sua pessoa. Há um corte com a sua identidade.


Até que conhece um nadador-salvador. Ironia do destino e ironia do trocadilho. Tornam-se amantes e ela pensa que ele a irá resgatar a uma existência sem significado. Que a levará para um destino paradisíaco e a transformar novamente na mulher deslumbrante que fora em tempos, e que no fundo, ainda continua a ser.
Mas Mickey também não era um nadador-salvador no verdadeiro sentido do termo, nem no metafórico. Ele era um potencial escritor (personagem que faz lembrar todos as outras interpretadas por Woody Allen, que são sempre o próprio) e como tal interessava-se mais pelas histórias das pessoas do que pelas pessoas em si mesmas. A História trágica de Ginny fascinou-o mais do que a própria mulher. Que, entretanto, se foi tornando mais irascível, instável e insegura do que ele estava disposto a suportar.
Tudo isto se agrava com a chegada da filha do marido de Ginny, que vai despertar a paixão de Micky e o ciúme inflamado desta.
Carolina tinha uma história excitante para contar: andava a fugir da Máfia pois casara com um gangster. Claro que Micky ficou imediatamente hipnotizado pela narrativa.
Carolina gosta da madrasta e confidencia-lhe tudo o que vai acontecendo entre ela e Micky.
Por isso Ginny sabe que os dois estão a jantar na pizaria quando os mafiosos chegam para matar a rapariga. E logo aflita corre a telefonar para o restaurante a avisar do perigo que corre. Mas enquanto fala com o empregado fica congelada, bloqueia completamente. E nós vemos aquele olhar fixo, parado, ausente que significa uma mudança crucial. Ginny deixar de pensar, deixa de distinguir o Bem do Mal, do que é certo do que é errado, a lógica, o pensamento racional detém-se naquele ponto, trava e congela.
Há um momento de suspensão a partir do qual a emoção toma conta dela. a paixão avassaladora e o ciúme ardente imobilizam-na, impedindo-a de salvar Carolina. A acção passa a reacção comandada puramente pela emoção.
Desliga o telefone. Vai-se embora. Carolina nunca mais aparece. Micky descobre tudo e passa a ver Ginny como uma assassina. O amor acaba. Ela perde tudo e volta ao seu papel de empregada de mesa, agora colado à sua pele como que por argamassa.



Este momento final, o clímax do filme fez-me lembrar um outro, chamado 7 Pecados Mortais do David Fincher que toda a gente há-de recordar.

Às tantas o assassino está diante do Brad Pitt e chega um carro com um caixa que lhe é deixada aos pés. O polícia abre a caixa e vê a cabeça da sua mulher. O sétimo pecado é a Ira e Kevin Spacey conta com essa emoção para levar o homem a cometer o crime.


 A Ira é uma emoção, uma das mais forte. Brad Pitt luta contra si mesmo, tenta controlar-se. Morgan Freeman, o Polícia mais velho tenta chamá-lo à razão: não deve ceder ao plano do assassino. O melhor é não fazer o que ele quer, o maior castigo será não o matar. Ele hesita, ele está a tentar recuperar o controle, mas a emoção é mais forte, a Ira ganha e ele mata o criminoso.
Podemos entender melhor esta personagem porque a “vítima” é um ser execrável, um monstro desumano, um ser horripilante. Depois haverá outra vítima, o próprio polícia que passa para o outro lado da barricada, desaparecendo a identidade que vestia até ao momento.

 Mas há uma semelhança entre as duas histórias: no fim existe uma dissociação entre a razão e a emoção, uma luta entre estes dois polos da personalidade das pessoas em que uma se torna mais forte e toma as rédeas da acção dando origem a um erro. A emoção não consegue escolher entre o Bem e o Mal, ela não escolhe, não é capaz, apenas reage em função do humor do momento, sem ter em conta as consequências. A emoção é apenas o agora sem o depois. É o sabor do preciso instante. Num instante apenas se pode destruir, para a construção é sempre preciso mais tempo.

Uma acção baseada na emoção pura pode ter um grande poder de destruição.

 Assim como o voto. Assim se viu no Domingo passado, no Brasil. Seja pela ira dos que estavam fartos do PT quer por paixão a Deus dos Evangélicos, a diferença entre o Bem e o Mal foi totalmente aniquilada, a Moral descartada, a lógica suspensa. Nada do que foi dito pelo candidato vencedor teve qualquer efeito na decisão dos votantes pois eles não estavam decidindo com a razão mas apenas reagindo com emoção aos acontecimentos. Para estes o seu acto extinguiu-se no próprio momento do voto e não terá consequências.  Mas elas virão. Para outros, para eles próprios, para todos. E para alguns, mais cedo que tarde.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

feiticeira inédita

Gravura de Albin Brunovsky





o céu sitiado de estrelas
ao comando
uma lua complacente
demissionária

atada
ao mastro fervoroso
a feiticeira inédita
vai ouvindo o crepitar
do fogo preso
horizonte crescente
de um mistério tentacular

promontório lambendo
cada perna devagar
subindo derretendo
a pele obstinada
amolecendo ilíacos
dilatando frestas
ascendente domínio
açulando dentes e língua

o coração arranca
num galope vertiginoso
o corpo avança
perdendo-se
no vicioso círculo
amálgama de aço e forças
no final a cinza
que se há-de aspirar
e engolir inteira

antes do grito da carne
a feiticeira inédita
há-de aprender
a reter o fôlego
nova respiração
porque
o fogo também tem marés
se chamas
será preciso urgir
e atravessar esse
mar de ferro


sábado, 13 de outubro de 2018

O Início

Irises, Marc Quinn





o dedo clica
o cronómetro
o tempo principia
fogem para trás
as nuvens inchadas
de sombras e escuridão
arrastando a lua encardida
dura como ferro
sonâmbula
quando um céu
se inflama de estrelas
pingando e escorrendo
um eflúvio obstinado
uns olhos fixam
detêm-se
noutros olhos siderados
foi o início








vestir o disfarce

"The dress likes to write sculptural gestures in the air", trabalho de Cocky Eek




Tantas máscaras
para tão poucas perucas
pudesse eu arrumar melhor
na indumentária a dúvida
a dúvida sistemática
ou ligeira
sustentada ou suspensa
a fé ao invés de cortar
os mesmos cabelos repetidos
os mesmos brancos semeados
no preto intenso
deixa lugar à tal
velha dúvida
denunciando um cansaço desdobrado
que vai sempre perseguindo
as variadas possibilidades intercalares
um stalker de bengala
claudicando atrás
de cada figura
perucas
dessem-me múltiplas
à Mozart
polvilhadas de pó de talco
acolhedoras
das palavras gaguejantes
na hora de vestir o disfarce
gargalhadas
numa entremeada de coerências
todo um estilo próprio
que se estende de baixo
do courato protector