quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Estrela Distante



O fumo de um pequeno
avião de combate antigo
desenhando traços no céu,
poemas quase perfeitos
nas simulações aéreas,
assombro do omisso
e implacável piloto-poeta.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

pele






A pele nunca se cala. A pele sabe falar. Foi por isso que fugiste ao meu primeiro toque. Por medo que a pele me contasse os teus segredos. Na altura não percebi. Andei como que cega. Mas agora é como se visse que não tinhas alternativa. A fuga foi a tua salvação. Eu não podia saber, ninguém podia saber, dessa tragédia que te consome. A pele queria falar. A pele aborta o silêncio. É por isso que o toque conhece tudo no primeiro instante. O calor que vem da pele. O frio que vem da pele, a solidão.
A pele sente necessidade de falar. Conta tudo, entrega os pontos, desabafa, chora, é a  rendição total. E a fuga, por vezes, é a única maneira de iludir a morte.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Porque é Natal





O nosso coração rejubila de emoção,
Finalmente, chegou mais um Natal.

Tudo está iluminado e brilhante
E há boa desculpa para voltar ao Centro Comercial
Porque mais uma vez é Natal.

É uma época de grande paz interior
Pois nasceu o... quem era esse menino afinal?

E prós doentes as Festas viram festival
Os pimbas cantam  no palco do Hospital:
Não sejam piegas, é Natal!

Podemos descansar das tragédias do jornal
Do pensamento fazemos um intervalo,
Porquê? Porque é Natal.

Tudo a rasgar dos presentes o laçarote
Das caixas deixadas pelo barbudo velhote
A minha família quase parece normal
Todos à mesa na galhofa e a comer o peixote,
Claro, é Natal!

Tudo corre bem e de feição,
Os doces fritos nem sequer fazem mal
Não engordam nem causam
Refluxo do suco estomacal
Só porque é Natal.

É do ano a noite mais tradicional
Pró comunista e pró fã do capital
Ó estúpido, é o Natal!




sábado, 19 de dezembro de 2015

O velho que queria matar o cão

Beckett, o meu cão


O cabrão de um velho
levantou a enxada
para atacar o meu cão.
Lancei os gritos afiados
que se cravaram nos braços
perfurando-lhe a intenção
que uma levada não é
mais importante que um animal
feliz, o meu amigo.
Se as palavras pudessem matar
haveria mortes pelo pedaço
de terra baldia, árida,
mortes por hortaliça poluída
dos escapes dos veículos
leves e pesados, indiferentes.
Mas o meu cão
sorria com a boca
e por todos os dentes,
de língua rosada, vergada
ao peso da alegria sem freio
e os olhos foram dois discursos de paz,
imune ao ódio
do momento e assim
me calou com o seu abanar
de cauda bandeira branca.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

o tempo todo




o tempo todo
a esmagar 
o corpo todo
a doer todo
o tempo
todo
o corpo doendo
esmagando o tempo
todo o corpo
passando no tempo
a doer  todo
a passar todo
no corpo
o tempo
a doer


torto


Ponte 25 de Abril, à noite.


escrever torto
por linhas tortas
com tinta entornada
palavras trôpegas
direitas ao assunto
mal fadadas
farpas
a espetar no afiado
peito
de orelhas moucas

sábado, 5 de dezembro de 2015

Senhor Américo

O senhor Américo tem uma mercearia ao pé da minha casa.
O senhor Américo dá bocadinhos de fiambre aos meus cães quando lá vou.
O senhor Américo gosta de todos os cães das suas clientes.
Não há cão que não goste de visitar a mercearia do senhor Américo.
Ouvi dizer, um dia, que quando o senhor Américo morrer terá a mais longa matilha no seu funeral.
Não creio que exista imagem mais digna e consoladora de um funeral.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

vento divino

Salome, Rafal Olbinski para Strauss



Deponho decapitada
a teus pés
o pedaço da cabeça,
o caroço,
Salomé,
(o pescoço
não chora)
recebe o meu
suicídio benigno,
saboreia.
Não chores
(como se chorasses),
não dances
(como se dançasses),
não te canses.
Chegou ao fim
esse meu longo plano
kamikaze
inflamado p'lo tempo,
um vento divino,
que não havia meio
de aterrar,
mas planando no alto
foi cair no colo
do teu medo,
quando eu era
João,
voluntariamente.