terça-feira, 30 de agosto de 2016

Pop Corno

Humanos: David Fonseca, Camané e Manuela Azevedo cantanto músicas de António Variações



Vinha na viagem Algarve-Lisboa a ouvir uma compilação de música portuguesa que já tem uns anitos quando me lembrei que seria giro fazer um poema com frases soltas das várias músicas da mesma. E como tinha 3 horas sem nada para fazer senão guiar entretive-me a cortar-baralhar-e-voltar-a-dar com as 18 músicas. (Em boa verdade o CD tem 20 faixas mas eu costumo passar sempre duas delas e não me apeteceu gramar com elas só para roubar frases). Como aquilo é malta portuguesa a cantar tinha de dar para o choradinho, ou para a dor de corno, como se costuma dizer, daí o título.


1- Gaivota, The Gift (Amália Rodrigues)
2- Clandestino, Deolinda
3- Tatuagem, Mafalda Veiga (com Jorge Palma)
4- Hip Hop Sou Eu e És Tu, Boss AC
5- Mudar de Vida, Humanos  (António Variações)
6- Coisas Tontas, Paulo Gonzo e Rui Reininho (
7- Advérbios de modo não combinam com amor, Gato Fedorento
8- Luz Vaga, Mesa
9- Ana Lee, GNR
10- Ouvi Dizer, Ornatos Violeta
11- Dance, David Fonseca
12- Casa, Rodrigo Leão ( com Adriana Calcanhoto)
13- Dancemos no Mundo, Sérgio Godinho (com Clã)
14- Re-tratamento, The Weasel
15- Picture of my own, Fingertips
16-Sopro no Coração, Clã
17- Balada da Gisberta, Pedro Abrunhosa
18- Ok! Do You Want Something Simple, The Gift


Pop Corno (poema compilação)

ouvi dizer que o nosso amor acabou
pois eu não tive a noção do seu fim
já não me deixas ser assim
pequeno almoço só p'ra mim
você me trocou e como alternativa
escolheu um cara que somente adjetiva
perdoar
como perdoar?
faço pinturas de guerra
que eu não sei apagar
as a tear comes from inside
I feel like I'm gonna drown
quis pedir ajuda
mas a língua estava morta
sei lá
sei lá eu o que desejei:
não voltar nunca...
amantes, outra casa...
chega só um pouco perto de mim
acredita nunca me senti assim
só queria dançar contigo
sem corpo visível
dance dance dance dance dance dance
ritmo e poesia é o que nos caracteriza
e quem não sabe dançar improvisa

o amor é tão longe
o amor é tão longe
sim, o amor é vão
todo o amor é vão
ópio do povo
que perfeito coração
no meu peito bateria


behind this sacrifice, can't you see the words?

a cidade está deserta
e alguém escreveu o teu nome em toda a parte
nas casas nos carros nas pontes nas ruas
em todo o lado essa palavra
repetida ao expoente da loucura
ora amarga ora doce
pra nos lembrar que o amor é uma doença
quando nele julgamos ver a nossa cura

(olha que a vida não
não é nem deve ser
como um castigo que terás de viver)





promessas vãs

foto de Sofia Pires


ninguém escapa à sua sombra
desconfia
de quem quer estar sempre feliz
é sentir pela metade
ninguém vai abortar
todas as lágrimas
há qualquer coisa de perverso
em querer amputar do destino
toda a tristeza e dor
enquanto há coração
o sangue corre
o sangue escorre
nos espaços por onde foge

também não verás vida
sem fuga
ou promessas vãs
maratonas de alusão






sábado, 27 de agosto de 2016

um homem extraordinário

ilustração de Frédéric Forest




Ele reclama. Chama o seu nome. Ela pára, volta-se para ele, à saída do quarto, mão na porta, à espera. Ele tenta articular uma palavra, uma frase jocosa e erudita mas desiste sem dizer nada. Ela abre a porta. Ele volta a chamá-la. Ela estaca ao nível da ombreira da porta e espera.
- Não vás ainda.
-Diz lá então.
-Não sei que te diga mas peço-te um pouco mais de tempo.
-Para quê?
-Para falarmos.
-Então fala.
-Não sei o que queres que te diga.
- Eu não quero que me digas nada, és tu que parece que queres dizer alguma coisa.
- Muita coisa, eu quero dizer muita coisa. Fui eu que falhei, é certo. mas não foi por mal, não foi por querer.
-Sim, e o que adianta isso agora? Já tomaste a tua decisão. E eu já acatei essa mesma decisão.
- E se eu voltasse atrás...
-Que lata! Que grande lata. Não, não vais voltar atrás, porque eu não vou andar aqui para trás e para frente ao sabor dos teus caprichos. Já me julgaste e condenaste e agora vou cumprir a sentença proferida. Sem apelo e sem recurso, e quanto mais rápido o tempo começar a contar melhor, mais depressa me vejo livre de...
-De mim, era isso que queria, afinal de contas, deste-te a este trabalho todo para me veres pelas costas. Tinha sido mais fácil se tivesse sido sincera e...
-Tretas! Sabias que eu não estava bem, nada estava bem e fingiste sempre, não querias ouvir, adiaste sempre as conversas, nunca dava jeito, nunca era o tempo certo, porque havia muita coisa importante a acontecer e não dava para parar e falar sobre assuntos desconcertantes, era tudo muito muito desconcertante e eu... eu fui deixando andar, adiando também, fui-me fechando na minha concha, fazendo a minha vida... isolando-me...
-Não lhe chamaria isolamento, propriamente dito...
-Foi isolamento sim, foi isolamento. E o isolamento leva à carência e a carência leva ao desejo e aconteceu, aconteceu-me e nada posso fazer para voltar a trás e desfazer o que fiz e se pudesse nem sei se queria desfazer!
- Está tudo bem então, foi bom para ti, ao menos agora nem preciso de perguntar...
-E quando é que te lembraste de perguntar?
- Nunca, de facto, tens razão, já disse que fui eu a errar
-Não, não te finjas de sonso, tu não te consideras culpado de nada. aqui a rameira sou eu.
-Nunca te disse isso!
-Não, não dizes, é demasiado educado e polido, não desces tão baixo. Não dizes mas pensas e eu até vejo os teus pensamentos como se congelassem no ar, no balão gigante, bem por cima da tua cabeça: RAMEIRA. Não é assim que me classificas? Não é este o termo erudito para puta, o termo clássico?
-Não faças isso, vamos conversar...
-Mais ainda? Não me dissestes já tudo como ironia primeiro, depois com sarcasmo, depois com mágoa, depois com raiva, depois com fúria louca... Já ouvi de tudo e de todas as maneiras, já chega.
Vou-me embora, vou expiar a culpa e tentar um dia, um dia quem sabe... possa fazer tudo diferente, tudo muito mais limpo...
-Desculpa-me, desculpa-me, eu sei que também sou culpado, desculpa-me...
- Nem sei se estás a ser sincero...
-Duvidas de mim? Alguma vez te menti?
-A ausência de mentira não implica sinceridade. Sabes bem disso, és inteligente.
-Que importa isso, não fui suficientemente expedito, suficientemente intuitivo, ou possessivo, talvez...
-Enterraste a cabeça na areia e recusaste falar, foi só isso. De resto não te faltam qualidades.-
-Quais? Diz uma.
-Tu és um homem extraordinário...
-Por isso me traíste com outro.
-Pois, deve ter sido, sou maluquinha e foi isso, não suporto homens bons.
-Então o que foi? Se sou assim tão bom...
-Não és assim tão bom, és extraordinário mas não assim tão bom, tens defeitos, muitos defeitos e eles fizeram-se notar e eu não consegui lidar com eles da melhor forma...
-Então afinal esta traição aconteceu pelos meus ou pelos teus defeitos?
-Pelos meus, agora adeus e até um dia destes. Felicidades.
-Não vás!
-Vou. Aliás tu não precisas de mim para nada, nunca precisaste. Nem de mim nem de ninguém, Tu precisas da ideia de uma mulher, precisas de uma mulher no teu passado para teres material de escrita. Por isso até te estou a fazer um favor. Ficas com a tua história triste e a tua melancolia agora plenamente justificada, quase de papel passado, digamos assim.
-Não digas asneiras!
-Na mouche diria eu, consegui pôr o dedo na ferida. Se começar a escarafunchar muito até vejo que fizeste tudo de propósito, deste trela, fizeste-me apaixonar, depois começaste a cortar trela, a deixar-me à toa, tudo para me destabilizar e entrar em abstinência...
-Que disparate, não fiz tal coisa, estás a virar o bico ao prego. Foste com outro porque quiseste e traíste-me e mentiste-me e foste uma autêntica cabra por me esconderes tudo, eu é que descobri...
-Adeus, tens razão, para quê falar do assunto, chorar sobre leite derramado, adeus, desculpa, desculpa, tens razão...
-Não vás.
-Pára! Pára e deixa-me ir embora! Não quero continuar a alimentar esta tortura. Não tenho mais nada a fazer aqui, deixa-me!
-Não, vamos falar...
-Não temos feito outra coisa durante esta semana toda. Não aguento mais, quero parar com isto, é muito massacre, tenho a cabeça em água.
-Tens razão, tens razão, vamos fazer uma trégua, entra, senta. Calma, vamos ter calma, parar de bater sempre na mesma tecla. Vamos ficar em silêncio, isso, senta-te, Vamos dar uns minutos de silêncio.
-Não sejas condescendente, detesto quando és condescendente.
- Não, pára, a sério, vamos dar uns minutos, nem que sejam uns minutos de paz. Por favor.
-Está bem, eu sento-me, tens um copo de água?, tenho a boca seca. Isto é palavras a mais.
-Sim, vou buscar, espera um bocadinho.

Ela sai assim que ele entra na cozinha.
Ele chega de copo na mão e vê a sala deserta.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Salva pelo Camilo e o Eusébio ( o Castelo Branco e o Macário, não, não é o do cinzeiro beijado...)





Quando depois de leres dois livros do Paulo Varela Gomes te sentes atingida por um certo sentimento de orfandade e não consegues abrir mais nenhum livro, mesmo que te tenham sido profundamente recomendados por pessoas da mais alta confiança, só há um remédio: Camilo Castelo Branco. E é fácil, nos dias que correm, pois eles andam a dá-los grátis com o jornal Expresso. Para felicidade minha esta semana foi a vez do "Eusébio Macário, História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais" e esse nunca tinha lido. É é tão bom, mas tão bom  que não tem explicação. Ora espreitem comigo só uma pedacinho do início ( acreditem que isto é só a ponta do iceberg pois eu já vou a meio do livro e este excerto é da página 1 e 2)




"Moscas zumbiam com as asas lampejantes em giros idiotas; gatos agachados como velhos sicários pinchavam com muitas perfídias à caça dos pássaros nas densas verduras desbotadas dos arvoredos; canos chiavam nas terras baixas, barrentas, com grandes gretas de calcinações do grande Sol; os lentos bois nostálgicos vergastavam com as caudas ásperas os moscardos que os atacavam de entre os tapumes com grandes sedes impetuosas de frescores de sangue. Havia molezas e estonteamentos abafadiços no ar cheio de sensualidades mordentes. Lavandiscas esvoaçavam nas ourelas húmidas dos regatos, muito garbosas, com pipilações joviais; besouros azuis de tons metálicos luzentes rodopiavam em volteios curtos e muito sonoros; pardais abandados infestavam as painçadas, dando pios hilariantes de bandidos canalhas; cerejas bicais vermelhavam as suas provocações sorridentes como beiços rubros de mulheres vitalizadas de lascívias aquecidas de bom sangue; pêssegos abeberados de sucos doces penejavam; varas de porcos com grunhidos regalados esfoçavam nas esterqueiras, banhando-se com grandes espalhafatos como odalíscas epiléticas de volúpias escandecidas; raparigas esguedelhadas, de narizes arrebitados, com caras fuliginosas de suor e poeira, muito escaneladas, com olhos espantadiços, de secreções amarelas, saias de estopa suja, frangalhona, a trapejar nos canelos esburgados, guardavam bácoros, e davam gritos de um timbre muito agudo que punham eco nas colinas batidas do largo sol; galinhas cacarejavam; galos de cristas escarlates e recortadas, arrastavam a asa com arremetidas parlapatonas de sultões.A Natureza estava cheia de mistérios amorosos e de uma grande espiritualização sensual."

Helen Hulick presa por usar calças

Helen Hulick foi presa em 1938 em Los Angeles por usar calças


Adoro esta foto. Adoro a repetição desta foto neste conjunto de imagens todas iguais. Ela é só uma mas ao mesmo tempo são muitas. Muitas mulheres que vieram a adoptar esta ideia e a usar calças como as dela. Aquelas calças que dantes era privilégio do outro género. Como se as mulheres não fossem dignas das mesmas opções e liberdades em termos de vestuário que os homens. E quem diz vestuário diz outras coisas, não é verdade?
Agora imagino as hordas de mulheres a serem entrevistadas, se o tivessem sido, a jurarem a sete pés que usavam saias porque queriam e jamais lhes passaria pela cabeça serem felizes doutra maneira. Pois sim, acredito. Mas à Helen Hulick passou na cabeça outra ideia. A sua ideia. E ousou. E usou calças. E agora também nós. Pelo menos em certas partes do Globo. Pois noutras, mulheres como a Helen, mulheres como nós, são acusadas de indecência por usarem calças em público. Podem ser presas, como a Helen Hulick, e mais grave ainda, serem chicoteadas. 
Que as Helen Hulick possam crescer e multiplicar-se por este desgraçado mundo a fora!

terça-feira, 23 de agosto de 2016

HOTEL E PASSOS PERDIDOS DE PAULO VARELA GOMES






















Da pilha de livros que resolvi trazer para férias, de acordo com a popular expressão "mais olhos que barriga" para quem só vem por 15 dias, resolvi pegar num dos que vinham associados a grandes expectativas: Hotel de Paulo Varela Gomes.
Se eram altas foram largamente ultrapassadas sem dificuldade nenhuma pois à terceira página fiquei rendida à obra.
Que o homem escrevia bem já eu sabia das crónicas do Ouro e Cinza e da Granta mas que nos desse uma história ( uma não, duas. E ainda me faltam dois romances) destas apenas podia ter uma leve suspeita bem fundada.
PVG não só nos oferece uma escrita elegante e admirável mas também um olhar único. Ou não fosse ele um historiador de Arte e de Arquitectura. Primeiro ele ensina-nos a olhar, depois a ver o que estamos a olhar e depois oferece-nos o que estamos a ver. E isto em relação a países, cidades, sítios, ruas, rios, edifícios, portas, janelas, monumentos, flora, enfim, dá-nos o mundo.

Em Hotel a acção centra-se quase toda no dito edifício. Uma das personagens principais é o homem que o engendra (ou não fosse ele um engenheiro), Joaquim Heliodoro (abreviando, que os apelidos são mais que muitos); a segunda é o dito Hotel. Que é uma obra rara e absolutamente fascinante. Para o descrever PVG vai usar  muitos alpendres, torreões, ameias e pináculos, vãos de arco apontado, abóbadas em leque, silhares de pedra e  de azulejo, intradorsos, frontões curvos, conversadeiras e coruchéus, cúpulas e baldoquinos, pórticos e galerias, janelas maineladas e portas manuelinas, bow windows, e outras coisas que tais, tudo na posição correcta e adequada a um edifício monumental e inesquecível.
Hotel é um hotel onde queremos passar férias, onde queremos ficar temporadas, onde queremos viver para sempre. 
E o que dizer do próprio Joaquim? Pois PVG não se fica por personagens estériotipadas e fáceis. Joaquim é tudo menos agradável à vista e ao trato. Mas torna-se uma personagem tão complexa, tão desalinhada, solitária, perdida, partida, fora deste mundo que nos irá prender do princípio ao fim. Diria até que nos consegue contagiar com o o seu vício e arrastar para ele. Seduz-nos, tal como às duas mulheres da história Manuela e Margareta, personagens secundárias, à sua maneira anti-sedutora. 


Depois de Hotel só poderia ter começado imediatamente com outro livro do mesmo autor.
Passos Perdidos faz-nos viajar. À medida que acompanhamos a história de desamor das duas personagens principais Anna W. e C. Brandon vamos conhecendo vários sítios. Primeiro Santa Helena, uma ilha no meio do Atlântico, onde foi exilado e morreu Napoleão. Fiquei a conhecer e a gostar da ilha de tal forma que posso dizer que é talvez o meu "sítio onde nunca irei" favorito.



Apesar de gostado bastante do que se "vê"( do que PVG  nos oferece a ver ) de Milão, Munique,várias cidades belgas, Bijapur, e Diu, o que me ficou na ideia foi Valleta em Malta e as seguintes linhas: "O autor é incapaz de dizer de Valleta o que a cidade merece. É muito bela, muito. É preciso ir lá. É preciso não morrer sem ter conhecido Valleta.

Claro que se trata de um profundo exagero, pois neste ponto já ele nos tinha descrito ao pormenor toda a ilha de Malta e nos tinha feito apaixonar pelo local.
Há quem considere que o romance é uma espécie de vários ensaios encadeados com a ajuda das personagens, não sei, pode ser também considerado uma obra de literatura de viagens. Sei que a história que serve de fio condutor ao passeio pelo mundo tem bastante interesse. Porque mais uma vez, PVG não escolhe figuras certinhas e aprumadas. São seres profundamente perturbados, este homem e esta mulheres que viajem juntos mas se mantém separados por uma ligação angustiante.
Chego ao fim e fico a pensar que este volume merecia um segundo de continuação, se o autor tivesse tido mais tempo. 
E não me conformo com esta interrupção na obra de Paulo Varela Gomes, na vida de Paulo Varela Gomes. Uma grande injustiça para todos.



pais e filhos

The Doubtful Guest, Edward Gorey


Os filhos têm os pais inscritos no seu ADN.  Os filhos têm, por isso, dos pais, um retrato inato. Conhecerem-se é ir reconhecendo a herança que receberam deles e o que depois vão construindo com esse legado. Os filhos vão entendendo os pais à medida que se conhecem a si mesmos. É uma dupla viagem.

Já os pais não têm dentro de si nenhuma pista do que passaram aos filhos. Tudo o que podem saber sobre os filhos vem destes e do esforço que fizerem no sentido dessa descoberta. É um retrato totalmente adquirido onde apenas podem tirar, se prestarem muita atenção, parecenças, à posteriori.
Será uma dupla viagem, totalmente facultativa.






domingo, 14 de agosto de 2016

A ignorância do xamanismo

Chamas.
Chamas.
Chamas.
Deixo-me ficar.
Ou gosto do fresco
ou prefiro ignorar.
A Sibéria é tão longe.

A memória tem mãos de médico

Hands and Eyes, Stanko Abadzic


A memória tem muitas mãos.
Umas afagam-me o cabelo,
outras tapam-me os olhos
para que não entre a luz afiada
na pele cortando caminhos
através da carne,
dilacerante.

A memória tem mãos
que tiram a febre,
auscultam a incapacidade
de voltar a repetir feridas
demasiado ferozes.

A memória tem mãos
que tapam os ouvidos
e nos deixam a salvo da voz
que anunciava
a ilha a arder,
mais não éramos
que essa ilha a arder.

Mãos que nos contagiam
com um sono acordado,
o precário sono da vida.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

dentro do cavalo

Horse Drawing - Andalusian Horse Drawing by Angel Tarantella



A mãe levou-a pela mão
ao matadouro
à procura de uma cura antiga,
sofria dos ossos.
Mandaram-na entrar.
Não queria.
Obrigaram-na. Era pequena.
Lá dentro as paredes eram carne.
O tecto era carne.
O chão era carne.
Dentro do cavalo o cheiro era sangue.
Mas aos ossos foi a solidão,
apenas, que se colou.