segunda-feira, 31 de março de 2014
Uma Carta
Há
muito que não te escrevo mas não tenho encontrado forças nem
disposição para palavras. Ainda para mais escritas. Dão trabalho e
dores de cabeça, estas putas. Custam a encontrar e mesmo depois de
caçadas parecem enguias escorregadias e remexidas. De modos que
tenho vindo a adiar. Mas como hoje nem sequer me dói as costas por
aí além resolvi dar dois dedos de prosa contigo. Sinto a tua falta.
De falar contigo. De pensar contigo. As horas que passámos
analisando a vida foram tantas que todas juntas seriam anos. E isso
ajuda muito. A suportar as maleitas que o mundo nos lança. Porque
lança e não me venham com tretas de que somos nós a pedir porque
muitas vezes tudo se passa quando dormimos. Como daquela vez em que
me levantei para ir trabalhar e o meu carro estava sem gasolina.
Gasta na farra da noite anterior pelo estroina do meu marido. E eu a
sonhar com os bailes da corte de Versalhes. O que pedia nesse momento
era alegria e colorido e jardins e cedros altos. Por isso me
consolava tanto dividir as minhas insignificantes desgraças do
dia-a-dia contigo. E também as grandes catástrofes. Os nevões, os
enterros, as manifestações de protesto político, a correria pelas
igrejas da terra à procura do Santo António para oferecer o cravo,
as malgas de tripas, as garraiadas, o Gato das Botas Altas, a música
clássica no palácio e as palestras.
Riamos de nós mesmas e tentávamos descortinar quem tínhamos sido nas vidas transactas. E o que seria de nós. Estávamos a enviar mensagens para o momento de agora. E podemos responder para lá. Divirtam-se. Aproveitem e não maldigam nem por um instante o enredo da vossa história. Porque aí tudo é forte e belo. As pedras graníticas e o brilho dos astros é vosso.
Então por cá vai tudo andando tão devagar que é como estar parado. Quando algo se mexe é para derrocar. Melhor é a imobilidade. Ter gesso nas pernas até à cintura para nem sequer nos levantarmos da cama. Mas isto sou só eu a descarregar. Tu vais bem e folgo muito em sabe-lo. A tragédia deu lugar à boa-nova. Fico muito feliz. Ao menos uma de nós tem motivos para sorrir.
Agora tenho de ir pastar o carneiro. Não pára de me mordiscar a toalha de mesa. Vou passear para uns maninhos aqui ao lado de casa.
Fica na paz dos anjos e um grande beijo da tua querida irmã que te adora.
Riamos de nós mesmas e tentávamos descortinar quem tínhamos sido nas vidas transactas. E o que seria de nós. Estávamos a enviar mensagens para o momento de agora. E podemos responder para lá. Divirtam-se. Aproveitem e não maldigam nem por um instante o enredo da vossa história. Porque aí tudo é forte e belo. As pedras graníticas e o brilho dos astros é vosso.
Então por cá vai tudo andando tão devagar que é como estar parado. Quando algo se mexe é para derrocar. Melhor é a imobilidade. Ter gesso nas pernas até à cintura para nem sequer nos levantarmos da cama. Mas isto sou só eu a descarregar. Tu vais bem e folgo muito em sabe-lo. A tragédia deu lugar à boa-nova. Fico muito feliz. Ao menos uma de nós tem motivos para sorrir.
Agora tenho de ir pastar o carneiro. Não pára de me mordiscar a toalha de mesa. Vou passear para uns maninhos aqui ao lado de casa.
Fica na paz dos anjos e um grande beijo da tua querida irmã que te adora.
DESPERDÍCIO
Redondo é o
mostrador do desperdício,
essa montra
demoníaca
de filigranas
finamente eficientes
na demonstração da
fuga.
Cada movimento
uma dissipação,
uma perda
irremediável.
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo
do desperdício
és um dos infinitos
olhos de Deus,
delirante de riso
com
os nossos ademanes
enquanto as pernas
marcham
e as penas murcham
por não sabermos
voar.
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo
do desperdício
quanto tempo terá a
minha eternidade?
(A que horas vens?)
Ó mostrador redondo
do desperdício
quanto tempo tenho
para perder?
(A que horas vens?)
Para mim,
ainda que seja tarde
será sempre cedo.
BOLO DE FARINHA DE MILHO
Era o
bolo da minha avó,
um mito,
um misto
de memória nostálgica,
tradição,
bomba
calórica
(quatrocentos
grama de açúcar).
Pede
cinco (um número invulgar de)
ovos.
A farinha
foge à regra (do trigo),
o perigo
está no lume
que
queimará em exagero
se for
alto.
A
manteiga dança em proporção
elegante
com o cereal:
cento e
vinte cinco grama de uma
com mais
uma dezena do outro.
O segredo
vai todo
para a
protecção da forma
direita e
lisa,
barrada
com margarina.
Demanda
também uma folha
de papel
vegetal que
se quer
untada
ainda
generosamente,
tarefa
que sem carinho
não
alcançará o objectivo.
Nos casos
de sucesso
é uma
delícia que se come húmida
(pelo
menos) na parte de baixo.
O CÃO
Quero ser o teu cão
contente,
correr pela casa
procurando a tua
sombra,
ambicionando a cova
do teu colchão
silente.
Quero ser o teu cão,
galgar as escadas da
entrada
sempre que te vejo à
porta
num arfar desmedido
quase rebenta a
aorta
de quem não contém
a pressa
de se engalfinhar
nas tuas
pernas
e entregar minhas
carícias
subalternas.
O teu cão
complacente,
o chão, o apoio,
o conforto, o meio
para chegar
mais alto e mais
longe
nessa doce
indignidade
de nem reparar
em quem é tão
baixo e pequeno
e com a língua te
unge.
O teu chiuaua de
circo
pateando as patinhas
da frente erguidas
num frenesim
de alegria, de
pedincha
por um pouco de
atenção
de toucinho, de
courato
de um pingo de vinho
para que me esqueça
que sou cão e sou
rato
incapaz de morder
a menos que alguém
me peça
com ternura e
carinho.
À PORTA
À
porta
estou à
porta,
opaca
impenetrável
e lá
dentro tanto cinema
ou um
pouco da tua vida.
Chega-me
uma palavra
deste
lado da porta
e uma
palavra é tão pouco,
tão
árido,
que não
chega
com
tanto cinema lá dentro
ou
apenas um momento
da tua
vida.
sábado, 29 de março de 2014
Pai e Filho
Meu pai dê-me uns vinte alqueires de pão
Ando trabucar pró ano ter cabonde
Lavro como mouro, hei-de ter bom grão
Empreste-me, venda-me, que responde?
Cuidas que te sustento a familagem?
Casaste com a fome linda, pirangão!
A minha casa não é estalagem
Tens fome vai roubar, filho dum cão.
Casei-me. O que está feito, feito está
Tenho mulher, sogra e o irmão dela
Empreste o pão, não se arrependerá
Para a sua fortuna é bagatela.
Tens vinte centos de mil réis no papo
Que gastei a fazer de ti estudante,
Larápio, bajoujo, humano farrapo!
Querias bagalhoça, que desplante!
Unhas-de-fome, judeu de uma fona
Pensa que o leva todo pró inferno?
Que lhe dê uma febre nessa mona
E vá pró purgatório sempiterno!
La donna è mobile
A mulher
é volúvel
Como a pluma ao vento;
Tão depressa é afável
Como muda seu intento.
O turco e o magiar,
O rico e o pobretanas,
O velho lobo-do-mar
Mudo ou doidivanas;
O alfaiate e o pastor,
O esquimó e o cigano,
O saloio e o doutor,
O sisudo ou magano
São de acordo na ideia:
Mulher é caprichosa,
Quer seja bonita ou feia
Amante ou boa esposa.
No entanto não é feliz
O homem mais sabedor
Que do seu seio de actriz
Não beba o doce amor.
Como a pluma ao vento;
Tão depressa é afável
Como muda seu intento.
O turco e o magiar,
O rico e o pobretanas,
O velho lobo-do-mar
Mudo ou doidivanas;
O alfaiate e o pastor,
O esquimó e o cigano,
O saloio e o doutor,
O sisudo ou magano
São de acordo na ideia:
Mulher é caprichosa,
Quer seja bonita ou feia
Amante ou boa esposa.
No entanto não é feliz
O homem mais sabedor
Que do seu seio de actriz
Não beba o doce amor.
sexta-feira, 28 de março de 2014
CARTAS
Há dias em que não
visto bem o branco, o poema não me vai bem na cintura como aquelas
saias pingonas de um lado que deixam a perna contrária à mostra.
Há dias em que o
poema sabe a cigarro estragado,a nicotina adulterada por demasiado
alcatrão.
Dias de tamanho frio
que só as cartas agasalham. Essas que me fazem acordar a meio da
noite na urgência de serem enviadas e lidas. Essas que
profissionalmente te ceifam o silêncio.
Há dias em que só
uma palavra basta.
E quando vem
dilata-se a prolongar a fome.
THE WIRE
The Wire é uma série de Tv que aborda temas sociais de forma
complexa e profunda.
Desde o mundo da criminalidade associada às drogas, a
corrupção na política, a falência do sistema de educação ao declínio da
imprensa escrita, podemos encontrar tudo isto e muito mais ao longo das cinco
temporadas.
Podíamos dizer que se trata de um retrato de uma cidade
específica dos EUA chamada Baltimore. Mas
de facto é mais do que isso. Tudo o que vemos, tirando o típico jargão
local, é universalmente humano.
A prova disso é que na última temporada quando McNulty faz espoletar a trama recordei-me de Kant,
o filósofo do séc. XVIII, e da sua famosa lei moral.
Isto porque no meio do seu elaborado sistema metafísico Kant
dedicou algum tempo a discutir sobre o valor da “mentira por propósitos
altruistas”.
No fundo é o que McNulty faz no início da 5ª parte da
história. Mente e com essa mentira
consegue desencadear um desbloqueio de meios que permite à polícia executar o
seu trabalho, concluindo, entre muitas outras coisas, uma investigação longa que
leva ao desmantelamento e prisão de uma rede de narcotráfico.
Parece que fez bem. Os bons puderam fazer o seu trabalho
honesto. Os maus vão parar à prisão. Podemos justificar a mentira inicial.
Podemos Sr. Kant?
Não, não podemos. Não é assim que o mundo funciona,
infelizmente, diz o senhor Kant.
Se o filósofo Immanuel Kant tivesse tido a sorte de ter
visionado a excelente série “ the Wire” no seu tempo teria ficado radiante.
Poderia ter dado este exemplo para apoiar a sua teoria sobre a “mentira por
motivos altruistas”. Com McNulty, Kant não teria sido gozado pelos críticos
como o foi por ter utilizado um estranho exemplo.
“Imagine que esconde um amigo inocente na sua cave. Vem um
assassino à sua procura para o matar. Pergunta
por ele. Deve mentir para o salvar?” A situação inventada por Kant era
esta e a resposta dele é “Não”. E argumenta que mentindo o assassino iria embora
continuando a sua busca e entretanto o amigo sentindo-se em perigo teria fugido
pelas traseiras e inevitavelmente eles iriam dar de caras um com o outro.
Parece estúpido e várias pessoas sérias conjecturaram que o senhor nesta altura
do campeonato estaria já com Alzeimer.
Mas, depois de bem meditarem, outras pessoas concluíram de modo
diferente. Ou seja, o que Kant descobriu (sem ver televisão nem ter saído de
uma pequena cidade da Prússia toda a vida) foi que o nosso poder sobre as
consequências das nossas acções é muito pequeno. Não controlamos nada do que
acontece. Por isso mais vale cumprir as regras. A lei moral.
McNulty não ligou muito aos estudos e até escarnecia de quem
tinha curso superior. Por isso não leu Kant. Para além disso estava numa fase
de imaturidade que lhe deu a ilusão de ser Deus.
Mas ao longo desta história vai aprender esta lição de Kant.
Ora vejamos.
A brigada dos crimes graves está prestes a descobrir, através
de escutas montadas e descodificação de códigos, uma rede de traficantes que
passara um ano inteiro a matar e a esconder corpos em casas abandonadas. De uma
assentada 23 corpos aparecem e têm de ser investigados. Quando ao fim de um ano
os profissionais que estão quase prontos a prende-los recebem ordens para parar
a investigação por conveniências políticas do presidente da câmara. Este
político havia passado a temporada anterior a fazer promessas para ser eleito
de modo a resolver os problemas da sua amada cidade e assim que chega ao poder
resolve que quer ser governador daí a dois anos. Os problemas da cidade terão
de esperar. Para atingir os seus objectivos o orçamento da polícia é desviado
para a educação (área que lhe trará mais votos). Sem recursos a polícia
paralisa.
McNulty inventa um serial Killer que mata uns sem-abrigo.
Monta uma farsa. Um jornalista sem escrúpulos e ambicioso aumenta a farsa e
depois existe um efeito bola de neve e o escândalo chega a todos os media. O
que é certo é que o dinheiro aparece e com esforço e muitas mentiras o trabalho
da polícia é retomado e os maus são todos apanhados.
Parece que ao intervalo está 1 para McNukty e 0 para Kant...
Mas... eis que quase no final do jogo o resultado sofre uma
reviravolta. As malhas do acaso vão sendo tecidas e por uma coincidência ali e
acolá o rei dos maus acaba sendo solto. Os chefes da polícia, o presidente da
câmara, a procuradora do ministério público descobrem tudo. Mcnulty e Lester
(seu cúmplice) perdem o emprego.
O grande caso de desmantelamento de droga não pode ir a
tribunal pois a escuta era ilegal.
Por outras palavras: o amigo inocente fugiu pelas traseiras e
deu de caras com o assassino! Vitória para Kant.
O dilema inicial subjacente da história era: será que os fins
justificam os meios?
O objectivo era tão justo que confesso que fiquei desde o
inicio do lado de McNulty.
O problema não é a justiça do fim. O problema é que os meios
quando ilegais (a mentira) não só não garantem o fim em si como o podem
prejudicar.
Neste caso McNulty aprendeu uma lição de Kant: não somos
Deus, nunca seremos Deus. E amadurecer é tomarmos consciência das nossas
limitações.
No final, nem todos os maus tiveram o castigo que mereciam.
Nem todos os bons acabaram bem. Mas a vida é assim mesmo. A virtude não garante
a felicidade. No entanto deve fazer-se o correcto independentemente das
consequências, sem esperar recompensas. (De outra forma, se soubéssemos que
seriamos recompensados sempre que fossemos virtuosos não seriamos simplesmente
interesseiros?) E enquanto isso procurar a felicidade. Pois uma coisa não está
directamente relacionada com a outra.
Será este o melhor dos mundos possíveis? Pode não ser, mas é
o único que temos.
E de vez enquando temos o privilégio de assistir a séries de
televisão que são maravilhosas...
quinta-feira, 27 de março de 2014
O Ridículo
O Ridículo sorri.
Antes chorasse.
Só ri.
Só, ri.
Ele sabe de quê
mas não adequa
a emoção
à sua categoria.
Não aceita a pena,
a humilhação.
O Bom Pastor
Uma
vez conheci um criador de Pastores Alemães escrupuloso. Aconteceu-me
mesmo. Ele explicou-me algo muito esclarecedor. Existem duas
linhagens de Pastores Alemães, uma de trabalho e outra de companhia.
Na primeira incluem-se cães extremamente agressivos e pouco
sociáveis que só obedecem a um líder. Na outra estão os animais
meigos e de bom carácter. Ao contrário deste senhor, que só vende
a linhagem de trabalho para a GNR e reserva a linhagem de companhia
para os civis, os outros criadores da raça misturam as duas
linhagens e vendem-nas indiscriminadamente.
Adoro
um bom Pastor Alemão, aquele cão simpático, ternurento e
inteligente que se torna meu amigo à segunda visita e que passa a
confiar em mim para a vida toda.
Por
outro lado a minha maior cicatriz foi provocada pelos caninos de um
Pastor Alemão altamente agressivo.
Esse
episódio marcante não alterou a minha simpatia incondicional pelos
Pastores Alemães. Pelos bons Pastores Alemães. Mesmo que seja uma
minoria à relação à outra a tipologia da linhagem de companhia
faz com que esta raça seja uma das minhas preferidas.
Gosto
de me lembrar desta história sempre que sou mordida por algum humano
maldoso ou quando encontro alguém com um medo excessivo de conhecer
pessoas.
MARATONA
Os pés
correm
sobre
água
sangue
aflito
2º
quilómetro
estratégia
dos
passos
visão
da meta.
Os
olhos correm
sobre
água
sangue
detonado
20º
quilómetro
cadência
dos
passos
pisar
da meta.
Os
dentes correm
sobre
água
sangue
dilatado
40º
quilómetro
memória
dos
passos
cheirar
a meta.
Os
braços correm
sobre
água
sangue
envenenado
42º
quilómetro
turbilhão
dos
passos
ranger
a meta.
quarta-feira, 26 de março de 2014
SEM ESCOLHA
Encolho.
Enrosco-me em concha.
Escondo o choro.
Despeço os olhos.
Espanto o sonho.
Falho,
foge-me o sangue
em jorro,
eu desisto,
eu morro.
Acordo.
Lanço num mar de fogo,
a metralhadora.
Desfaço a esperança
por entre zumbidos
dançando com vento.
Chove-me o sangue,
eu corro,
eu mato,
eu morro.
CONTÁGIO
Tenho o homem de costas e o revólver apontado à cabeça.
O dedo no gatilho pronto a disparar.
Há um desejo que cresce como um contágio.
Conto os segundos à espera da coragem.
Preferia poupar o homem.
Mas tenho de lhe tirar
a vida.
É o desejo que cresce.
Como um contágio.
Ele está prestes a
virar-se e a ver que uma pistola mede forças com a sua cabeça.
Poderia poupa-lo?
Terei ânimo para exercer a pequena força que move o dedo?
Começo a suar.
O meu suor está diferente.
Como uma voz que chamasse outro nome.
Queria salvá-lo.
Mas é o desejo que manda.
Como um contágio, ele quer destruir.
Dilatar-se-ão as pupilas do homem quando vir a pistola
apontada à sua testa?
De momento nem sonha que algo ameaçador conta os segundos
para o fim.
Vai virar-se a todo o instante.
E vontade derradeira não chegou ainda.
Um sopro de determinação.
O desejo grita.
Como um contágio que se espalha longamente.
Oiço o bater de um relógio a marcar uma hora certa.
Quase a conseguir premir o gatilho.
Ele a voltar-se devagar.
O dedo move-se um milímetro.
Penso em virar a pistola contra mim.
O desejo explode como um contágio.
E nada é mais irremediável que um contágio.
segunda-feira, 24 de março de 2014
A mais completa resposta
Ele respondia-lhe
com o silêncio. Não há resposta mais completa que o silêncio.
Um dia ela percebeu
que aquilo que julgara ser cuidado era afinal medo. Um medo terrível
que as palavras denunciassem uma alma menos elevada ou um carácter
menos impoluto do que se supunha. Mas pensando bem a doce ilusão só
a beneficiava a ela. Uma vez que a ele correspondia a mais perfeita
indiferença.
Assim ela descobriu
que ele era melhor do que ambos pensavam.
Longínquo habitante
Como um longínquo
habitante de um país estrangeiro falando cantonês ou mandarim
oiço-o e julgo entendê-lo. Mesmo sem capacidade de decifração o
que diz é tão semelhante ao que imagino que talvez as coincidências
sejam ainda mais tremendas e tenham afinal algum significado.
FEITIÇO
Quando o corpo cospe
um nome
com toda a saliva
inventada
o corpo já não é
nosso
muito menos o nome
que nunca o foi
fica o atavio
do feitiço
feito fome
feito viço
a cair
na nossa cara
a cada golfada
de ar.
domingo, 23 de março de 2014
Sete Palmos de Terra
Aviso: Spoiler da última temporada de “Sete Palmos de Terra”
(só eu não tinha visto mas, pelo sim pelo não, fica a nota)
Volto aqui a sublinhar que aquilo ontem no canto do meu olho
era um cisco. Que foi preciso remover, afastar, limpar. Com um lenço.
Agora o que realmente não estava à espera era de ter ficado a
ressacar com a morte do Nate Fisher.
Durante as 5 temporadas de “Sete Palmos de Terra”, foi das
personagens menos interessantes. Era apenas um rapaz vulgar. Nem bonito nem
feio. Nem muito sacana nem muito bem comportado. Nem muito esperto nem muito
idiota. Apenas um homem.
Enquanto que o resto do elenco brilhava na interpretação de
uma riquíssima fauna de espécimes raros: a excêntrica e romântica-inveterada
Ruth; o frágil doce-pecador David com o seu namorado podre de bom e cheio de
mau feitio Keith; a criativa irreverente Claire e as outras personagens
verdadeiramente irritantes: a destrambelhada
Brenda, a histérico-histriónica Lisa; o insuportavelmente desequilibrado
Billy; o secante ainda que lunático George; o infantilóide Rico mais a cabra da
mulher dele.
O Nate era despretensioso. Não ambicionava senão a viver o
melhor possível. A agarrar a vida, a efémera vida, da forma que mais (ou menos)
sentido fizesse. Só queria sair-se bem no meio da selva de personagens exóticas
que faziam parte da sua vida.
Como todos nós. O Nate era o menos especial da história. E
podia ser qualquer pessoa. Qualquer um de nós.
A cena do enterro foi forte mas bela. Um enterro despojado.
Sem artifícios. Sem caixão, sem maquilhagem. Sem mentiras nem enfeites. Apenas
o corpo morto lançado à terra. E a dor dos que ficam.
Percebendo, por fim, que o negócio da Funerária da família se baseava numa farsa, numa fuga, numa
recusa, Nate preferiu abraçar a verdade da vida: a morte. Tal como ela é. Sem liquido de embalsamar, sem paliativos, sem contemplações com os que
ainda têm medo. Por ainda estarem vivos. Nate quis um enterro sem atavios.
E foi essa a lição de Nate. Aceitemos a vida como ela é.
Aceitemos a morte.
Escrava feia
Ainda ontem servia banquetes ao meu senhor e já hoje não
passo de uma escrava feia.
Fiquei a morar com os cães. Mas em vez de dormir sonho com o
Sol da minha aldeia.
Nesse tempo a montanha era branca. Essa côr fugiu para se
esconder. Gostava de um dia arrancar os olhos ao meu Senhor para lhe espreitar
os pensamentos. Seria preciso muita força pois tem olhos de ferro. As minhas mãos,
paus fininhos. Talvez pensar seja coisa de escravo. Tal como viver é coisa de
Senhor. Nesse caso seria como espreitar para um buraco sem fim. Lançar-me-ia
nele para alcançar o outro lado do mundo.
O meu trabalho é escolher os grãos. O que não é fácil pois
são como meus irmãos. Sinto-lhes a alma. Por isso deixei de comer. Cresce-me na
barriga um mar de lágrimas. As que não posso chorar pelo meu amor.
Adeus, estrangeira
Vinha a ouvir no carro o Goodbye Stranger dos Supertramp e fui
transportada para um outro mundo através daquela máquina do tempo sem
sofisticação tecnológica que só a música tem a capacidade de proporcionar.
Às tardes remotas e frias de Vila Real onde o pináculo do dia
era uma fatia de broa de milho com manteiga e um chá escaldante no intervalo do
estudo. Ao Vómer e ao Etmoide. Que decorávamos invertidos para cumprir a troca
cristalizada do interrogador no exame.
As viagens a Lamas d’Olo com a neve impregnada de “poesia genealógica”
do Miguel Torga, com as suas fragas e giestas e socalcos. Tanto frio. A água
passava ao estado sólido nas torneiras de manhã e dormia de barrete de lã,
botas de lã e luvas de lã, só com o nariz de fora ainda assim a enregelar. E
tudo isso era encarado com uma alegria, uma admiração encantatória. Uma
puríssima fragilidade. Lembras-te? Mesmo que agora sejas uma pessoa diferente,
com uma família muito mais completa, consegues recordar esse teu outro eu, tão
vizinho, tão próximo, tão longínquo?
As carraças a invadirem-nos o alpendre como batalhão em
marcha implacável e invencível. E agora, e agora? O Jordão a sorrir-nos
caninamente, preso na corrente do seu destino, em frente à casa: desculpem,
desculpem... E nós logo ali a travar a guerra da creolina, cheios de força,
cheios de certezas e de produtos tóxicos.
The Logical Song, no concerto em Paris, num Domingo de
manhã na cama, ainda e sempre os Supertramp. Sem coragem para me
levantar e enfrentar a temperatura agreste contrariava estoicamente os lamentos
da bexiga em contracção desesperada. Tudo era límpido. Tudo era claro. O
Inverno, a roupa para lavar no tanque de água fria, o Alvão ao fundo sempre à
espreita, sempre à espera. Como um amigo seguro de braços fortes e aconchegantes.
Mesmo que cobertos com neve.
Sim, lembro-me ainda e bem, apesar de ser outra pessoa, e ter
outra família, mais completa, mais segura. Lembro-me desse meu outro eu. Tão
vizinho. Próximo, quase aderido, colado, de raízes entrelaçadas no que sou
agora. E no entanto... longe, longe, como num tempo estranho, num país
diferente, rodeada de uma outra luz.
E aquela canção a mandar-me recados a fazer profecias que
recusava ouvir ou entender.
Não queria partir, dizer adeus, seguir.
Goodbye
strange it's been nice, hope you find your paradise
Tried to see your point of view, hope your dreams will all come true
Tried to see your point of view, hope your dreams will all come true
Goodbye
Mary, goodbye Jane, will we ever meet again
Feel no sorrow, feel no shame, come tomorrow, feel no pain
Sweet devotion (Goodbye Mary), it's not for me (Goodbye Jane)
Just give me motion (Will we ever) and set me free (Meet again).
Feel no sorrow, feel no shame, come tomorrow, feel no pain
Sweet devotion (Goodbye Mary), it's not for me (Goodbye Jane)
Just give me motion (Will we ever) and set me free (Meet again).
sexta-feira, 21 de março de 2014
O PREVISÍVEL ELEFANTE
Um dos
insultos mais cerimoniosos, subtis e maldosos é apelidar alguém de
previsível. Como se a previsibilidade fosse um sinónimo de tédio
ou enfado. Como se o imprevisto não fosse na maior parte das vezes
fruto da desinformação, da ignorância ou da pura distracção.
Como se só o imprevisto fosse capaz de arrancar uma reacção de
espanto do observador.
Ora
ninguém há-de esperar que um elefante de repente enrole a tromba e
a transforme num carrapito permanente. No entanto, um apêndice
dérmico de dois metros que sai do centro da face num elefante não
deixa de me surpreender. Sempre.
quinta-feira, 20 de março de 2014
O COMBOIO DE ZHOU YU
O teu amor correu
ao encontro do poeta
no comboio furioso
o verde fugia na janela.
Ele o mestre, tu a musa
lábios rimando com a blusa,
olhos chorando sonetos,
dedos luzindo palavras
que abraçavam o corpo.
A tua língua, serpente
na sua boca, lago,
inundado de ti.
O teu amor escorreu
como tinta em porcelana,
ele não viu, Zhou Yu,
escrito nos carris
que o poeta eras tu.
CURANDEIRA
Escreve
com pinças.
A tinta é
um fio
que passa
de um
lado ao outro,
agarra e
fecha
Deixa
curar
com o
tempo.
Breve,
breve
não se
lê.
Umas
pinças são delicadas
mas
outras esmagam
e por
vezes estão sós
os dedos
que
procuram ansas
e línguas
esconsas,
poças de
sangue
sem cor
que
deixam um traço
leve,
duradouro,
letras
desenhadas
em
margens
que se
encontram
como
estranhos
que não
se rejeitam.
No fim
das pinças
as foices
na razia
do arame
afiado e
lúcido
catando,
deitando fora
a mácula
que se
inutiliza
no
mata-borrão.
terça-feira, 18 de março de 2014
AVÔ
Pá.
Braços na pá.
Pá no ar.
Pá na terra.
Terra na terra.
Braços, pá, terra.
Terra, terra, terra.
Terra, flores, paz.
O corpo enterrado.
A alma connosco.
Flores.
Paz.
SEM TEMPO
Não paro os dias.
Fico a ver os minutos correrem
esbaforidos
Impassível
cavalgo
nessa voragem.
RELÓGIO DE PÊNDULO
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Toma-tiro.
Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.
Tiiiiiiro.
domingo, 16 de março de 2014
EGON SCHIELE, O PÁSSARO PROSCRITO
Egon Schiele foi um pintor que viveu no início do século XX
em Viena.
A personagem é fascinante. A sua história de vida daria um
filme.
Egon era proveniente de uma família burguesa que vivia em Ulln,
junto ao Danúbio. O seu avô paterno era artista, arquitecto e engenheiro dos
caminhos-de-ferro. Estas características saltaram uma geração e passaram para o
neto. Cresceu a ver chegar e partir os
comboios e tendo acesso a um passe gratuito. Como filho de funcionário, viajava
com a sua irmã sempre que podia. Com dezasseis anos desenhou comboios com
exactidão técnica em quadros que transmitem o seu desejo de evasão.
A vida não era fácil para o jovem Egon. O pai sofria de
demência causada pela fase terminal da Sífilis. Os ataques de fúria eram
constantes e tinha visões que obrigavam a colocar um prato extra à mesa para
uma visita que só ele via. Morreu quando o filho tinha apenas 15 anos. O tio,
casado com a irmã do pai, passou a ser o tutor de Schiele.
Em 1906 Egon foi aceite na Academia de Viena. A mesma Academia
que uns anos mais tarde reprovou Adolf Hitler no exame de admissão.
Egon depressa se incompatibilizou com o seu tutor e com o
ultraconservador professor de pintura que irritado um dia lhe disse: “o diabo
cuspiu-o a si para a minha escola”. Deve ter sido a única frase que lhe ficou
para a posteridade. O professor Christian Griepenkerl apenas é mencionado como
professor de Egon Schiele.
Em 1907 conheceu Gustav Klimt que reconheceu o talento do
jovem com apenas dezassete anos, e o promoveu sem invejas. Seria o seu mestre e
admirado como um pai.
Em 1909 abandonou a Academia e formou com alguns colegas o “Grupo
para a Nova Arte”.
Apesar de ter origens tão burguesas quanto os seus colegas e
mestre, Egon havia se rebelado
contra esse mundo. Passava por isso
dificuldades. A roupa que usava era larga demais, o chapéu tinha de ser forrado
por dentro com jornais para lhe assentar na cabeça e os sapatos eram tão grandes
que só conseguia andar arrastando os pés. A sua natureza permanecia apaixonada
e inabalável. Acreditava em si. Narcisista, estudava o seu corpo em frente a um
grande espelho e pintou mais de cem auto-retratos. Descobria o seu corpo. Explorava o seu
prazer. Tal como Freud, algures na mesma cidade, ao mesmo tempo, Egon dedicava-se
ao estudo do sexo. Depressa se demarcou do estilo de superficíe ornamental de
Klint para um estilo mais expressivo.
Em simultâneo, Egon descobria e desbravava o corpo feminino.
Começou por pintar meninas das classes baixas, por serem modelos mais baratos.
E também mandava fazer bonecas de pano a costureiras o que ainda lhe custaria
menos dinheiro. Era o corpo que lhe interessava. Visto de cima. Como se fosse
um pássaro. Uma ave de rapina que se apodera da sua presa. Era assim que queria
observar tudo. Até as cidades que pintava. Subia às colinas e obtinha a sua
visão lá do alto. No seu quarto usava um escadote.
Egon aderiu ao Expressionismo. São expressionistas os vários
movimentos de vanguarda no fim do sec. XIX e início do séc. XX que estavam
interessados na interiorização da criação artística em detrimento da sua exteriorização,
projectando na obra de arte uma reflexão individual sempre subjectiva. O
Expressionismo contrapõe-se assim ao Realismo.
Pintava as mulheres-meninas nuas como ele as via. Realçava a
vulva e as mãos que eram sempre demasiado grandes e ossudas. Procurou temas
considerados inapropriados e pornográficos para a época, como a masturbação
feminina e masculina, a homossexualidade feminina, o sexo entre membros do
clero, a anatomia feminina explicita. Recusou a censura.
Foi preso, claro está. Acusado de ter sequestrado uma menor
que lhe servira de modelo. Vivia em concubinato com uma mulher de dezassete
anos que lhe era profundamente devotada: Wally. Egon e Wally tiveram a ingénua
ideia de se mudarem para uma pequena aldeola onde recebiam em sua casa lolitas
que serviam de modelos ao pintor. Foi um escândalo. Acabaram expulsos.
Durante o julgamento ficou provado que a acusação de
sequestro era falsa mas durante as buscas a sua casa foram encontrados desenhos
considerados obscenos. Durante a leitura da sentença o juiz queimou uma tela de
Egon. O pássaro foi para a gaiola. Quinze dias de pena. Aproveitados para
pintar e escrever poemas. “Aprisionar o artista é cometer um crime, significa
matar a vida no ovo!”
Em 1915 dá-se uma reviravolta na sua vida: casa-se. Mas não
com Wally que considerou inferior à sua classe social. Talvez por cansaço de tanta
privação, talvez por um apelo às origens burguesas ou mero calculismo procura
uma rapariga de boas famílias: Edith.
Tentou no entanto fazer um acordo (sob a forma de contrato
escrito!) com Wally: fazer com ela uma viagem por ano, como amantes. O pássaro
não queria largar a sua presa. Wally recusou e morreu poucos anos depois.
Edith tinha uma irmã, Adele, que também serviu de modelo e de
amante. Tudo sem a esposa ciumenta saber.
Com este casamento proveitoso Egon entrou na sua fase mais
serena e chegou a ter um quadro num museu estatal, o Moderne Galerie: Retrato da Mulher do Artista, Sentada.
A morte chegou cedo, aos vinte e oito anos, por culpa de um
vírus. A gripe espanhola matou em todo o mundo vinte milhões de pessoas. Foi
uma pandemia que atingiu até as regiões do Árctico. Esta doença foi o resultado
de uma mutação de extrema virulência do vírus influenza, o da simples gripe. Foi a imprensa espanhola que por ter
sido a que mais importância deu ao assunto que acabou por baptizar a praga
mundial.
Edith foi a primeira a morrer, grávida de seis meses,
subitamente e em sofrimento atroz. Egon teve três dias para a chorar e pintar
já cadáver. A sua morte foi também fulminante. O pássaro morreu de gripe.
sábado, 15 de março de 2014
Esperar
Quero
esperar por ti
rocha
no meio do rio
sorrindo
à
erosão dos anos
no
lodo verde
freira
ajoelhada
carpindo
um rosário
em
curto-circuito
alimentando
o corpo
com
um amor sem retorno
paciente
e terno
como
um fóssil incrustado
num
mármore,
conservado
desde
o início dos dias
como
uma migalha de pão
esquecida
na tua camisola
saboreando
o teu suor
lavando
a memória
com
sabão de sangue
propagando-se
no vazio
entre
os planetas
até
às muralhas imaginárias
Quero
esperar por ti
como
um flamingo cor-de-rosa
apoiado
ora
numa perna
ora
noutra
descansando
o
corpo estátua
congelado
no
espaço-tempo
como
um monge tibetano
treinando
Yoga
pernas
entrelaçadas
por
cima do pescoço
levitando
a alma
acima
da cabeça
num
reino
de
brancos fantasmas
despedidos
do mundo,
Quero
esperar por ti
simplesmente,
por
teimosia,
sentar-me
separada
da vida,
cruzando os braços
entrelaçando
as lágrimas
e
esperar
sexta-feira, 14 de março de 2014
ASSALTO
Um milagre ou a vida!
A esperança apontada à cabeça,
eu congelada
revolvendo a cartola
procurando uma voz,
uma fórmula, um coelho,
a pomba branca, as purpurinas.
O tempo a contar
a vida escoando pelos joelhos,
um milagre ou a vida!
Os dedos espremendo migalhas
esquecidas nos bolsos do fraque,
indagando receitas, perfumes,
artes, diabruras, pactos ocultos,
a Lua a nascer
e a vida cada vez mais viscosa,
descendo pelas pernas.
Um milagre ou a vida!
A esperança detonando na cabeça
e de repente, num segundo,
aqui estavas tu.
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