Ainda lhe oferecera um sorriso antes de sair e bater com a
porta. Tentava agora decifrar esse movimento de lábios. Demasiado rasgado?
Trémulo? Do que tinha certeza era das mãos ansiosas na véspera, antes de subir
para se deitar quando viera despedir-se dela à cozinha enquanto acabava de
retirar os bolos do forno. Reparara-lhe no afagar das mãos, uma contra a outra
em movimentos circulares como se tentasse matar um frio que teimava em atacar
os ossos. Falava num tom suave. Demasiado doce? Naquele momento não pensara
nisso. Apenas recebia a voz como tudo o que vinha dele. Com assombro. Por isso
por mais que tentasse descortinar um pormenor, um prenúncio do que estaria para
vir, era em vão. Nada do que acontecia antes se podia relacionar sequer de
relance com o que se passaria depois. Como se houvesse um degrau no tempo a
separar o passado do presente, o antes e o depois. Como se as duas realidades
estivessem desalinhadas no espaço, presas em dois compartimentos contíguos mas
independentes.
Quando subiu ao seu encontro, ele ainda era o mesmo de
sempre. O mesmo que havia conhecido aos dezassete anos no liceu. Apenas disse
que precisava de ir ao café. Os motivos eram fúteis mas verosímeis, ela nada
havia contraposto.
Dormia um sono suave quando ele retornou ao quarto e penetrou
no leito tentando continuar a viagem por ela fora. Foi com surpresa e depois
com espanto e logo de seguida com terror que verificou que ele já não era ele.
Quem seria esse outro tão pleno de violência e de esquecimento de si e dos
dois? Atacando-a sem remorsos nem piedade. Sem motivos. Tentou a defesa mas as
perguntas não lhe deram descanso ao espírito para investir em estratégias
corporais que lhe permitissem um alívio, uma hipótese de alcançar a fuga. E
sucumbiu com horror à investida, desistindo de retaliar, tentando apenas
encolher-se o mais possível, tentando escapar para dentro de si mesma.
Não tinha ideia do final. Apenas se lembrava de sentir que
estaria há horas deitada no chão. Em silêncio. Recordou o sorriso que lhe
enviara ao bater com a porta antes de ter saído para o café e ela ter
adormecido sem suspeitas ou ansiedades.
Sabia que o momento em que a sua vida tinha deixado de ser o
que era para passar a ser o estava sendo seria o instante desse levantar de
beiços ao sair pela porta do quarto. No aferrolhar da porta terminara uma
sucessão de acontecimentos e após o intervalo do café viria iniciar-se outra,
que a esta seria totalmente estranha.
Ela não testemunhara esse começo de segunda parte, esse
reabrir da mesma porta para uma nova realidade, pois dormia e visitava os sonhos
da rotina regenerativa normal de uma vida comum. Um sono ligeiro. E logo a vigília
a impor-se pelo repouso adentro, rasgando imaginações, utopias e devaneios
reconfortantes. Para lhe mostrar que vida era afinal mais delirante que o mais
desconcertante pesadelo. Quando se deu conta já estava acordada nesse outro cenário,
nesse novo plano de existência que afinal sempre ali morara ao lado, invisível
e mudo.
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