Meu querido diário, escrevo hoje, segunda-feira, as
peripécias do meu fim-de-semana fora do comum. Ao contrário do habitual não
permaneci na serenidade do meu lar e rumei ao Ribatejo, a casa da minha
tia-avó. Mal cheguei à casa onde tantas vezes brinquei em criança, dirigi-me ao
quintal. O desejo de varrer apoderou-se do meu corpo ou da minha alma e foi com
real júbilo que expurguei do chão umas centenas de pequenas bolas que o
poluíam. Enquanto desempenhava a relaxante tarefa interroguei-me sobre a origem
de semelhante praga. O que seria aquilo? Caganitas de cabra? Não era. Alcagoitas pretas? Impossível. Uvas? Nem por
sombras. Eram bagas, mas de quê?
Olhei então para cima e vi o que bem à minha frente não
conseguira enxergar: um gigantesco loureiro carregado de folhas e frutos pretos
e redondos. Eram essas bolinhas pretas que estavam semeadas pelo cimento. O
Loureiro é uma árvore que dá folhas chamadas de louro, utilizadas em quase
todas as formas de temperar as carnes que se cozinham. Mas o seu fruto é preto.
Não admira que o mundo ande todo de pernas para o ar. Este foi o momento
filosófico da minha curta viagem.
Seguiu-se o almoço. Um repasto que mais parecia um banquete
de festa. Éramos vinte à mesa e não me contive a quebrar a restrição de
hidratos de carbono que faço para manter a saúde. Comi além da carne de porco,
das salsichas e da salada de tomate, arroz de ervilhas! Bebi cerveja pois o
vinho era demasiado agreste para o meu paladar pouco habituado aos sabores de
Baco. No fim arrotei três vezes. E passada uma meia hora após o inicio da
digestão tive um refluxo esofágico que me provocou um ligeiro amargo de boca.
Coisa passageira que abreviei com uma simples Reni. Dediquei o resto da tarde
aos lavoures na companhia das senhoras da casa. Todas juntas, com as nossas
revistas da especialidade trocámos ideias e discutimos pormenores
técnicos. Como sou pessoa muito
prevenida e avisada estou a iniciar a elaboração dos meus presentes de Natal.
Faço com as minhas próprias mãos trabalhos muito criativos que fazem as
delícias dos meus amigos e familiares.
Este ano vários temas me despertaram a atenção: Um Natal
Bávaro: quadro de ponto cruz em quadrilé baseado em símbolos e tradições
milenares da região da Bavária, em tons de vermelho e graná, delineado a ponto de alinhavo preto.
Atraiu-me nesta obra as semelhanças com os desenhos de filigrana no nosso
Minho. Embora um tanto monótono em cor, a riqueza e complexidade das formas
tornavam-no um desafio impressionante.
Os Gnomos Nórdicos: associados às lendas da época natalícia
aparecem num quadro divertido e jovial de pequenas figurinhas sorridentes nas
mais variadas posições. Também em ponto cruz, um ponto nobre, que exige um
avesso tão perfeito quanto o lado principal, quando se domina a arte e a
técnica que esta implica. Apesar de empregar o verde, o cinzento e o amarelo
para além do obrigatório vermelho ainda considerei um tanto desenxabido para a
minha apetência por desenhos ricamente coloridos.
Até que.... me deparei com uma obra magnífica: uma toalha de
mesa com peixes de muitas formas e
cores. Um aquário autêntico, com figuras bordadas com vários pontos e
distribuídos de forma aleatória. Uma explosão de criatividade numa peça única.
Os pontos não eram todos simples. Desde o ponto de nó, ponto de pesponto, ponto
cheio, ponto linear, ponto pé de flor, ponto crivo, nó francês... enfim um
verdadeiro desafio para uma mão de fada. O tema não seria muito apropriado mas no
entanto revelava audácia. E seria apreciada por isso. Definitivamente era este
o mote. Podia fazer toalhas de diversos tamanhos conforme a proximidade dos
laços de afinidade com os presenteados. Para os mais afastados podia oferecer
apenas um lencinho com um ou dois peixinhos. Uma delicia, certamente iriam pensar.
Toda satisfeita sentei-me no meu lugar à mesa do jantar.
Empanturrei-me de tal forma em frango assado e puré de batata que antes da
sobremesa arrotei cinco vezes. Mas não pude resistir ao bolo Rei das Beiras com
recheio de doce de chila. Nunca nas Beiras degustei tal iguaria. Penso que
aquela receita deve ser produto da imaginação fértil de alguma ribatejana sobre
os doces que se farão em locais por ela nunca visitados. Bem-haja.
Cheguei a casa e dei dois peidinhos.