Ó doutora, eu hoje trago aqui uma gata, coitadita. Vamos lá
ver o que isto vai dar. E depois não é só isso. Precisava de lhe contar daquela
cadela. A senhora que toma conta dela, é surda-muda, coitada, é claro que a
doutora não tem culpa nenhuma. Também é uma vítima. Mas eu e a minha esposa
também temos ajudado tanto, nem imagina. Contentores e contentores de lixo,
tirámos nós do quintal. É claro que os vizinhos se queixam e nós, teve de ser
que aquilo é uma miséria. O marido, duzentos contos de pensão e gasta tudo nos
copos. A cadela tem uma ferida. Agora a doutora veja lá se pode fazer, o que é
que posso eu fazer? A minha esposa limpou aquilo com água oxigenada e posso pôr
alguma coisa? Deita sangue. Não, não é nas mamas. Eu também já tive uma cadela
assim com tumores nas mamas, mas não. Não é. É assim aqui de lado, está a ver, doutora?. Deita sangue e ela é surda-muda, uma desgraça. Dois contentores de
lixo, mas teve de ser. O homem é bêbado, gasta tudo. Eu farto-me de ajudar.
Já não consigo mais. Tenho os outros lá no estaleiro, está a ver onde é, doutora? Ali naquele terreno ao pé do
cemitério como quem vem de... Mas olhe eu tenho de vender umas propriedades
que tenho lá para a Lousã. A minha mãezinha morreu há uns meses, como a senhora
sabe, e eu ainda sofro. O meu irmão rendeu-se à gula. Aquilo só visto. Olhe
doutora está a ver-me? Eu tenho 160 quilos mas ao pé do meu irmão sou magro.
Acredite que é verdade. Aquilo é só casinos. A culpa é da mulher que não ajuda
nada. Uma galega que não trouxe mais nada senão a rata entre as pernas. Fuma
três maços de tabaco por dia. A minha esposa até tem de lhe emprestar dinheiro
para o tabaco. Mas ele vai primeiro que ela, 58 anos. Entregou-se à gula. Não
quer ser operado. Nem já com banda gástrica. Aquilo só cortando um bocado
valente do estômago. Não quer! É só casinos, de maneira que vamos vender os
terrenos lá na Lousã, está a ver onde é entre aquela zona...a minha mãe morreu
para lá num lar. Malandros! Mas como eu ia a dizer, acha que ponha uma pomada
que lá tenho? Um dia tinha aqui uma ferida debaixo do braço e aquilo é bom. A
ferida sangra. Posso pôr? Agora a gata que vem aqui é que já devíamos ter vindo
mas não consigo por causa do estaleiro. Faz-se de noite e depois não me dá
tempo. Tem quinze anos e não come. Mas ainda salta. Está um carapau seco? Pois
doutora, tem razão! Mas não conseguimos. A minha esposa coitada farta-se de
ajudar. Dois contentores de lixo. É surda–muda e agora arranjou uma cadela
assim pequena, tipo caniche, quanto é que me faz para a esterilizar. Os
vizinhos já se queixam. Gosto de ajudar mas eu também não posso. Vou vender um
prédio que tenho. O meu sobrinho, fui lá e tinha aquilo alugado a dezenas. Eram
às dezenas de brasileiros e ucranianos. Fizeram tarimbas. Tarimbas para dormir
e ele a receber. Eu a dizer-lhe, mas não tens vergonha, até podes ter aqui
ladrões. Não quer saber. Vou vender aquilo tudo.
Veja lá o mínimo que me pode fazer que eu ajudo mas também
não posso mais. É uma tragédia, a surda-muda. Então a pomada serve? A gata já
não é nova mas gostamos dela. Tem de pôr a soro? Ponha, ponha! Eu venho cá
buscá-la. Antes que se faça noite que aquilo ali na minha zona é uma miséria.
Não se pode andar na rua. Fui assaltado, levaram-me um fio de ouro, encostaram-me
uma faca à barriga, uma pessoa tem medo. Isto está uma desgraça. A culpa é
desse bochechas que mandou para cá esses pretos todos. Agora queremos andar na
rua e sou assaltado à porta de casa. O meu irmão ainda andou com ele nos
comícios. Quando era novo. Agora entregou-se à gula. Só quer é comer e casinos.
Nem cabe no carro. Fica todo encolhido mas lá vai. Nem sei como se consegue
espremer lá dentro. A galega foi a perdição dele, aquela espanhola. Enfim, a
doutora também é uma vítima. Somos todos. Queremos ajudar mas isto é uma cambada
de malandros e de chulos. Eu já cá volto. Venho buscar a gata. Está uma carapau
seco mas não consegui vir antes. Pois. Até mais logo. É uma desgraça.