GRANDE SERTÃO: VEREDAS (Spoiler alert)
Riobaldo: viver é muito perigoso.
Diadorim: carece de ter muita coragem.
Este pequeno diálogo entre os protagonistas, que se repete ao
longo do livro,é o núcleo duro da história, representa a relação entre os dois
protagonistas, em redor do qual tudo vai girar.
É logo no início que nos é revelado o grande amor de Riobaldo
pelo jagunço Diadorim. A par das descrições maravilhosas das belezas naturais
da região, o velho Riobaldo (o narrador) vê-se a si mesmo deixando-se levar por
um sentimento de grande delicadeza e ao mesmo tempo de uma força incomum, que
nos toca profundamente.
Pensei, com perplexidade, que o livro era uma espécie de
Brokeback Mountain brasileiro passado no Sec. XIX. Mas não.
Esta não é uma história de amor gay, não no sentido clássico
do termo. Embora haja um homem que ama outro homem. Um homem de orientação
heterossexual que se apaixona por um homem, que afinal era uma mulher. Mas ele
só descobre a mulher depois da morte desta. O amor por Diadorim é sempre o amor
por um homem.
Este não é um romance sobre o Género. Esta é uma história
sobre Identidade.
Uma história sobre o Amor. E como o Amor, essa força
avassaladora, pode ameaçar a construção frágil que é a Identidade de uma
pessoa.
Até metade do livro
nunca desconfiei, nem por um instante, que o Diadorim não fosse homem. Achei
esta luta interior do Riobaldo uma coisa extraordinária, que dilema, que drama,
que guerra consigo próprio, que maravilha de revolução pessoal íntima! E quanto
a mim, a história não precisava da revelação final, fazia sentido igual manter
Diadorim homem. Mas percebo que fosse muito ousado para os anos 50. Ainda
assim, fico curiosa sobre a reacção do público na altura. Abandonavam o livro a
partir das primeiras dezenas de páginas ou adivinhavam logo o enredo final,
sendo que dois homens amarem-se seria mais bizarro que ficção científica, entendiam
logo que se tratava de uma mulher transvestida?
Tive então a triste ideia de ir espreitar ao Youtube a série
da TV Globo, de 1985, haviam-me dito que era muito boa. Eu só queria ver um
pouco do início, para ver o ambiente da coisa. Não passei do elenco:
protagonistas: Tony Ramos e... Bruna Lombardi, ó merda, é uma mulher! E pronto,
vi logo tudo, caldo entornado.
Claro que me choca muito o facto da história ficar toda
deturpada na mini série (e no filme de 1965 é igual, é uma tal de Maria Clara a
fazer de Diadorim). Já não é uma linda história de amor entre dois jagunços
como é no livro. A homofobia é uma desmancha prazeres, em sentido lato.
Mas lá consegui continuar a ler o verdadeiro enredo do amor
maior entre dois seres do mesmo sexo, do ponto de vista do Riobaldo. Diadorim
sabia a verdade.
Comecei então a pensar que esta seria o argumento ideal para
um realizador de cinema (e escritor, ele é escritor também, desde 2014, que boa
notícia) chamado David Cronenberg, um tipo que tem como um dos pilares básicos
da sua temática cinematográfica a Identidade.
Diz o Cronenberg numa entrevista que se pode encontrar no
YouTube (Cronenberg on Cronenberg) : “Somos criadores na nossa própria
identidade, embora se possa crer que é algo que nos foi dado, temos de nos reconstruir todos os dias.”
E diz Riobaldo, a páginas tantas:
“ O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade
maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”
e ainda:
“Para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta
se olhar um minutinho no espelho-caprichando de fazer cara de valentia; ou cara
de ruindade!”
Riobaldo ao longo da história vai fazendo muitas perguntas ao
viajante que o escuta. Mas existe uma pergunta oculta por trás de todas as
questões: Quem sou eu?
O velho Riobaldo está também a reconstruir-se à medida que
conta a sua história, está a descobrir-se, a reconhecer-se nos vários Riobaldos
que vão surgindo com o passar dos tempos: o menino Riobaldo que passa o rio São
Francisco, cheio de medo, com o menino Diadorim, o Riobaldo secretário e
professor de Zé Bebelo, Riobaldo Tatarana, Riobaldo chefe dos jagunços,
Riobaldo o mulherengo, Riobaldo o apaixonado por outro jagunço, Riobaldo o que
tentou vender a alma.
Há uma parte em que Riobaldo é chefe, e está aprender a agir
como chefe e o bando encontra um homem a cavalo numa égua com uma cachorra ao
lado. E ele diz que vai matar o homem e nós damo-nos conta de que o velho
Riobaldo está a relatar o que acontece ao Riobaldo que se observa a dar aquelas
ordens aos seus homens, sem saber bem se consegue manter a sua própria palavra.
Ora diz que é para matar o homem mas não consegue, ora diz que é para matar a
cachorra mas também não pode e ainda tenta matar a égua e nem isso. Ele procura
a sua própria alma através das suas acções, auscultando o seu coração para ver
se realmente o Diabo já o fez refém ou se ele ainda é apenas o mesmo Riobaldo
de sempre (e quem será esse?). Há aqui o velho Riobaldo que observa o chefe
Riobaldo que se observa a si mesmo como uma pessoa separada da sua identidade.
Uma Matrioska de Riobaldos.
(engraçado que na referida entrevista Cronenberg menciona
Samuel Beckett como um autor que usa muito as personagens separadas na sua
própria identidade)
Esta ideia do ser em construção também podemos ouvir em
“Pano-cru” do Sérgio Godinho:
Ouve, meu amigo
põe a máquina a gravar
queria só explicar aqui
que eu sou como o pano-cru
como pano-cru
eu ainda estou por acabar
e como o linho vem da terra
assim viemos eu e tu
e como tu eu faço e amo
e luto e dou
e como tu eu estou
entre aquilo que já fiz
e aquilo que eu fizer
eu sou de pano-cru
Quem sou eu? pergunta Riobaldo. Sou destemido, sou bom, sou
do Diabo, sou capaz de comandar, sou capaz de matar, de ser jagunço, sou do
Joca Ramiro ou sou de Zé Bebelo?
“Que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traição
minha, fôsse no que fôsse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não
é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa.”
Viver é muito perigoso. Uma Travessia. Muitas. Viver é a
travessia. E é para essa derradeira, a maior de todas, que vai ser preciso a
tal coragem, a coragem que Diadorim há-de sempre dar a Riobaldo. Começando no
rio São Francisco e perdurando pelo Sertão a fora. Podemos dizer que a história
acaba em tragédia. Mas o velho Riobaldo a certo ponto diz ao viajante: “ Ao
portanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já
disse. Homem com homem, de mãos dadas,
só se a valentia dêles fôr enorme. Aparecia que nós dois já estávamos
cavalhando lado a lado, par a par, na vai-a-vida inteira. Que; coragem- é o que
o coração bate; se não , bate falso. Travessia - do sertão- a tôda travessia.”
Foi um amor vivido a meio termo, mas foi vivido. Apenas não
foi consumado a nível físico. Havia coragem no coração mas não havia
atrevimento suficiente para quebrar todas as regras do Sertão. Era uma
desconstrução que ameaçava a própria identidade dos envolvidos.
E Diadorim? Não podia ela ter aberto o jogo? Riobaldo também
diz ao viajante que ela lhe tinha negado
a verdade, culpando-a pela manutenção da impossibilidade falsa de serem
dois amantes livres e plenos.
Mas também aqui é uma questão de identidade. Diadorim era
jagunço. Não sabia o que era ser mulher. Pelas conversas que ouvia aos outros
ela só sabia que “mulher é gente tão infeliz”. Revelar o segredo seria morrer
antes de ressuscitar, mas ressuscitar numa forma alienígena. Diadorim
desaparecia para sempre. Estávamos em 1890, não havia jagunças, só jagunços.
Esta não é uma história de igualdade de género. É uma história sobre identidade
e Diadorim era um homem aos olhos de todos. Aos seus próprios olhos. E haveria
de morrer homem.
Que força estranha é essa, avassaladora, que faz ameaçar a
identidade de uma pessoa, chamada Amor?
Dizem que surgiu como uma pulsão adaptativa/evolutiva, um
factor que permite que duas pessoas se mantenham juntas para criar a descendência
e preservar a espécie. Talvez tenha sido assim no início mas depois há-de ter
ganho vida própria e seguido outras vias, é como um fogo fora de controlo,
solto no mundo. Se não, vejamos, por exemplo: que vantagem adaptativa tem o
amor por pessoas já falecidas? E o amor entre pessoas do mesmo sexo? O amor é
tão inconveniente quanto murro em nariz quebrado. É impiedoso como um
terrorista funesto. E não dá tréguas.
Riobaldo bem sabe disso: “Se é que é- eu pensei-estou meio
perdido.”
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