No passado Domingo foram as eleições presidenciais no Brasil.
Cheguei a casa no final da tarde a tempo de ouvir as primeiras projeções de
resultados.
Nunca umas eleições no Brasil tinham mexido assim comigo.
Embora a vitória do Trump tivesse sido um evento de certa forma traumatizante à
escala mundial, desde os tempos do primeiro mandato do Mário Soares que não me
envolvia com tanto vigor (ainda que a nível virtual) numa campanha política. E
desta vez nem sequer foi no meu próprio país.
Achei por bem descontrair antes do doloroso momento da confirmação
do que haviam apregoado as múltiplas sondagens: a vitória do candidato de
extrema Direita.
Escolhi um filme.
Ainda dava tempo. A Roda Gigante, de Woody Allen. Em princípio desviaria a
minha atenção para outros temas. Em
princípio desviou. Mas no fundo, no fundo, a conclusão veio bater na mesma
tecla: a explicação de uma escolha que o ser humano faz. O que leva uma pessoa
a agir, a escolher uma acção, cujas consequências são agudas, dramáticas, irreversíveis
e moralmente questionáveis?
A Roda Gigante (Wonder Wheel), dizem que será o último filme do realizador. É um
clássico, e ficará como um dos melhores da sua carreira. Absolutamente perfeito,
em termos visuais, tem ainda uma interpretação fenomenal dessa grande actriz
chamada Kate Winslet dando aqui corpo a uma personagem trágica que não ficará,
em carisma e intensidade, atrás da Blanche DuBois de “Um Eléctrico Chamado
Desejo”.
Ginny é uma mulher à beira dos 40 anos, na década de 50 do
século passado. Ataque de nervos é pouco para explicar como se sente, o quanto
lhe pesa o dia-a-dia, sempre que se arrasta para o emprego na marisqueira onde
atende às mesas. O segundo casamento com um alcoólico em recuperação entrou na
rotina desinteressante e enferrujada dos matrimónios meramente convencionais.
O cenário é Coney Island, Brooklyn, Nova York: a praia, os carroceis e diversões de feira. A
vida é recreio para o povo e uma pasmaceira infernal para Ginny, que já fora
uma actriz jovem e cheia de potencial. E por um erro trágico da sua parte
perdeu a carreira e quase tudo. Ficou com um filho pequeno e acabou por dar à
costa num casamento cujo o único sentido é o desespero de causa, a
sobrevivência. Ela sente que aquela empregada de mesa que vê no espelho é o
derradeiro papel, no grande palco da vida, que lhe coube em rifa. Não é
verdadeiramente a sua pessoa. Há um corte com a sua identidade.
Até que conhece um nadador-salvador. Ironia do destino e
ironia do trocadilho. Tornam-se amantes e ela pensa que ele a irá resgatar a
uma existência sem significado. Que a levará para um destino paradisíaco e a transformar
novamente na mulher deslumbrante que fora em tempos, e que no fundo, ainda
continua a ser.
Mas Mickey também não era um nadador-salvador no verdadeiro
sentido do termo, nem no metafórico. Ele era um potencial escritor (personagem
que faz lembrar todos as outras interpretadas por Woody Allen, que são sempre o
próprio) e como tal interessava-se mais pelas histórias das pessoas do que
pelas pessoas em si mesmas. A História trágica de Ginny fascinou-o mais do que
a própria mulher. Que, entretanto, se foi tornando mais irascível, instável e
insegura do que ele estava disposto a suportar.
Tudo isto se agrava com a chegada da filha do marido de Ginny,
que vai despertar a paixão de Micky e o ciúme inflamado desta.
Carolina tinha uma história excitante para contar: andava a
fugir da Máfia pois casara com um gangster. Claro que Micky ficou imediatamente
hipnotizado pela narrativa.
Carolina gosta da madrasta e confidencia-lhe tudo o que vai
acontecendo entre ela e Micky.
Por isso Ginny sabe que os dois estão a jantar na pizaria
quando os mafiosos chegam para matar a rapariga. E logo aflita corre a
telefonar para o restaurante a avisar do perigo que corre. Mas enquanto fala
com o empregado fica congelada, bloqueia completamente. E nós vemos aquele
olhar fixo, parado, ausente que significa uma mudança crucial. Ginny deixar de
pensar, deixa de distinguir o Bem do Mal, do que é certo do que é errado, a
lógica, o pensamento racional detém-se naquele ponto, trava e congela.
Há um momento de suspensão a partir do qual a emoção toma
conta dela. a paixão avassaladora e o ciúme ardente imobilizam-na, impedindo-a
de salvar Carolina. A acção passa a reacção comandada puramente pela emoção.
Desliga o telefone. Vai-se embora. Carolina nunca mais
aparece. Micky descobre tudo e passa a ver Ginny como uma assassina. O amor
acaba. Ela perde tudo e volta ao seu papel de empregada de mesa, agora colado à
sua pele como que por argamassa.
Este momento final, o clímax do filme fez-me lembrar um
outro, chamado 7 Pecados Mortais do David Fincher que toda a gente há-de
recordar.
Às tantas o assassino está diante do Brad Pitt e chega um
carro com um caixa que lhe é deixada aos pés. O polícia abre a caixa e vê a
cabeça da sua mulher. O sétimo pecado é a Ira e Kevin Spacey conta com essa
emoção para levar o homem a cometer o crime.
A Ira é uma emoção,
uma das mais forte. Brad Pitt luta contra si mesmo, tenta controlar-se. Morgan
Freeman, o Polícia mais velho tenta chamá-lo à razão: não deve ceder ao plano
do assassino. O melhor é não fazer o que ele quer, o maior castigo será não o
matar. Ele hesita, ele está a tentar recuperar o controle, mas a emoção é mais
forte, a Ira ganha e ele mata o criminoso.
Podemos entender melhor esta personagem porque a “vítima” é
um ser execrável, um monstro desumano, um ser horripilante. Depois haverá outra
vítima, o próprio polícia que passa para o outro lado da barricada,
desaparecendo a identidade que vestia até ao momento.
Mas há uma semelhança
entre as duas histórias: no fim existe uma dissociação entre a razão e a
emoção, uma luta entre estes dois polos da personalidade das pessoas em que uma
se torna mais forte e toma as rédeas da acção dando origem a um erro. A emoção
não consegue escolher entre o Bem e o Mal, ela não escolhe, não é capaz, apenas
reage em função do humor do momento, sem ter em conta as consequências. A
emoção é apenas o agora sem o depois. É o sabor do preciso instante. Num
instante apenas se pode destruir, para a construção é sempre preciso mais
tempo.
Uma acção baseada na emoção pura pode ter um grande poder de
destruição.
Assim como o voto.
Assim se viu no Domingo passado, no Brasil. Seja pela ira dos que estavam
fartos do PT quer por paixão a Deus dos Evangélicos, a diferença entre o Bem e
o Mal foi totalmente aniquilada, a Moral descartada, a lógica suspensa. Nada do
que foi dito pelo candidato vencedor teve qualquer efeito na decisão dos
votantes pois eles não estavam decidindo com a razão mas apenas reagindo com
emoção aos acontecimentos. Para estes o seu acto extinguiu-se no próprio
momento do voto e não terá consequências.
Mas elas virão. Para outros, para eles próprios, para todos. E para
alguns, mais cedo que tarde.
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