quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A RODA GIGANTE (Com Spoilers, Brasil e Brad Pitt)








No passado Domingo foram as eleições presidenciais no Brasil. Cheguei a casa no final da tarde a tempo de ouvir as primeiras projeções de resultados.
Nunca umas eleições no Brasil tinham mexido assim comigo. Embora a vitória do Trump tivesse sido um evento de certa forma traumatizante à escala mundial, desde os tempos do primeiro mandato do Mário Soares que não me envolvia com tanto vigor (ainda que a nível virtual) numa campanha política. E desta vez nem sequer foi no meu próprio país.
Achei por bem descontrair antes do doloroso momento da confirmação do que haviam apregoado as múltiplas sondagens: a vitória do candidato de extrema Direita.


Escolhi um filme. Ainda dava tempo. A Roda Gigante, de Woody Allen. Em princípio desviaria a minha atenção para outros temas.  Em princípio desviou. Mas no fundo, no fundo, a conclusão veio bater na mesma tecla: a explicação de uma escolha que o ser humano faz. O que leva uma pessoa a agir, a escolher uma acção, cujas consequências são agudas, dramáticas, irreversíveis e moralmente questionáveis?



A Roda Gigante (Wonder Wheel), dizem que será o último filme do realizador. É um clássico, e ficará como um dos melhores da sua carreira. Absolutamente perfeito, em termos visuais, tem ainda uma interpretação fenomenal dessa grande actriz chamada Kate Winslet dando aqui corpo a uma personagem trágica que não ficará, em carisma e intensidade, atrás da Blanche DuBois de “Um Eléctrico Chamado Desejo”.


Ginny é uma mulher à beira dos 40 anos, na década de 50 do século passado. Ataque de nervos é pouco para explicar como se sente, o quanto lhe pesa o dia-a-dia, sempre que se arrasta para o emprego na marisqueira onde atende às mesas. O segundo casamento com um alcoólico em recuperação entrou na rotina desinteressante e enferrujada dos matrimónios meramente convencionais.

O cenário é Coney Island, Brooklyn, Nova York:  a praia, os carroceis e diversões de feira. A vida é recreio para o povo e uma pasmaceira infernal para Ginny, que já fora uma actriz jovem e cheia de potencial. E por um erro trágico da sua parte perdeu a carreira e quase tudo. Ficou com um filho pequeno e acabou por dar à costa num casamento cujo o único sentido é o desespero de causa, a sobrevivência. Ela sente que aquela empregada de mesa que vê no espelho é o derradeiro papel, no grande palco da vida, que lhe coube em rifa. Não é verdadeiramente a sua pessoa. Há um corte com a sua identidade.


Até que conhece um nadador-salvador. Ironia do destino e ironia do trocadilho. Tornam-se amantes e ela pensa que ele a irá resgatar a uma existência sem significado. Que a levará para um destino paradisíaco e a transformar novamente na mulher deslumbrante que fora em tempos, e que no fundo, ainda continua a ser.
Mas Mickey também não era um nadador-salvador no verdadeiro sentido do termo, nem no metafórico. Ele era um potencial escritor (personagem que faz lembrar todos as outras interpretadas por Woody Allen, que são sempre o próprio) e como tal interessava-se mais pelas histórias das pessoas do que pelas pessoas em si mesmas. A História trágica de Ginny fascinou-o mais do que a própria mulher. Que, entretanto, se foi tornando mais irascível, instável e insegura do que ele estava disposto a suportar.
Tudo isto se agrava com a chegada da filha do marido de Ginny, que vai despertar a paixão de Micky e o ciúme inflamado desta.
Carolina tinha uma história excitante para contar: andava a fugir da Máfia pois casara com um gangster. Claro que Micky ficou imediatamente hipnotizado pela narrativa.
Carolina gosta da madrasta e confidencia-lhe tudo o que vai acontecendo entre ela e Micky.
Por isso Ginny sabe que os dois estão a jantar na pizaria quando os mafiosos chegam para matar a rapariga. E logo aflita corre a telefonar para o restaurante a avisar do perigo que corre. Mas enquanto fala com o empregado fica congelada, bloqueia completamente. E nós vemos aquele olhar fixo, parado, ausente que significa uma mudança crucial. Ginny deixar de pensar, deixa de distinguir o Bem do Mal, do que é certo do que é errado, a lógica, o pensamento racional detém-se naquele ponto, trava e congela.
Há um momento de suspensão a partir do qual a emoção toma conta dela. a paixão avassaladora e o ciúme ardente imobilizam-na, impedindo-a de salvar Carolina. A acção passa a reacção comandada puramente pela emoção.
Desliga o telefone. Vai-se embora. Carolina nunca mais aparece. Micky descobre tudo e passa a ver Ginny como uma assassina. O amor acaba. Ela perde tudo e volta ao seu papel de empregada de mesa, agora colado à sua pele como que por argamassa.



Este momento final, o clímax do filme fez-me lembrar um outro, chamado 7 Pecados Mortais do David Fincher que toda a gente há-de recordar.

Às tantas o assassino está diante do Brad Pitt e chega um carro com um caixa que lhe é deixada aos pés. O polícia abre a caixa e vê a cabeça da sua mulher. O sétimo pecado é a Ira e Kevin Spacey conta com essa emoção para levar o homem a cometer o crime.


 A Ira é uma emoção, uma das mais forte. Brad Pitt luta contra si mesmo, tenta controlar-se. Morgan Freeman, o Polícia mais velho tenta chamá-lo à razão: não deve ceder ao plano do assassino. O melhor é não fazer o que ele quer, o maior castigo será não o matar. Ele hesita, ele está a tentar recuperar o controle, mas a emoção é mais forte, a Ira ganha e ele mata o criminoso.
Podemos entender melhor esta personagem porque a “vítima” é um ser execrável, um monstro desumano, um ser horripilante. Depois haverá outra vítima, o próprio polícia que passa para o outro lado da barricada, desaparecendo a identidade que vestia até ao momento.

 Mas há uma semelhança entre as duas histórias: no fim existe uma dissociação entre a razão e a emoção, uma luta entre estes dois polos da personalidade das pessoas em que uma se torna mais forte e toma as rédeas da acção dando origem a um erro. A emoção não consegue escolher entre o Bem e o Mal, ela não escolhe, não é capaz, apenas reage em função do humor do momento, sem ter em conta as consequências. A emoção é apenas o agora sem o depois. É o sabor do preciso instante. Num instante apenas se pode destruir, para a construção é sempre preciso mais tempo.

Uma acção baseada na emoção pura pode ter um grande poder de destruição.

 Assim como o voto. Assim se viu no Domingo passado, no Brasil. Seja pela ira dos que estavam fartos do PT quer por paixão a Deus dos Evangélicos, a diferença entre o Bem e o Mal foi totalmente aniquilada, a Moral descartada, a lógica suspensa. Nada do que foi dito pelo candidato vencedor teve qualquer efeito na decisão dos votantes pois eles não estavam decidindo com a razão mas apenas reagindo com emoção aos acontecimentos. Para estes o seu acto extinguiu-se no próprio momento do voto e não terá consequências.  Mas elas virão. Para outros, para eles próprios, para todos. E para alguns, mais cedo que tarde.

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