Lembro-me dos meus pés sobre os teus pés numa dança desajeitada na cozinha enquanto o estrugido alourava na sertã. Eu, uma outra pessoa, e tu, uma pessoa ainda mais outra. Os dois cegos para o equívoco, surdos para todas as músicas que não aquela que nos dizia aos ouvidos que tudo iria ficar bem. Naquela noite pelo menos a calma reinava ainda na cozinha e depois no quarto, no fim da dança de cama e lençóis. Cegos e surdos para tudo o que já ia correndo mal. O petit nom com que tentavas o carinho e que me soava mal. As minhas interrogações à história que não batia certa. O que contava era essa paz que os corpos faziam um ao outro depois da guerra de almofadas e mantas. Não pedíamos mais. Não sabíamos que era preciso mais. Nessa noite foi suficiente para as línguas que se molharam nos olhos. Foi satisfatório para os olhos que se moveram como línguas. Estávamos cegos para todas as incompatibilidades evidentes. Éramos surdos para uma música que vinha lenta, suave, e quase inaudível que prenunciava os dias do futuro afastamento. Eu, vejo agora, era uma outra pessoa. E tu, também sabes, eras uma pessoa ainda mais outra. Duas pessoas diferentes do que somos. Outras para quem somos agora e outras também para quem julgávamos ser na altura.
Nessa noite ainda
era a paz. Estou a ver-nos com se fossemos personagens de um filme antigo, falado num idioma estrangeiro. Não sei o que digo. Não percebo o que dizes. O que dizemos um ao outro deve ser mentira, mas ali ainda não o suspeitávamos. Vejo, enquanto dançamos, os meus pés sobre os teus pés, ao som do estrugido que alourava na sertã, que os corpos se conheciam como dois velhos companheiros.
Dois velhos companheiros que se haveriam de renegar três vezes um ao outro. Como estranhos.
Dois velhos companheiros que se haveriam de renegar três vezes um ao outro. Como estranhos.
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