sábado, 30 de dezembro de 2017
Poema Penso-rápido
Seja por divertimento
por sorte ou condenação
dói de igual modo
o pacto de sangue
esse vinho tonto
derramando o drama
nos indicadores colados
das duas criancinhas delambidas
e mordiscadoras
dói como carne
interrompida
urge o curativo sério
no imediato, no entanto,
cada um vai sacar do seu bolso
um poema penso-rápido
estacando o sonho
na cabeça do dedo
latejante,
um dói-dói
no fim da linha
do seu verso
adiando a sutura definitiva
que virá, talvez, depois
por sorte
por divertimento
por ironia
ou convicção contracorrente
quinta-feira, 28 de dezembro de 2017
Farol
Farol da Marca da Mama, Carnaxide |
uma centelha intermitente
numa volta completa
em torno do maior eixo
um flash de sinais codificados
em amplitude modulada
o farol guia
guina-me o flanco
contra as rochas
dão à costa
as minhas pernas
ele entre elas
num silêncio
ondulante
faça-se uma ilha de luz
cercada de trevas
por todos os lados
ou tudo me faltará
o ar a água o faro
no calaboiço uma craca
a crescer por dentro
numa interrogação
proibida
um Farol é uma passagem
para a mesma margem
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
Kombucha
Uma bruxa
é uma ferida
aberta há dias
um excesso
de metáforas
põe o dedo
na mazela
um empurrão
para a fogueira
a arder
Uma bruxa
é invasora
convidada a entrar
na casa em estado
livre e breve
se agarra
ao tecto
como um bolor
e alastra cálido
Uma bruxa
pode até ser
uma kombucha
retrai-se
se tocada
sem cautela
não sendo
um animal
nas feridas abertas
é tal e qual
Uma bruxa
é um veneno
involuntário
ninguém deseja
beber ou cheirar
perímetro
de segurança
um excesso
de metáforas
poderá até salvar
Uma bruxa
é carne
para canhão
ateando o lume
quando há visitas
festas e juras
de serem as feridas
abertas
o melhor carvão
o condimento
Uma bruxa
é uma despedida
anunciada
uma morte
ao virar da esquina
talvez por alergia
um excesso
de metáforas
também não passa
de um bolor
cálido afinal
quinta-feira, 14 de dezembro de 2017
de tempos a tempos
The Walk, filme de 2015 |
recordo agora o nome
de uma rua
que repousava num tempo
em final de época
quando para surpresa de todos
o que era conhecido
se tornou estrangeiro
e o que era estranho
se encontrou familiar
o que era próximo
se tornou longínquo
e o que estava afastado
se tornou íntimo
o que se sentia chegado
se voltou misterioso
e o que se imaginava
quase alienígena
virou gémeo
nesse revoltoso tempo
o que era angular
ficou redondo
o antes trocou de lugar
com o depois
o primeiro com o segundo
o último com o seu antecessor
uma reviravolta matemática
de maré em quebra ciclo
uma bolha que rebenta
e não rebenta
um suster de respiração
uma batida falhada
pausa suspensa e presa
uma gotícula de um milagre
lembrei-me também da mão
que fecha o dique
a mesma travando a boca
já doca seca
não vem de cima
nem de baixo
nem do meio
mas da profunda natureza
de todas as coisas
em precário equilíbrio
e ameaça com um final
de tempos que antecedem
outros de recomeço
sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
Farpa do lar
em casa
sento-me no sofá
observando os passos
que daria fazendo a lida
se fosse fada deste lar
olho as tralhas pelo chão
como quem fuma um cigarro
e o fumaria displicente
se fumasse
antes levo à boca uma farpa
que é a lembrança da tua língua
na minha língua castigando-me
por ser uma imagem sem corpo
vejo-me então brincando
aos pais e às mães
às voltas com os trabalhos
domésticos aspirando
o pó para de baixo do tapete
do rato do computador
faço a cama aos sonhos
cozinhando uma sopa de letras
estendo o puzzle das meias
verdades a cozer ao sol
limpo o forno de lenha
onde a tua ausência assa
esse pão nosso sem nós
manteiga ou ilusão
se querem mesmo saber
senhores o certo
é que se acabou
o sal
e o meu papel
higiénico
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Rapsódia
o poeta vive na rapsódia
e no baixo cima baixo cima
baixo da guitarra
vim encontrar
a palavra incêndio
mas não um incêndio vulgar
dos que queimam e deixam
tudo negro à saída
um incêndio que larga
pontos de luz depois
das chamas
e não gasta o ar respirável
antes o reproduz
e de tantos poetas que há
uns tombados pelo tempo
outros pelo chão voluntários
em cinzas boiando
escolhe-se de meia dúzia
que vive numa melodia
imprópria
para consumo privado
o único que haverá
de nos fazer atravessar
a cidade
de uma ponta à outra
por um compasso
de espera e esperança
até deixar de nos doer
os pés e a alegria
de um hino
terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Aniversário
Um adeus é um espelho estilhaçado
no chão
migalhas de uma enorme recusa
que se reproduziu
por geração espontânea
entrou a pés juntos
e foi expelida pelo organismo
como uma maré baixa
mil pontos negros
a descoberto
O último pedaço entra na pá
por intermédio
da prestimosa vassoura
a contragosto pensa
o que faço aqui
depois do adeus
e dos trezentos
e quarenta e cinco
bocados de ruína
já enterrados no lixo
agora que tudo se perdeu
Uma sobra temerária
encontrada meses depois
debaixo de um móvel
esquecida
um pedaço de um adeus
um negativo por revelar
destroço de uma memória
futura
esquecida na máquina
de viagens no tempo
avariada
O último grão de areia
na grande engrenagem
o derradeiro eco
da sequência maldita
a punir o ouvido derrotado
um pequeno nada
do qual nenhuma vida
foi feita
embora hoje seja dia
de aniversário
e por isso apenas
e como resquício de um adeus
obsoleto
os meus Parabéns
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
Matimar
Lembro-me
como se tivesse
alguma vez assistido
ao dia-a-dia no grande armazém
de revenda
os soutiens de copas
extra generosas
as cintas xxl
das mulheres roliças
à antiga portuguesa
as larachas entre colegas
as toneladas de tecido
o contar dos tostões no final do mês
dia de salário
Lembro-me com a memória possível
a quem ouviu os relatos
vezes sem conta
e visitou verdadeiramente
o escritório principal
uma única vez
uma fotografia fosca
de uma cabeleira
preta e espessa
e a certeza da amabilidade
sem mácula
nos lábios
Um homem singular
chamado Joaquim Matias
quando me levaste
a conhecer o teu ex-patrão
e patrono
Sr. Matias
um homem bom
que não foi recompensado
em vida
porque se compensações
houvesse
não existiriam homens bons
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Impostos
o sangue pensa
a pele pede
a boca pesa
só mais um sopro
um tumulto
a mente mói
e manda
o corpo cobra
e cai
na roda da vida
avança
pondo a nu
em cada transação
o seu vascular
valor acrescentado
assim a natureza
colhe alegre
e distribui
os seus dividendos
a providência
alvoraçada
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
urgência
A meio do dia a urgência
um sinal
a luz que precede a ânsia
a queda
de véspera a urgência
de viver o dia a meio
o sangue a confluir
a ir ao fundo no dia
no meio a urgência de vir
e permanecer na vida
um momento na curva
a mão a embalar o sangue
o mundo a virar girando
na urgência de cair
a meio do momento tácito
na teia a confluir
ao segundo o sangue
para a urgência
de ouvir cair o mundo
a luz
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Bypass
Toda a salvação é efémera
Por vezes
ao fim da noite
faço um desvio
uma ponte
sobre a artéria principal
para que o sangue contorne
a rotunda adormecida
a volte a fluir pelo torax
aberto
sabendo de antemão
que toda a salvação
é efémera
procedo à operação
como quem procura
o equilibrio da respiração
sincronizada ao segundo
Ainda que a dor se esbata
irradia pelo corpo
uma aurora que vai durar
apenas até ao nascer do dia
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
A fusão do hélio
Lembro-me de olhar pela janela
absorvendo as imagens da fusão do hélio
o ferro das entranhas da casa
era uma espada enterrada de ausência
assim era a vontade alucinada
do homem-eucalipto
os alicerces cresceram trémulos
pilares que lançavam de tempos
a tempos um tentáculo de alegria
um encontro
recolhia breve
um polvo hesitante
como um lampejo de farol
em rotação regular e escassa
pingando na memória
Parco é o alimento
capaz de saciar a imensa fome
migalhas que chegavam de anos luz
de distância
das fontes do hélio em fusão
e eu via essas longas viagens
na casa soterrada
por uma avalanche de palavras
entrelaçadas na sua própria decifração
salvando-se apenas um par de mãos
numa prece a desejar testemunho
uma pequena morte
As casas de homens-eucaliptos
crescem à mingua de água
e dão aos jardins raquíticos arbustos
até ao dia em que a enxurrada tudo varre
e tudo volta a crescer como manda o hélio
pela porta há-de entrar um aríete
de febre incandescente quebrando
a estrutura matematicamente rigorosa
da seca severa
por momentos o encontro
um polvo hesitante
entrelaçado nos alicerces da casa
em rotação regular e breve
enquanto eu olho pela janela
absorvendo as viagens de anos luz
até às fontes da fusão do hélio
a minha pequena morte
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Desenhador
A Tasca de Belas |
O medo mora na estrada de montanha
assim como o frio, a fome e a infâmia
que foram o alimento da alma do avô
é fácil imaginar o salto da máquina
para além do viaduto,
num voo de três segundos.
Acredito em nós
como
na implacável matemática
ou na terra que é plana
como uma laranja.
Acredito no desenhador
que junta os traços
por intuição, unindo pontos
que lá estão
com os pontos que faltam
sendo em maior número
os que jamais virão.
Entrei no café da esquina
e os clientes matinais
ruminavam em frente
aos copos de vinho
do mata-bicho
da jornada de trabalho.
Em Roma sê romana
assim me deslocalizei
abrindo o Correio da Manhã
na mesa do canto.
descobri desse modo que o medo
mora da estrada de montanha
onde o desenhador interrompeu
o esboço por três segundos no céu
e o pobre automobilista perdeu o nome
lá para os lados de Loures.
Era para ter sido uma carta
interrompeu-se por falta da voz
ao fim de muitas página,
por falta de pontos a unir os traços
que se interromperam por segundos
e lá caímos na armadilha
de sermos (involuntariamente)
a mesma pessoa de sempre,
engenho estéril de asas,
útil apenas
na descida para o grande nada.
A fobia é plana como uma laranja,
recusa, por cobardia, medir forças
com a lógica e os outros frutos
da ciência.
A fobia não vai a jogo
nem sequer faz bluff.
Acredito em nós
como na sequência certa
das histórias ocultas.
Acredito no desenhador
e na sua esplendorosa
caligrafia.
Acredito no desenhador
ainda que me assalte
com dúvidas.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
O Véu Pintado
"A maior jornada
é a que se faz
percorrendo a distância
entre duas pessoas"
A história começa no instante
em que o segundo nome decide
(por razões ainda indecifráveis)
iniciar a jornada.
Esta antecipação deixa
incubando um contágio
(um beijo de meio segundo)
na boca
do primeiro nome.
Partidas desencontradas
costumam recuperar simetria
no repouso dos nomes.
Abreviam-se desequilíbrios
por crescimento de um desejo.
No que diz respeito
aos nomes
a bondade é uma esgrima
que dá razão à fé
na mobilidade das flores
mais sensíveis.
Assim surgiu um balanço
entre dois extremos
que ora se tocam
oram se afastam
e não se tomam de fastio.
Por isso me atrevo a dizer
que liberdade é
totalmente feminina
quando há um oráculo a corrigir
significados,
a fechar represas
tentando conter incêndios
deflagrados,
a arquitetar obras
remendando
desmoronamentos.
Porque a esgrima
é uma força que apenas avança
(até nos seus recuos teremos de adivinhar
intervalos)
e que nem mesmo pela raiz da cólera
poderá ser travada.
O que dizer da distância entre dois nomes?
Quando o enredo
se enterra num livro,
filme, música ou poema
nada se declara.
Quando a viagem
for mera metáfora
responde
apenas a uma pergunta
que se crê primordial.
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
PSEUDO-NAMORO
Bem-vindo, Benjamim,
às acácias floridas
do papel perfumado
do meu namoro.
O teu estranho caso,
não viu, ai não viu,
não viu Benjamim,
é conversa de botões.
Surgir perdido
entre morros de bairro
tão quente e gaiato
é motivo de espanto
bem forte e seguro,
para me distrair
em bailes de poesia falada.
Tua pele macia, Benjamim,
era sumaúma,
cheirando a rosas,
tua pele macia:
rosas escondidas no meu regaço.
O teu sorriso
brincando de artista luminoso
na fímbria de um Novembro
tão rijo e tão doce
de joelhos no chão.
Mandei-te um recado ou dois,
já eram mais de sete,
quem diria,
Benjamim,
que dobrado o primeiro NÃO
pela tua mão seria.
Procuraram por mim
as moças mais lindas
e eu lá estava num canto a rir
vendo um Napoleão
em toda a parte.
Levei ao rei Xerxes,
guerreiro de fama
a marca do pau que a tua fé deixou
para que fizesse um feitiço
espalhando diamantes
dando calor aos sumo das mangas.
Tocámos a rumba, Benjamim,
dançámos na sala
e a estrela riscando o céu,
quando sobre o asfalto
atravessei a cidade,
quem a viu fui eu.
Olhei-te nos olhos,
sorriste para mim:
Deus nos livre de sucumbir
às semelhanças irreconciliáveis,
Benjamim,
Dobremos o SIM.
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
Poema Perverso
Reclining female nude by Egon Schiele |
Por vezes, por verso,
de assalto,
temos o avesso
do que está escrito.
Não temo a dulpa
estocada artística
de duas cabeças
condecoradas
ao leme,
à vez
singular
num barco
de alto aprumo.
Amar
é uma soma
de correntes
contramão
multiplicadas
num fio inconcreto,
linhas que se cruzam
desalgemadas.
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Bagagem
Beetle car, Brienna Pruce |
seguindo
sem hora
estrada a fora
o risco
sob o pneu
as entranhas
do poema
peixe por dentro
aberto
marca pacho
em ferida
pulsação
na curva da voz
peso pesado quase
a fazer voar
as oscilações
do volante
lavo versos
clandestinos
ocultos em maços
dos pacotes
da bagagem
silêncio sôfrego
montanhoso
que me protege
da condenação
pelo colectivo
de meretrizes
terça-feira, 31 de outubro de 2017
sábado, 7 de outubro de 2017
memória futura
o tempo plantou-se à espreita nas palavras
e esperou que viesses
a língua depositou caligrafias na pele
decalque
para a memória futura do teu corpo
surpresa
na maré viva
do meu ventre
segunda-feira, 2 de outubro de 2017
Pessoas do passado, pessoas do futuro
Há dois tipos de pessoas, as do passado e as do futuro.
As pessoas do futuro são as que se transportam diariamente para o dia seguinte. Quando lá chegamos encontramo-las à nossa espera. Antecipam-se ao pensamento e, assim, por lá continuam a habitar.
As do passado não avançam. Fixam-se no dia em que as deixamos de ver. Para que as encontremos temos de nos lembrar delas. Ora, como bem sabemos, recordar é contra as forças da natureza, dá trabalho. Por vezes incomoda.
sexta-feira, 29 de setembro de 2017
Fogo
O elemento
da protecção civil
deu o fogo
como controlado
mas não extinto.
Aquiesci,
dei o peito
às cinzas
e ardi
silenciosamente.
terça-feira, 26 de setembro de 2017
POEMA SOBRE A MINHA MÃE (de Duarte Marques)
Mãe
Tu és a melhor mãe que eu já conheci no mundo inteiro.
Nem na Amazónia conheço uma mãe como tu.
Tu és a melhor.
Sempre que te pergunto qual é a tua cor favorita tu dizes:
não sei!
És tu!
Tu és o meu favorito,
favorito entre todo o mundo!
Tratas-me bem como tratas todos os outros cães.
Cães da tua clínica e de todo o mundo.
Mundo de mais de mil cães.
Tu adoras cães.
Os teus olhos brilham como o sol.
Os cabelos como o mar.
És a pessoa que tem mais sentido para mim.
Não sei como é que nasci de uma bela concha como tu.
domingo, 20 de agosto de 2017
Poção Trágica
chego a ver
subindo as escadas
esse leite iluminado
fruto do olho cego
veneno agonizador
as minhas mãos
desirmanadas tomando-o
obedientes
duas cabeças
de cabra
sem mancha
oferta queimada
de cheiro suave
ao senhor
as mãos
como pés que marcham
vão à boca
obstinada
beber o mal
para alcançar o bem
ser doce cúmplice
é cumprir no silêncio
a expiação da culpa
e tudo aceito
por tua vontade
como se também eu
acreditasse
adeus
quarta-feira, 19 de julho de 2017
Space Oddity
Imaginemos
por um instante, façam-me lá esse pequeno agrado, o Neil deGrasse
Tyson a ler no Facebook as declarações daquele grupo de pessoas que
acredita piamente que a Terra é plana.
Eu
diria que encolheria ligeiramente os ombros, abanaria
desconsoladamente a cabeça duas ou três vezes e passaria adiante,
para a estrela mais próxima ou mais distante, aposto que o estudo da
mais longínqua lhe dará mais entusiasmo.
O que
um grupo de centenas de milhares de “rednecks” escolhe acreditar
por ignorância pura não tirará o sono, nem a concentração, a um
astrofísico que se dedica à divulgação científica com afinco e
alegria. Tyson trabalha, respira e vive para levar o conhecimento a
quem o quiser receber.
Aprender é um processo activo, tem de haver uma vontade consciente e
voluntária de quem recebe a informação.
Da
mesma maneira a ignorância implica uma vontade activa de recusa de
conhecimento. A ignorância não é sinónimo de desconhecimento.
Cada
um de nós transporta um certo grau de desconhecimento que é sempre
elevado em relação à quantidade de conhecimento disponível sobre
uma imensidão de assuntos e que é impossível abarcar no tempo de
uma vida. Desconhecer é inevitável, e acontece sem a nossa
colaboração.
A
ignorância, é a busca voluntária e consciente do desconhecimento.
Acontece quando alguém sabe que existe uma determinada informação
mas prefere manter-se longe desta. Prefere não saber. Trata-se
portanto de uma escolha, uma liberdade.
Como
devem calcular a ignorância pode ser por vezes útil. Ninguém pode
saber tudo sobre tudo, há que fazer opções pois os nossos
neurónios são finitos e convêm poupa-los.
Podemos
até ter a necessidade ou o simples capricho de ignorar certas
pessoas. Quem nunca?
Nem
toda a gente me interessa. Eu não interesso a toda a gente. Por isso
sou ignorada por algumas pessoas e não posso levar-lhe a mal. Cada
um tem os seus gostos. E é assim que está certo.
Terminando
este parêntesis e continuando o meu exercício de imaginação,
voltemos ao Neil. Ele vai lendo barbaridades na Internet, nada de
novo no reino da “Dinamarca”, e tal, quando lhe passa pela vista
um discurso de um professor de física lá do burgo, com prémios
recebidos, medalhas de mérito, doutoramentos, pós-graduações aos
magotes, reconhecimento unânime dos seus pares, em que este afirma
que a terra é plana, descobriu em sonhos a noite passada, jurando a
pés juntos ser verdade, verdadinha, que eu morra aqui e tudo.
Se
calhar, desta vez, não se lhe encolherão os ombros, nem a cabeça
abanará dolentemente. Talvez as rugas da testa se tornem mais
sulcadas e os lábios contritos de preocupação. Um físico que
apregoa uma mentira está a propagar um fogo na floresta do
conhecimento e a impedir que as pessoas que buscam a sombra fresca e
reconfortante da verdade científica a possam alcançar.
Estou
a ver o deGrasse a enfiar o seu equipamento de bombeiro, apanhar a
sua mangueira e em segundos ficar pronto para a luta contra o fogo
ardente da idiotice. Vejo-o até a ligar o seu SIRESP, felizmente,
neste caso, um SIRESP amigo e eficaz: o Bill Maher, o John Oliver, o
Stephen Colbert e os jornalistas em geral para desmascarar o
Físico-impostor ou o Físico-enlouquecido, não sabemos mas para o
caso vai dar igual.
E
assim, o Neil Tyson vai usar a melhor arma contra as chamas negras da
irracionalidade: a palavra, o veículo do pensamento inteligente do
Homem. Se não bastar a palavra, venha o canhão maior: a Matemática.
Se
nada disto der certo perguntem ao Major Tom, ele sabe, ele esteve lá.
domingo, 16 de julho de 2017
UM POEMA DE FERNANDO PINTO RIBEIRO
SALMO
a João Bigotte
Chorão.
Estou
morto.
Mas a vida
lambe a minha pele em labaredas.
Sou noite.
Mas o dia
põe-me nos lábios papoilas
e coroa-me de espigas o cabelo.
Ceguei.
Mas a luz
vem poisar-me sobre as pálpebras
outras tantas borboletas inquietas.
Não oiço.
Mas o eco do silêncio
canta o hino imenso que eu não posso.
Não respiro.
Mas aspiro o alento
da maresia no vento.
Não sinto.
Mas pressinto: a minha alma arde
e uma chaga floriu na minha carne.
Não choro.
Mas tremem estrelas cadentes
nas lágrimas pendentes que sustenho.
Não canto.
Mas sopro nuvens
no pó que levanto.
Não ando.
Mas todo o meu espírito
vadia sem folga nem descanso.
Não durmo.
Hiberno: verme esvurmo limo e lama
no fosso em que me enfurno
aninho e faço a cama.
Não amo.
Sobre a seta quebrada no meu peito
raiva uma fonte de sangue
a incendiar a sede a incinerar a fome
dos homens dos bichos das florestas.
Não sonho.
Mas a fé
faz da esperança e da saudade
sentinelas do sepulcro
onde vivo o meu coração jaz
pisado por cavalos em tumulto.
Estou morto.
Mas o sol explode
a luz esplende
em plena primavera
neste corpo
que me prende
e me suspende
absorto.
Mas a vida
lambe a minha pele em labaredas.
Sou noite.
Mas o dia
põe-me nos lábios papoilas
e coroa-me de espigas o cabelo.
Ceguei.
Mas a luz
vem poisar-me sobre as pálpebras
outras tantas borboletas inquietas.
Não oiço.
Mas o eco do silêncio
canta o hino imenso que eu não posso.
Não respiro.
Mas aspiro o alento
da maresia no vento.
Não sinto.
Mas pressinto: a minha alma arde
e uma chaga floriu na minha carne.
Não choro.
Mas tremem estrelas cadentes
nas lágrimas pendentes que sustenho.
Não canto.
Mas sopro nuvens
no pó que levanto.
Não ando.
Mas todo o meu espírito
vadia sem folga nem descanso.
Não durmo.
Hiberno: verme esvurmo limo e lama
no fosso em que me enfurno
aninho e faço a cama.
Não amo.
Sobre a seta quebrada no meu peito
raiva uma fonte de sangue
a incendiar a sede a incinerar a fome
dos homens dos bichos das florestas.
Não sonho.
Mas a fé
faz da esperança e da saudade
sentinelas do sepulcro
onde vivo o meu coração jaz
pisado por cavalos em tumulto.
Estou morto.
Mas o sol explode
a luz esplende
em plena primavera
neste corpo
que me prende
e me suspende
absorto.
sábado, 24 de junho de 2017
Um Bentley ao Batráquio
Vai de Bentley, o batráquio
Corre a estrada qual ciclone
Meio milhão não é prejuízo
E dá um estilo à Stallone
Por ajuste secreto responde
Alegadamente picou o anzol
Vejamos o que debaixo esconde
Dos campos sintéticos do futebol
Acelera veloz p'ró Caracas
O teatro do centro refundado
É verde alpino, é do caraças
Não, não é dele, é emprestado
Um batráquio num Bentley
Imagem que a ninguém doa
Dúvidas responde perante a Lei
É um senhor, será pessoa?
sexta-feira, 23 de junho de 2017
Lições
Da vida recebo toda e qualquer lição.
Reservo-me o direito de escolher os mensageiros-professores.
Reservo-me o direito de escolher os mensageiros-professores.
Doutor Tempo
Um dia destes
sofrerei
a última
e cruenta
transformação.
O rei dos especialistas
sem bisturi opera,
o maior cirurgião.
Deixarei por fim
de ser mulher.
Velha apenas.
Onde está o Bebé?
protagonista
a artista
consagrada doutra era
caiu no casting
para papel secundário
digno apesar de curto
útil em fim de carreira
afinal era de figurante
quis fugir horrorizada
mas usou dos artifícios
do Métier
contendo-se
lembrando-se
também o Hitchcok
e o Stan Lee
se divertiram
figurando em filmes
onde outras estrelas
brilharam
assim
retocando
a maquilhagem
sorriu
atuou
saiu
de cena
altiva
serena
ninguém viu
quarta-feira, 14 de junho de 2017
Poker Face
Cedo por facilitar
Nada é por troca
Que venha a ganhar
Quem o naipe toca
Autorizada a aposta
Não vai combinado
Jaguar não é lagosta
O jogo é válido
O palpite de fairplay
À partida era pálido
Tiro ao Ás, tirei o Rei
Fumaça, já foi sólido
Na derrota há aprender
Não há luto, lamentação
No ígneo bom perder
Reside a boa educação
segunda-feira, 12 de junho de 2017
Ursa Maior, Poema Ilustrado por António Gaspar
terça-feira, 6 de junho de 2017
terça-feira, 30 de maio de 2017
o tempo é bala
segunda-feira, 29 de maio de 2017
uma ideia de ti
David, Bernini |
fico-me pela ideia de ti
sem pesquisa ou reportagem
mera conjectura imaginária
um traço no céu
sem remexer nas catacumbas
desse teu sotão
não venho para fazer o bem
mas para beneficiar
acredito na bondade da inércia
evitar distúrbios e perpetuar
o movimento ou o repouso
o que está
é o que tem de ser
esta ideia de ti
permite o respeito
do teu ritmo
és um rochedo
mais do que pedra enrijecida
um portentoso esconderijo
condeno-te a essa
estatuária categoria
capitulando
Capitulando, capitulando, estamos todos na mesma situação, capitulando, capitulando sem querer capitular.
quarta-feira, 24 de maio de 2017
Gigi, o profissional do golo
Shadow Man |
Dá gosto mirar a figura
a correr o campo,
p'ra cá e p'ra lá,
toda uma azáfama
coreografada
de afincados pormenores,
primorosas fintas,
articuldas e estratégicos
desarmes,
o esplendor na relva.
No perfeito domínio
da técnica seria mentira
prometer falhar
o lance quando
a baliza vai aberta.
Quem de tal maneira
golo marca
não é gaio,
é mais gajo que deseja
passar por galã
e quase passa
tal é a íntima qualidade
do profissional.
Deve ser bem pago.
segunda-feira, 22 de maio de 2017
O mundo é nosso
O mundo, farto de paz,
começou com uma explosão
e fez-se implacável.
O Sol fez-se
para arder e devorar.
O predador fez-se para cobrar
as presas
com a força de entrar na carne
e quebrar os ossos.
Tu obedeces à lei do mundo
cumprindo essa prisão
libertadora,
a biológica missão
que carregas
no ventre.
Não será por tua vontade
que se dissolverá
a vantagem do mais
forte.
Ah, a ilusão doce
de que o mundo é nosso.
chuvinha da boa
chove a tua língua
na fonte
da minha sede
trava fome
seminal
até ao dilúvio
terminal
na fonte
da minha sede
trava fome
seminal
até ao dilúvio
terminal
quarta-feira, 17 de maio de 2017
Palavra Voadora Não Identificada
O ventre estacionado no convés
e eu montada na tua sela
ou tu na minha,
confundidos os cavalos que éramos nós.
A palavra luminosa,
um néon pendendo ao alto.
A minha mão tateando os teus rochedos,
o pensamento preso na decifração da imagem.
A palavra fintando-me a leitura
e eu subindo a colina do teu peito.
Procuro uma resposta no livro
que mostravas nos olhos mas
só lá está agora o branco.
A palavra sinuosa
submergindo na pele.
No centro do leito dois corpos
vão rasgar um mar ao meio
num minúsculo milagre precário
e logo serão subtraídos
ao silêncio,
espuma das sobras
na voragem da maré.
Da palavra nem sombras.
quarta-feira, 3 de maio de 2017
quarta-feira, 26 de abril de 2017
temp
O Abraço, Egon Schiele, 1917 |
no acto bendito
e dilatado da visita
encontro
corpo adentro
o outro
no átrio o recebo
com carinho
dirigido que foi
com a mão
ao caminho
da porta trampolim
ele entra
e entra
e entra
entra ainda
e se repete
marinheiro repescado
prendendo-me na surpresa
do passadiço
de cordas içadas
perdendo-se em mim
vai o mar encapelado
temporal mais que perfeito
desagua náufrago
no fim do mareio
vem a nós um mar
domado na ponta
eterna
do lingote dourado
segunda-feira, 24 de abril de 2017
coração cordeiro
sábado, 15 de abril de 2017
A morte tem a minha cara
Salvador Dalí, Ballerina in a Death’s Head, 1932 |
a morte tem a minha cara
na geometria incendiada
das mãos
atravesso a rua
desconhecido sorriso
famoso mil
vezes monalisa
para o outro lado
do espelho
onde os ossos
meros traços confluem
no logradouro da despedida
os veios rubros servem
de amparo comprometido
desculpa à libertação
da cauda pendente
(de cadáveres ondulantes)
rasante do vestido
no chão
terça-feira, 21 de março de 2017
Mistério diário
O dia é sempre o mesmo,
recomeça pela manhã,
mistério ao rubro.
De muito olhar
pela janela,
o homem
desamparado,
vai morrer
por
falta de asas.
Ainda hoje
e sempre.
quinta-feira, 16 de março de 2017
domingo, 12 de março de 2017
os russos
Devo a minha vida aos russos.
Não falo do povo da Rússia, nada contra, mas sim dos bolos, aqueles
deliciosos folhados com recheio branco no meio, quase chantili, muito
melhor que esse creme. Ainda parece que estou a saboreá-los agora, a
sentir essa espessura por todos os dentes e com todo o poder de
língua como por altura dos meus sete anos quando a minha mãe
chegava da baixa e me trazia, da pastelaria Suíça, uma caixa branca
fechada a cordelinho com meia dúzia deles.
Eu era, na época, uma
criancinha enfezada de muito pouco apetite, quase sempre afectada por
amigdalites recalcitrantes. Era um castigo para comer, para mim e
para a minha família. Levava horas à mesa enrolando a comida nas
bochechas, mastigando a custo, cuspindo sempre que podia e de cada
vez que ninguém via. Levava até umas belas palmadas da minha avó
que era dada a enervações repentinas durante as dilatadas horas das
refeições de fastio.
Teria sido uma infância feliz não fosse este
martírio da alimentação.
A vida mudava perante a caixinha
dos bolos. Mal eu pressentia a minha mãe chegar dessas paragens
gastronomicamente paradisíacas corria para a receber, ou melhor,
para usufruir da minha iguaria preferida. Não, minto, não se
tratava de primazia, na verdade, para além desses doces, não havia
mais nada que me soubesse bem ou ingerisse com satisfação. Os
russos ou o jejum, sem compromisso.
Foi assim que um dia, ao abrir a
caixa e olhar para as ditas guloseimas recusando-as, a minha mãe
correu comigo ao hospital onde me salvaram de morrer sufocada. As
amígdalas estavam transformadas em duas bolas gigantes de pus
branco. E, não fora a caixa dos bolitos, ninguém adivinharia os
monstruosos abcessos. Benditos, os russos.
sábado, 11 de março de 2017
Senhor Carlos
O Sr. Carlos não se chama Sr. Carlos. Na verdade não sei o seu nome. Um dia ouvi-o tratar por Carlos alguém que tem outro nome, apenas por familiaridade, ou quem sabe, por gostar muito do nome. Ficou a ser, para mim, o Sr. Carlos, porque não? Afinal também gosto de baptizar as pessoas.
O Sr. Carlos gosta de falar com os passageiros da camioneta entre Lisboa e Carnaxide ou no percurso inverso. Aprecia ainda mais o diálogo com os motoristas a quem trata com respeito e admiração. Desses acredito que saiba até o nome verdadeiro. Um dia assisti a uma conversa com o Sr. Simão, o condutor. O homem desejou-lhe um feliz aniversário e obteve como resposta:
"Obrigado, Sr. Simão, muito obrigado. Na verdade eu só faço anos amanhã. Dizem que dá azar dar os parabéns adiantados mas eu não vejo as coisas dessa maneira. Afinal, se não me desse agora os parabéns não mos podia dar, pois amanhã não venho. E além de que isso são crendices. Ora quando uma pessoa deseja boa viagem a outra também é sempre antes e não há azar por causa disso, não é verdade, Sr. Simão? Por isso olhe muito obrigo pelos parabéns, fez muito bem."
E a partir daqui a conversa desenrolou-se à volta da temática dos santos e das procissões das paróquias que servem a freguesia de Carnaxide-Queijas. Foi um subir e descer de ruas e ruelas atrás dos variados andores, sempre culminando na expressão "e foi muito lindo, muito bonito". Até que o Sr. Carlos pergunta ao Sr. Simão, talvez um pouco perplexo com o seu silêncio, se era seu costume frequentar a Igreja. Ao que este responde que não, nem por isso. E vai o Sr. Carlos:
"Pois, então é como eu, Sr. Simão, eu também não ligo muito."
Eu, no meu lugar à janela, passei o resto da viagem lamentando não terem levado o sr. Carlos como braço direito do António Guterres, lá para q ONU, ou no mínimo para uma embaixada de um país qualquer, seria uma mais valia, certamente. Sendo assim, foi uma brilhante carreira diplomática que se trocou por outra de curto percurso entre uns simpáticos arrabaldes e o centro da capital portuguesa. É a vida, como diria o Senhor outro.
pescador
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
Um piano no peito
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
Aranha
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