Devo a minha vida aos russos.
Não falo do povo da Rússia, nada contra, mas sim dos bolos, aqueles
deliciosos folhados com recheio branco no meio, quase chantili, muito
melhor que esse creme. Ainda parece que estou a saboreá-los agora, a
sentir essa espessura por todos os dentes e com todo o poder de
língua como por altura dos meus sete anos quando a minha mãe
chegava da baixa e me trazia, da pastelaria Suíça, uma caixa branca
fechada a cordelinho com meia dúzia deles.
Eu era, na época, uma
criancinha enfezada de muito pouco apetite, quase sempre afectada por
amigdalites recalcitrantes. Era um castigo para comer, para mim e
para a minha família. Levava horas à mesa enrolando a comida nas
bochechas, mastigando a custo, cuspindo sempre que podia e de cada
vez que ninguém via. Levava até umas belas palmadas da minha avó
que era dada a enervações repentinas durante as dilatadas horas das
refeições de fastio.
Teria sido uma infância feliz não fosse este
martírio da alimentação.
A vida mudava perante a caixinha
dos bolos. Mal eu pressentia a minha mãe chegar dessas paragens
gastronomicamente paradisíacas corria para a receber, ou melhor,
para usufruir da minha iguaria preferida. Não, minto, não se
tratava de primazia, na verdade, para além desses doces, não havia
mais nada que me soubesse bem ou ingerisse com satisfação. Os
russos ou o jejum, sem compromisso.
Foi assim que um dia, ao abrir a
caixa e olhar para as ditas guloseimas recusando-as, a minha mãe
correu comigo ao hospital onde me salvaram de morrer sufocada. As
amígdalas estavam transformadas em duas bolas gigantes de pus
branco. E, não fora a caixa dos bolitos, ninguém adivinharia os
monstruosos abcessos. Benditos, os russos.
Sem comentários:
Enviar um comentário