sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Testemunha




Às vezes dou por mim a pensar que o acontecimento foi uma fantasia da minha imaginação. Uma coisa sonhada. É uma dúvida legitima, já o Filósofo teve de considerar o sonho para desenvolver as suas deduções célebres. Pode ter acorrido, durante o sono, e por um lapso mental de extrema raridade, o arquivamento da memória sonhada junto das memórias reais. Então lembro-me de ter acontecido mas, em boa verdade, não posso garantir que assim seja.
Se por acaso tivesse de, em tribunal, dar testemunho dos factos, não teria uma evidência, uma prova concreta que pudesse apresentar perante um juiz ou um júri que corrobasse a minha história. Não ficou qualquer vestígio. Teriam, os intervenientes do processo penal, de confiar na minha palavra. Talvez pressentissem a hesitação na minha voz, uma fragilizada convicção e me condenassem por perjúrio. Se adivinhassem poderiam ver esta lembrança desvanecida. Uma recordação que inicialmente era como um filme, com movimentos, gargalhadas, diálogos, discursos completos, todas as palavras. E agora é apenas um conjunto de imagens isoladas como fotografias que aparecem esporádicas e desirmanadas, em dias separados por várias semanas e que apenas me permitem adivinhar uma história muda. As vozes ausentaram-se. Os lábios aparecem sempre contritos. Ora zangados, ora tristes, soprando um silêncio devastador, como um mar imparável.

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