sexta-feira, 31 de outubro de 2014
mindinho
dedo mindinho
miudinho
dedo em riste
apontado ao rosto
é adivinho
sábio descobre
que te vejo
que te leio
meu viciozinho
solitário
se acontece
mais amiúde
é por te querer
por te ter
como ninho
como corda
para subir
o mal-andamoso
caminho.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
fotocópia
two men meet, Paul Klee |
tão distante do original
fotocópia, fotocópia
cantas mal
não me entristeces
nem alegras,
bem tentas,
sobra a barba
onde falta cabedal.
Cresce, cresce,
faz-te à vida,
lança-te do beiral.
Voa, voa,
deixa a capital,
larga o regaço,
o ninho natal.
Tenta o canto longe,
longe do leito fetal,
aparta-te do meu ouvido,
dá-me o silêncio, a calma,
leva a lengalenga abismal,
o marasmo manso
das tuas lentas letras,
leva o bocejo venal,
leva o vento da ira
que me vem ao peito
se te oiço
na telefonia digital.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
tirano
waiting-woman-detail-face, Paul King |
Às vezes é preciso paciência para esperar. Outras é preciso paciência para não esperar nada.
Comecei por te esperar um bocadinho todos os dias. Isso fazia-me sentir com mais energia. Adorava aquele formigueiro do suspense a correr na pele, aquela tentativa de adivinhação a cada instante. Mas com o passar dos dias tudo foi ficando mais embotado. Como se tivesse tomado um bom analgésico. O tempo não passa de um bom analgésico. Chega-se a um ponto que já nada se sente. E a paciência para suportar tudo o que nos acontece, especialmente a ausência de movimento, torna-se ainda mais urgente e mais difícil.
Deixaste de vir. Deixei de acreditar na alegria. O tempo instalou-se como um tirano brutal.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
terras perdidas
crow, ingrid blixtnar |
Vai turva a memória
como um nevoeiro
invadindo os olhos
um grito que se ouve
de pássaro quase corvo.
Não é um corvo
porque não anuncia
nem vida nem morte,
apenas um estado
intermédio de fantasma
de vista baça.
É um quase corvo
fêmea
de canto mudo,
vem apenas medir
o pulso à doença
e, perdido, fica
a velar o animal, doente.
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
cavernícula moderno
Uma caverna calafetada
peles,
caça,
botas,
uma invejável caraça,
mocas úteis,
mamutes de marca,
troféus e presas.
Ah troglodita moderno
quase vampiro,
quase terno
de gestos e palavras
quase vesgo,
de olhos pequenos
cegos
e vivos,
vorazes
vencedores perdidos.
ah troglodita, troglodita,
aprecias a fraterna comandita,
esse clube quase careca
da vil carica,
cavernícula troglodita
tão moderno.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Grelha
indomável
Parece-me que a fonte está a secar. Nem sei bem se é um alívio ou uma tristeza. Posso pressenti-lo, primeiro porque desapareceu aquela ansiedade imperativa de deixar sair as palavras. Depois é aquela esperança indomável que já não está cá.
Quando se domina um cavalo selvagem ele continua a ser um cavalo, dócil e nobre. Mas domar a esperança é transforma-la numa espécie de touro mecânico.
Foi à garupa da minha esperança indomável que subi ao pico da mais alta montanha. E toda a gente sabe que é no pico de algumas montanhas que certas palavras se podem encontrar.
domingo, 19 de outubro de 2014
Charulata
A vida é ritmo, Charulata,
ondas
dança,
marés,
chuva,
soluços de lágrimas,
caracteres de escrita,
ordens do coração.
Mais olhos que barriga
Os teus olhos são o teu dono,
dominam-te.
A tua barriga capataz.
Decepado
escapas às ordens,
não há massa sem mãos.
dominam-te.
A tua barriga capataz.
Decepado
escapas às ordens,
não há massa sem mãos.
Homem Invisível
Tenho pavor
das despedidas,
facas a despertar
o sangue,
a desatar os nós
que prendem a vida.
Não digo adeus.
Minto e entro no corpo
do homem-invisível.
aroma
A tua ausência é um aroma.
Por vezes encontro
uma pedra entre palavras
e sento-me
um bocado a descansar.
Vejo faiscas chispando
nas tuas mãos em concha
contra as curvas
do meu peito,
vejo a tua boca na minha
murmurando
em dialecto de beijo
uma reconciliação.
Vejo o que não li.
No intervalo de pedra
entre as palavras,
ó Escritor de todas as histórias,
reino eu.
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
Testemunha
Às vezes dou por mim a pensar que o acontecimento foi uma fantasia da minha imaginação. Uma coisa sonhada. É uma dúvida legitima, já o Filósofo teve de considerar o sonho para desenvolver as suas deduções célebres. Pode ter acorrido, durante o sono, e por um lapso mental de extrema raridade, o arquivamento da memória sonhada junto das memórias reais. Então lembro-me de ter acontecido mas, em boa verdade, não posso garantir que assim seja.
Se por acaso tivesse de, em tribunal, dar testemunho dos factos, não teria uma evidência, uma prova concreta que pudesse apresentar perante um juiz ou um júri que corrobasse a minha história. Não ficou qualquer vestígio. Teriam, os intervenientes do processo penal, de confiar na minha palavra. Talvez pressentissem a hesitação na minha voz, uma fragilizada convicção e me condenassem por perjúrio. Se adivinhassem poderiam ver esta lembrança desvanecida. Uma recordação que inicialmente era como um filme, com movimentos, gargalhadas, diálogos, discursos completos, todas as palavras. E agora é apenas um conjunto de imagens isoladas como fotografias que aparecem esporádicas e desirmanadas, em dias separados por várias semanas e que apenas me permitem adivinhar uma história muda. As vozes ausentaram-se. Os lábios aparecem sempre contritos. Ora zangados, ora tristes, soprando um silêncio devastador, como um mar imparável.
criptograma
Encriptei-te nas palavras
para te reter camuflado
exercendo o monopólio
de te ler no meio delas
opaco para os outros
transparente para mim
um código antigo
desvendado na carne.
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Coração carbonizado
Se tocar-me era sujar as mãos
então não me tocaste
e as mãos permaneceram limpas,
lindas,
lacrimosas,
mapeadas
de um destino
que não se cumpriu.
Mãos imaculadas.
Pendentes dos braços,
escondidas em luvas,
trincheiras de uma guerra
sem um único combate.
Versão softcore
de um coração carbonizado
em solitário palpite.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Fruta de Maria
Pelo
segundo mês consecutivo, o insólito aconteceu na pequena aldeia de
Freixo de Tábua à Cinta. A primeira noticia que demos conta
aconteceu quando Dona Maria dos Prazeres encontrou um envelope com
quatrocentos e cinquenta euros à saída da estação dos correios. O
que surpreende não é a ocorrência mas sim a atitude de D. Maria
que resolveu dirigir-se à esquadra e compelir os agentes da
autoridade a encontrar a proprietária do dinheiro e devolvê-lo na
sua presença.
Hoje,
representantes da conhecida marca de refrigerantes e sumos de fruta,
KomKal, visitaram a aldeia e mais concretamente o quintal de D. Maria
dos Prazeres na tentativa de estabelecer um acordo comercial de
exploração da nova espécie de fruto que apareceu.
Várias
fontes garantiram à nossa redacção que se trata de um autêntico
milagre da natureza pois o fruto permite a quem o ingere libertar-se
de toda a azia espiritual e amargos de boca que possam estar a
sentir. Dizem que tem um aspecto entre uma romã e uma melancia e
chamam-lhe “Romaria”.
Um
representante da Komkal confidenciou-nos que já existe um slogan
para o lançamento dos sumos desta fabulosa fruta: “Tomar ao
pequeno-almoço Romaria evita a inveja todo o dia!”
Entrevistada
pelo nosso repórter D. Maria relatou-nos como se apercebeu de que
tinha surgido uma fruta nova na sua horta: “ O meu Jaquim pediu-me
a sobremesa e eu deu-lhe uma coisa destas que até pensei que era uma
romã estragada. Em vez de me dar um enxerto de porrada, como
habitualmente, ficou a rir, e eu disse, ó Jaquim e se fosses dar uma
volta ao bilhar grande e ficasses por lá para sempre? E ele abalou e
nunca mais o vi até hoje. É foi aí que percebi que a fruta era um
milagre de Nossa Senhora de Fátima”.
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
OS FACILITADORES
Este
livro impressiona. Uma coisa é suspeitarmos de ligações duvidosas
entre o mundo da política e o mundo dos negócios com os advogados
como ponte (sim, estou a usar um eufemismo), outra coisa é ver tudo
explicadinho ao pormenor. É como observar uma necrópsia de um polvo
gigante dissecado ao centímetro. Uma coisa é imaginar um polvo por
fora, outra é vê-lo por dentro.
Ainda
vou no 1º capítulo. Não consigo avançar depressa. Nem o tempo mo
permite nem a a leitura é fácil. Mas apesar da dificuldade, do
incómodo que fica com a percepção de uma realidade que não é
nada benigna, não deixo de ficar feliz por estar a ler este livro.
Finalmente surge uma esperança de que estejam a surgir na sociedade
pessoas, e melhor ainda, jornalistas, que se interessam por
investigar e divulgar este assunto tão crucial para a nossa vida
presente e futura. Porque parece que temos vivido um tempo de
aceitação, de resignação e de desistência em relação ao
“estado das coisas”. Eu vi a chegada deste livro como um ponto de
viragem. Sei que “Os Privilegiados” vieram primeiro mas suspeito
que este livro seja mais importante ainda.
Compreendo
a opção do autor de não ter ligado os pontos, não ter um capítulo
de conclusões. Fez muito bem. Porque as pessoas têm de ter a
liberdade de quererem ver ou não quererem ver. A metáfora dos
pontos que se unem é muito boa. É como aqueles livros de crianças
que são de colorir. Não é preciso ser muito inteligente, basta ter
vontade, para unir os pontos e formar uma imagem. Está tudo lá. A
população tem de chegar a uma conclusão: se quer continuar a viver
assim ou não.
E não
importa muito, a meu ver, se “ o referido sistema de correlação
entre o poder político, as sociedades de advogados e os interesses
empresariais funciona como ordem espontânea (grown order) ou
uma ordem construída (made order) (…).”
O que
interessa é que as coisas como estão só interessam a um grupo
muito restrito de pessoas. E aquilo a que chamamos Democracia na
prática não existe por estar totalmente pervertida em favor desses
particulares interesses.
Muito
perspicaz e lúcida noção do autor de que o Homem necessita de
padrões para conseguir sobreviver ao caos. Sim, é verdade, mas para
isso se inventou a literatura e em particular a poesia. Para
compreender o mundo, seja o natural ou artificial, temos de usar a
razão e o espírito cientifico. Para nosso bem. E aqui entra o
trabalho jornalístico de Gustavo Sampaio, que é objectivo,
minucioso, exaustivo, corajoso e muito bem escrito. Um trabalho com
todo o mérito. Uma pérola monumental.
Um
livro completamente imprescindível.
fogueira
que rara chama
que parda lenha
que bizarra brasa
que ignara garra
que corrosivo carvão
que obsessivo batuque
faz arder esta fogueira?
terça-feira, 7 de outubro de 2014
abraço
O vestido levanta
no entroncamento do corpo
e olhas com os dedos
a humidade de veludo
entre veredas e vales.
Quando a água vem ao ventre
a boca também vê
também sente.
E logo te escondes
afundado
por entre os montes.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
a minha fé
Depois da esperança esfarrapada
aposto as minhas fichas na fé.
Uma fé sem dono.
Uma fé em bruto.
Uma fé cavernícola.
Uma fé nua.
Uma fé sem rédeas.
Uma fé de olhos no chão.
Uma fé capaz de tourear
o desespero
sem bandarilhas.
Uma fé a cavalo
da garupa de um lobo.
O Misógino Subtil
Há homens que se dizem
peritos em mulheres. Dedicam-se a descobrir os segredos do prazer
feminino. As variadíssimas zonas erógenas subtilmente escondidas
na pele, o ponto G, os aromas mais atractivos, as variantes do
discurso mais chamativas.
Outros, no entanto,
inteligentes, especializam-se na arte de ofender. Utilizam o ultraje
como quem maneja uma espada e procuram atingir aquele que se poderia
intitular de Ponto O, ou seja, um ponto de localização obscura na
alma feminina, que quando tocado é capaz de provocar a ofensa
máxima. Não deixa de ser um bom e eficaz método de compensação freudiana.
Eles sabem, inteligentes, que uma ofensa é mais difícil de esquecer
que uma carícia.
sábado, 4 de outubro de 2014
Veterinária
Não há poesia alguma
na agulha que desce
pela carne a baixo.
A pele doí-se
o corpo reage
o cão cura-se.
Mas há um sorriso
na cauda que abana
à saída.
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
Livro Proibido
Tinha o pressentimento que o livro me causaria sofrimento. Por isso não o comprei. Mas, sempre que o vejo nos escaparates das livrarias, chama-me. Tenho de lhe pegar. Ler o resumo da contra-capa, o título, o nome do autor, tocar-lhe e acariciá-lo. Já pensei até em levá-lo só para o ter na minha estante, junto com os outros. Só para olhar para ele, sentir que a minha colecção estava a ficar mais composta. Mas temo o seu poder de atracção. Certamente que se ele estivesse ali, à mão de semear, não me contentaria em contemplá-lo apenas. Primeiro iria abrir uma página ao calhas e leria uns parágrafos. E sentiria uma dor indefinida, uma impressão desconfortável, uma aflição. Se uma frase falasse de um rosto, de uns olhos ou de um chapéu, iria reconhecer de quem se tratava e isso seria inconveniente e angustiante. Seria tão constrangedor como entrar sem querer num provador de roupa de uma loja,por engano, e apanhar alguém com as calças na mão.
Não deveria ser capaz de decifrar os enigmas do livro. Mas por um estranho acaso, ou pontaria no sentido do azar, veio parar-me às mãos o código que permite resolver os criptogramas encerrados no contexto. E assim o livro tornou-se claro e aberto à minha compreensão o que faz a sua leitura, como direi, emocionalmente desafiadora, ou mais simplesmente, penosa.
Conhecendo-me como conheço sei que dos pequenos excertos dispersos acabaria por ler o livro de uma ponta à outra e provavelmente chegaria ao fim para voltar ao princípio, repetindo a dose. Sim, sou masoquista a esse ponto.
Do pouco que li hoje, senti que estava a ver-me a mim mesma vestida da alma do autor. O peso do silêncio, a necessidade de evidência documental do fracasso, a espera na rua em vão, a esperança estéril, a incapacidade de interromper um sentimento sem sentido, o desespero da perda recalcado com requintes de contenção, a solidão esmagadora. Os pormenores, as ruas, as luzes, os automóveis, como se fossem adereços da minha própria história. Como se eu estivesse estado lá. Como se pudesse entender completamente tudo o que estava escrito.
O livro não me dá espaço à imaginação e à dúvida. A sua clareza torna-se esmagadora.
Como se o livro fosse uma espécie de máquina do espaço-tempo e me transportasse para dentro dele e me encurralasse. O meu medo é não mais poder sair.
Estive com ele na mão alguns minutos. Cheguei a dar dois passos em direcção à caixa. Mas recuei. Por hoje salvei-me.
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
um alto final
O tempo já correu
tudo o que havia
a correr
e agora vai devagar
para baixo
degrau a degrau
claudicando
tremendo
desaguando
de um pequeno parto
intermitente
em sentido reverso
cada vez mais longe
da luz.
o tempo tem
por vezes
o capricho
de dilatar
o fim
o tempo é
quase todo
um final
muito alto.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
Apneia do sonho
Por um momento
ou dois
deixo de respirar
a imagem congela
o sonho pára
as árvores já não correm à janela
espero uma palavra
ou duas
tudo se suspende
e então
a palavra vem
respiro uma partícula
e as minhas mãos
fecham-se
como pássaros
que evolassem.
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