Em bom rigor
como um átomo
um amo-te
há-de bastar
sexta-feira, 27 de março de 2015
invisível
a última a chegar
a primeira a sair
antes dos aplausos
eu não conto
fica tudo limpo
como se nunca
aqui tivesse vindo
eu não conto
não haverá chantagem
nem palavra
ou morte
eu não conto
serei discreta
um novo fantasma negro
eu não conto
incomodar
não posso
morrer tão cedo
não quero
eu não conto
atrás
ao contrário
do bom público
das cadeiras da frente
eu não conto
saio antes de voltar
a luz
a minha presença
é sombra
mas morrer
ainda espero
e não conto
quinta-feira, 26 de março de 2015
gesso
escultura de Camille Claudel |
Não parto a pedra à pele
com o martelo dentado de lábios.
Não parto o gesso à pele de pedra
com o gesto enganado de lâminas.
Não perde a pele de gesso
o lábio serrado que morde a pedra.
Não cumpre a perda
a pedra que arremessa
o martelo sobre a pele de gesso.
O gesso cai
a pedra fica.
luva
quarta-feira, 25 de março de 2015
vodka
nem a vodka salva
nem o vinho basta
tudo na vida é selva
quando o amor se afasta
beber é anestesia
serve para adormecer
tal como a poesia
serve para não morrer
difícil é ignorar
tudo o que me atinja
nada como ajudar
com um copito de ginja
o álcool é perdição
dá cirrose, há que dizê-lo
pior faz o coração
é só ler o Camilo
Por isso prefiro beber
afogar-me em cerveja
venha quem vier
cá p'ra mim é inveja
o fígado é meu amigo
outro melhor não há
se Deus me der castigo
paciência, bebo chá
Brindo a todos vós
com este copo final
a beber não estamos sós
cada um é dois afinal
"O amor faz bem a quem o sente"
"O amor faz bem a quem o sente" in "O Chão dos Pardais" de Dulce Maria Cardoso.
Houve um tempo em que pensava que podia sacudir a tristeza como quem se livra do desperdício capilar nos ombros de um casaco. Era o tempo da esperança.
Agora sei que a tristeza é como uma tinta permanente que nunca sai.
Por isso é que o amor faz tão bem. Faz-nos esquecer que a tristeza está sempre lá, que a tristeza vai estar sempre lá. Sentir amor por alguém é adiar a tristeza. Mas aos amados esse adiamento está vedado, a menos que comecem a amar também.
Leviatã
Que espécie de bicho és tu?
Criatura impossível
de couraça imune ao anzol
ou azagaia,
não geras filhos,
inchas podre
ao sol
e na água
até todo o mar ser sólido,
todo o mar ser uma ilha,
essa ilha que és tu.
segunda-feira, 23 de março de 2015
contrato
A tia do médico casou com um Santo.
Os futuros herdeiros não descansaram enquanto não a induziram ao divórcio.
Ao Santo não se ouviu uma palavra.
Nem pelo primeiro nem pelo segundo acontecimento.
Vedor
sábado, 21 de março de 2015
sujidade
ilustração do texto "Solitária Pride!" no blogue de Heloisa Lupinecci |
deixei de lavar os vidros
evito as imagens de extrema claridade
não quero ver o que os meus olhos vêem
prefiro as constelações
das caganitas de mosca nas janelas
aprecio as metáforas para rir
telhados prestes a rachar
violinos guinchadores
tímpanos a instantes
de ficarem moucos
alegorias de bichas solitárias
no bucho da porca
sexta-feira, 20 de março de 2015
quisto
Concha-fóssil, ilustração de Bruno Escoval |
uma teimosia desiste
o amor enrola-se
enquista
adormece
bolha de cápsula dura
imune ao tempo
tempestades
de gelo
fogo e feras
um quisto
de perfeita película
ninguém sente
ninguém vê
não se dissemina
um embrião que sobrevive
esquecido
por vezes vem ao peito
um pontada de ar
uma dor
inexplicável
terça-feira, 17 de março de 2015
coração farejador
Nose drawing number seventeen, Paul Foxton |
Duas aurículas surdas
se pudessem conversar
como duas ovelhas no prado
que desatassem a balir
que diriam
duas orelhas de cão
caídas,
moucas,
se ousassem confessar
o frémito
da veia aberta?
Denúncias
do coração farejador,
perdigueiro de parar,
caçador
da solidão sem remédio.
quinta-feira, 12 de março de 2015
QUEM TE AMA NÃO TE AGRIDE
O
agressor é um predador.
Caça
vítimas com esmero,
artimanhas,
ratoeiras,
paciência.
O
amor é o isco.
A
vítima deixa.
Cola-se
ao corpo
um
papel,
escamas
de peixe na rede.
Crava-se
na carne
um
anzol
envenenado
de medo.
Pode
deixar entrar
uma
força fina,
surda,
capaz
de cortar aço,
a
esperança.
Uma
força que salva.
Uma
força que mata.
Dependendo
do
bote
que
tivermos
p'ra
lançar.
Pã
quarta-feira, 11 de março de 2015
O passado é a luz das estrelas
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