"Qual quer que venha a ser o resultado desta minha ociosa e diletante tentativa para alcançar o sucesso, ele será tanto ou mais duradouro, disso estou convencido, do que aquele que obteria se me entregasse ao labor insano e pouco saudável de me privar das tardes de sol para ficar fechado em casa a escrever um livro de verdade. Com alguma sorte, aliás, serei um dia destes abordado por um dos jornalistas que, não tarda, estarão investigando o misterioso e instigante romance de Oscar Schidinski e, então, poderei até dizer que tive nas mãos um exemplar da notável obra, que o li por empréstimo e que estou na posição de assegurar, com absoluta certeza, a genialidade e a singularidade do livro do mestre húngaro. Com alguma sorte, repito, serei convidado para os telejornais e programas de variedades, para debates e conferências, para tertúlias e magazines culturais, e poderei obter, deste modo, mais atenção do que aquela que conseguem alguns desses patetas que se dedicam a a escrever livros de grande profundidade existencial e originalidade estética, bestialmente aborrecidos e aos quais ninguém no seu perfeito juízo de dica mais do que uma devoção fingida e circunstacial."
Temos aqui o resumo da história do livro. Um homem
sonha ser conhecido, deseja o reconhecimento público. Não está
para se aborrecer a escrever livros. Tem uma ideia muito mais
original. Inventa um romance. Literalmente. Sem o escrever. Ele
elabora o objecto propriamente dito, com capa, com letras. E depois
passa os dias a viajar pelos transportes públicos na zona do grande
Porto a divulgar a obra, como quem não quer a coisa, aos outros
passageiros. Lança o isco para um grande mistério. O grande enigma
desta monumental obra chamada "Cidade Conquistada"
do tal Óscar Schidinski.
Tenta também criar uma mistério sobre a origem do
próprio autor. Conta excertos do livro imaginário durante os vários
itinerários que faz a cada dia. As histórias nunca são iguais pois
ele vai inventando à medida que as conta. Sempre na esperança de se
tornar famoso através da farsa. Através da falsa obra prima. Da
mentira mil vezes repetida que não se tornará nunca verdade mas em
algo muito mais proveitoso: uma mentira apetecível.
Enquanto esta personagem sedenta de fama vai
contando as suas peripécias no autocarro o autor propriamente dito,
o Marmelo, aproveita a dica e escreve o tal livro imaginário, a
Cidade Conquistada, fazendo as vezes do escritor húngaro.
Podemos conhecer assim o livro falso, tornado verdadeiro para nosso
gozo, que conta a história de outro homem, também ele escritor mas
desta vez um mulato do Belize chamado Marcos Sacatepequez.
Marmelo aproveita ainda para contar histórias do
próprio Marcos Sacatepequez, esse escritor ficcionado que pode muito
bem ter sido inspirado na figura de outro escritor do mesmo nome mas
neste caso um poeta hondurenho, como por exemplo o caso do famoso
Homem-zebra.
O livro é uma corrida. Uma prova disputada entre o
escritor. Manuel Jorge Marmelo, e a personagem- narrador, que parece
uma outra versão de si próprio, pelo reconhecimento público, a
metafórica cidade da fama. Um conta uma história,
escreve um livro de verdade. O outro inventa uma mentira e repete-a
até à exaustão. Quem ganha? Parece-me que a resposta é clara.
"Uma Mentira Mil Vezes Repetida" foi a
obra vencedora do Prémio Correntes d'Escritas 2014.
É um livro muito bem escrito e competente, daqueles
que ganham prémios e que permitem aos escritores o desafogo para
inventar outros livros verdadeiramente memoráveis como o que vem a
seguir e sobre o qual já falei: "O Tempo Morto É Um Bom
Lugar". Abençoado livro mais o respectivo prémio. Venham os próximos. Que sejam muitos.