quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Antony e a Poesia do Hematoma




Quem ouve o Cripple and the Starfish (O ALEIJADO E A ESTRELA-DO-MAR  na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes) pela primeira vez pode concluir apressadamente que é um hino ao masoquismo. Pode sentir uma certa perplexidade pelo contraste da suave melodia com a violência da letra. Mas ao contrário do que possa parecer o Antony não está a fazer a apologia da agressão física e da submissão ao abuso.
Ele faz uma denúncia, aponta um espelho para que a personalidade submissa se reveja. Ele dirige-se essencialmente à parte fraca da equação, à estrela-do-mar. Pois este é um poema de resistência e adaptação. E quem apanha e se refaz para apanhar de novo, resiste, adapta-se e sobrevive. É alguém que corta o dedo e o vê crescer como uma ponta de estrela-do-mar e ao ver o fenómeno vezes sem conta acredita, começa acreditar na sua invencibilidade, numa espécie de imunidade, uma dormência, que tudo permite sem consequências de gravidade.
O Antony ironiza com esta filosofia de resiliência eterna, de animal esponjoso, que é tudo menos humano. Os humanos não regeneram, ficam marcados, permanentemente danificados, destruídos.
Daí o tom de sátira desta letra.
Antony aponta também a cumplicidade, para não dizer a culpa, da vítima, que sempre desejou um amor com crueldade. De facto não há agressor sem agredido e cabe ao agredido perceber que não é feliz. Daí a insistência nas expressões de felicidade.

No “Fistufull of Love” ( UM PUNHO CHEIO DE AMOR  na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes), música alegre e ritmada, a cegueira da vítima é elevada a um outro nível. Tudo é desculpabilização da violência. Todas as marcas, todas as feridas, todas as cicatrizes, todos os hematomas são símbolos de amor, marcas de devoção. Os punhos fechados que batem fazem-no como prova de amor. Isto é um espelho apontado ao coração e ao rosto de todas as vítimas de violência doméstica: para que se vejam, e o vejam o seu engano.
Porque para mudar é preciso ver, aceitar, compreender que existe um problema, um erro, uma ferida aberta, uma necessidade de mudança.

Encontrei há pouco tempo outro tema do Antony sobre violência doméstica que se chama Virgin Mary. Espero publicar a sua tradução para português (também pelo Nuno Miguel Lopes) muito em breve.
Missão quase impossível é a de colocar em poesia uma realidade tão brutal como é a violência doméstica. Juntar agressão e amor numa mesma composição poética. Isso consegue como poucos o Antony Hegarty.