Quem
ouve o Cripple and the Starfish (O ALEIJADO E A ESTRELA-DO-MAR na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes) pela primeira vez pode concluir
apressadamente que é um hino ao masoquismo. Pode sentir uma certa
perplexidade pelo contraste da suave melodia com a violência da
letra. Mas ao contrário do que possa parecer o Antony não está a
fazer a apologia da agressão física e da submissão ao abuso.
Ele
faz uma denúncia, aponta um espelho para que a personalidade
submissa se reveja. Ele dirige-se essencialmente à parte fraca da
equação, à estrela-do-mar. Pois este é um poema de resistência e
adaptação. E quem apanha e se refaz para apanhar de novo, resiste,
adapta-se e sobrevive. É alguém que corta o dedo e o vê crescer
como uma ponta de estrela-do-mar e ao ver o fenómeno vezes sem conta
acredita, começa acreditar na sua invencibilidade, numa espécie de
imunidade, uma dormência, que tudo permite sem consequências de
gravidade.
O
Antony ironiza com esta filosofia de resiliência eterna, de animal
esponjoso, que é tudo menos humano. Os humanos não regeneram, ficam
marcados, permanentemente danificados, destruídos.
Daí o
tom de sátira desta letra.
Antony
aponta também a cumplicidade, para não dizer a culpa, da vítima,
que sempre desejou um amor com crueldade. De facto não há agressor
sem agredido e cabe ao agredido perceber que não é feliz. Daí a
insistência nas expressões de felicidade.
No
“Fistufull of Love” ( UM PUNHO CHEIO DE AMOR na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes), música alegre e ritmada, a cegueira da
vítima é elevada a um outro nível. Tudo é desculpabilização da
violência. Todas as marcas, todas as feridas, todas as cicatrizes,
todos os hematomas são símbolos de amor, marcas de devoção. Os
punhos fechados que batem fazem-no como prova de amor. Isto é um
espelho apontado ao coração e ao rosto de todas as vítimas de
violência doméstica: para que se vejam, e o vejam o seu engano.
Porque
para mudar é preciso ver, aceitar, compreender que existe um
problema, um erro, uma ferida aberta, uma necessidade de mudança.
Encontrei
há pouco tempo outro tema do Antony sobre violência doméstica que
se chama Virgin Mary. Espero publicar a sua tradução para português
(também pelo Nuno Miguel Lopes) muito em breve.
Missão
quase impossível é a de colocar em poesia uma realidade tão brutal
como é a violência doméstica. Juntar agressão e amor numa mesma
composição poética. Isso consegue como poucos o Antony Hegarty.