I
o eco dos grandes descampados
solares
meu
corpo matéria
em fogo
uma língua
invisível
girafas
outras geometrias
poros excitados como cabeças de alfinetes
em água a ferver
II
os azulejos
descem pelas
fachadas
dando às ruas a paixão das iluminuras
uma ramagem de alecrim
deitada na nossa conversa
quando os dias pequenos do Inverno
acendem rumores em fuga
fazia lembrar uma embarcação
no mar alto
um
adágio a capella
III
um bonsai
de folhas vermelhas
em sangue
um bago de arroz
representa o homem diante de deus
o
mundo em mutação
sinal
decisivo
a memória
o seu
raio verde
o
fruto da lentidão
IV
a chuva tinha transformado o dia
num espesso aquário
os vidros escorriam
aquelas vozes
o rumor
a desistir
um ponto a meio do quadro
como a água
entre pedregulhos e musgos
em sorvedouro
sentia-me num comboio desgovernado
a
descarrilar
V
a silhueta aparecia
entre
veludo
subia as escadas
para apoiar as mãos
a errar todas as máquinas em movimento
ficava a contemplá-la no cadeirão
todos os dias corto
ao meio
os
pensamentos
um modo de depuração
sou uma máquina que contagia
o equilíbrio
para cortar ao meio
a memória
VI
ela sorria
através do ritmo
do vento
era morena
com o sotaque
dos nautas
os lábios uma baía
as pernas
inércia
o nome revelado
no coração da tempestade
VII
passei a acomodar os livros
pela ordem dos anos
as estantes ditaram a sua forma
solitária
um convite à memória
à suspensão do tempo
no meio uma árvore carregada de ameixas
um alívio enorme
o céu breve
como nunca
seguia preso
um vulto atravessou o asfalto
era ela
uma simples aura
aos solavancos
uma morfologia vagabunda
labirinto de ramos
nós
no
gradeamento
do
quarto
ali de pé
o vestido que ondulava
VIII
como uma maré-cheia de luz
ia
abrindo
os
braços
no avesso da corrente
não era deste mundo
acordei
colocando a mão na grande Fénix
renascendo depois
das cinzas
a pequenez do homem diante do infinito
uma
promessa
com três
mãos
o pequeno almoço caiu no chão
como um trapo
IX
a gesticular no anfiteatro
qualquer caderno servia de leque
sensual
naquela posição eu me dava a ver
como maestro
pedaços de realidade
a força de um reiniciar amoroso:
"encontrar"!
"amparar no regaço"
o exemplo de Kandinsky
X
íamos pelo passeio como
se fossemos de mão dada
nossos
corpos sedentos
a enfrentar aquele vazio do dia-a-dia
uma amnésia a dois
os corpos
sedentos
a primeira vez inscrita
na boca
de um oráculo
duas nuvens que o Tejo torna única
XI
ao largo da fábrica de café
uma porta
um quarto minúsculo
frinchas leves
brilhos eram sinais
o cheiro coagulava o tempo
a cidade voltou a ver-nos
a mastigar palavras
a embalar as árvores
negras e ramagens
de cedros
XII
entrei no anfiteatro de gabardine
um pierrot
entre relâmpagos
girafas nas cornijas
frase sim frase não
embarcação possuída por remadores
loucos
nessa manhã de chuva
o mundo
estremeceu
XIII
um actor faz do corpo um fio-de-prumo
que se vai transformando em dicção
um pescador pesca com as mãos
esta pedagogia deambulante
não era capaz de habitar num
espaço fechado
o que mais detesto é o horror
à corporalidade
ao suor
às fibras
aos nervos
às seivas
às cópulas
aos diabinhos de volúpia
aos pajens de linfa
aos valetes de aguadilha
XIV
o tempo comeu as palavras
deixo-me fotografar
com pose de
Edgar Allan Poe
numa cabine no metro
arrumei o nome dela
para sempre
na caixa de bolachas Maria
um estigma de desejo
plano inclinado
onde me movo
com o diafragma aberto
um mapa da cidade
nessa noite voltei a fumar
precisava de um prazer
na varanda
entre o breu da noite inacabada
coloquei o cigarro na boca
o
tempo que vivemos
é
sempre o mesmo
XV
uma aurora boreal tomara conta da noite
ouvi a vizinha
descer
as escadas
com os tamancos de madeira
atravessou a praceta
matraqueando os ladrilhos
de calcário
rodou o pescoço de cisne
e olhou-me de frente
fiquei com a caneca a balançar
entre as mãos
perdido no Mar do Norte
como se alguém tivesse inventado
a escrita literária no interior do esófago
a curva do túnel
XVI
caminhava sobre carris
desenhados a dedo sobre
o pó
suava
aqui era o mundo feito de letras
numa cegueira total
na penúltima estação vi-a
uma mancha rosa
uma promessa
transfusão de todo o corpo
pessoas são labirintos
círculos inscritos em quadrados
tochas de cor a rodar
sombras dentro de uma lanterna mágica
a tempestade é sempre uma pergunta
XVIII
sobre a mesa da casa de jantar
a bola
ria
durante as horas do dia
seguia-a como um gato
olhos mitigando o infinito
o gelo do
tempo
Cesário Verde tinha uma meia de vidro
na cabeça
o seu teatro de
espectros
como se cuidasse da Lua
XIX
aquele ritual segundo o qual
caíamos em nós
verdadeiramente
avançando os nossos vultos
como duas linhas de penumbra
que acasalam forças
jogo de morosidades
aliviados e desfeitos
tesão
enquanto ela
abraçando-se
a mim
assaltava o alecrim
em silêncio sem Nietzsche
figuras conduzidas pelo sol
adágio sem retorno
vivíamos para deixar de ser
XX
nevava nas nossas abelhas
no nosso mel
escorria
sobre a barriga
sobre os mamilos
sobre o rosto
e eu
muito devagarinho
ia avançando
com o corpo
a imitar um bicho-de-conta
uma centopeia
um flamingo
a brincar com o amor
XXI
Edgar Allan Poe era
o fadista simbólico
Alexandre da Macedónia era
o D. Sebastião universal
a amputação alimenta
as suas incisões
através da tristeza
decidi fotografar-me no metro
solidificar a memória
o amor perdido
os flashes: doce
fuzilamento
deixei crescer o bigode
daguerreótipo com três
dimensões
XXII
Eva impelida pelo vento
levava pelos ares
a planta da cidade
uma bandeira
a procura da verdade total
subi ao terceiro andar para cumprimentar as trepadeiras
uma borboleta de prata
caía em jeito de duplo arco-íris
verdade de acrobata
vaivém de miragens talvez a vizinha
fosse a serpente
assoprando
manipulando
a arte do fole
os nossos olhares tocaram-se como relâmpago
XXIII
os cartazes há muito rasgados
crescem sem piedade
à última estação do metro
no vidro fosco dos túneis
agulhas sobrepostas
dois relógios de parede
um homem uma carruagem
fato-de-macaco azul
dedeiras alaranjadas
cara manchada de fuligem
investigava os divórcios de Kandinsky
como se fosse uma zebra
toda a sua energia de jovem
um fôlego notável
a mulher diante de mim perdeu
o fato de banho
uma urgência em mãos
"acha que posso ajudá-la a encontrar
aquilo que perdeu?"
a sintonia é um fio de seda muito frágil
XXIV
na pastelaria o espelho
um vulcão
cada tique
uma outra face
ela desatava a girar
sobre o seu próprio eixo
um planeta à procura do sol
no cinema o Azul, de Kieslowski
Alain Delon era um cão agastado
com o cosmos
enquanto a bola de sabão crescia
fez splash
como se fugisse de
mim
XXV
ela crocitava como um corvo
o vento assobiava como o alfabeto
o amor é uma ostra
a boca do metro revelou-me
histórias devastadoras
a canção gravada numa cassete BASF
percorrida por corpos que se entregam
corresponde a uma viagem
num tempo sem início
num tempo sem fim
"Morríamos juntos"
suspendendo o ser
antecedendo o nó
passámos às rochas do Guincho
na tentação do desequilíbrio
os faróis dos automóveis batiam-nos
a saia branca e vermelha
a
experimentar furiosamente
(a ilusão de)
um
tempo sem fim
XXVI
a chuva preenchia o espaço todo
uma intuição líquida
o Allan Poe fotografado por Brady
lenço enrolado ao pescoço
a forma do nariz sobre o bigode
as olheiras
descobri ao fotografar-me
o meu
segundo nascimento
vingar o que perdi
XXVII
a mudança de casa é uma forma de cicatrizar
por milagre
a saudade germina nesse movimento
Destino: a palavra
cai
em si
clarão
perseguimo-lo como uma luz violenta
triste shadda
um papagaio que fazia batota
uma bela flor de mil pétalas
caminhava para assaltar a minha Tróia
uma
catapulta
cara a cara com a esfinge de Gizé
pernas vergadas
um parafuso
tronco solto
folha de
papel vegetal
uma clarabóia dos diabos
dois abrolhos entre amores proibidos
XXVIII
eu retirava a minha máscara
a senhora retirava a sua
ficávamos nus
um na frente do outro
" por aqui?"
um rio de paz
com tanta fé no olhar
no meio do frenesim
XXIX
ela tirou o pé do sapato
fiquei a devorar o tarso
as linhas de cada dedo
a melodia do metatarso
levantava a curva do calcanhar
acariciava o outro lado do mundo
a luz violeta-lilás
inundou com raro brilho
o
tornozelo
a pele dava a ver
as artérias
rios secretos
lagoas interiores
falanges ingeridas uma a uma
água da fonte
de Castália de Delfos
pensar nos nervos
do dorso
daquele pé
XXX
E o fim da tarde fez-se noite
já não nos bastava o gás ou a queda
livre
procurávamos o abismo
as falésias
o limite
"morrer
juntos"
os braços guindastes soberbos
um dervixe
XXXI
tão bem construída
a minha personagem
entre quimeras e teatro barato
com as maquilhagens a desfazerem-se
na ficha técnica
montagem alternada
no grande plano
o rosto imobiliza a luz
um cachecol vermelho
XXXII
do baú saiu
mola invisível
aquele
suspiro
faúlhas a brilhar na escuridão
um
lacinho
gatinhos amarelos a fumar boquilha
material de graxa
a
ramagem de alecrim
as
nossas florestas negras
o
perfume da saia rodada
XXXIII
a fera estava à beira do rio para dar vazão aos instintos
o seu transe
através dos ramos da buganvília
como dois macacos felizes
era íngreme a nossa voz
numa manhã de cata-ventos
o ar salpicado de tinta vermelha, azul e amarela
XXXIV
como parte do meu corpo
uma
espuma a desfazer-se
pingos de sangue sobre o gesso
luz na penumbra gelada
um fado em convulsão silenciosa
num café virado para o rio
a
tarde entrou pela água
a cidade deslizou
revirando raízes
toda a cidade abatia diante de nós
o amor é uma dissolução
XXXV
fi-la sorrir como uma bruxa
ouvi-a respirar
a intensidade aumentava
uma pausa
o ritmo decrescia
ponte entre a
inspiração e a expiração
deitar-me naquele fôlego
as estrelas cresciam no céu
cada vez mais Poe
fado profundo
um pato negro de sentinela
XXXVI
as nuvens enclausuravam a cidade
os ventos contrários ateavam a superfície
sobrava o meu corpo
resíduo da noite
marinheiro de chapéu
o leiteiro quebrou este limbo
os meninos encheram o parque infantil
a caixa de areia da noite
um cometa retangular
o corpo a enrolar-se
nos círculos de Kandinsky
com o cigarro na boca
com o mapa da existência mais
vazio
XXXVII
um pinguim das Galápagos
rematava as palavras
contra a escuridão
as cegonhas tinham desaparecido
um réptil sem cabeça
a olhar uma das suas cidades
aéreas
o menino ginete encheu-se de livros
fragmentos marcados a vermelho
"Gnaisse"
um tratado por revelar
XXXVIII
na carcaça do Fiat 600
cresceu um arbusto onde se rasgaram as memórias
o relógio da igreja permanece estático
um tempo que
pastoreia
o breviário da
voz
a incandescência
aquela parte da vida
arrebatamento
bastará espreitar pelo buraquinho da porta
os dois juntos
nalguma parte do mundo