sexta-feira, 24 de julho de 2020

ETERNA SAUDADE

Escolho sair agora, desta mesa elegante de restaurante fino, e tornar-te, assim, imortal. Não morrerás. Não incomodarei a tua viúva com os meus queixumes mal disfarçados. Não escreverei aquela crónica literária, sobre a tua triste morte, na revista conceituada da moda, a recolher aplausos do meu clube de fãs e o desinteresse costumeiro dos concidadãos. Não morrerás! Troco essa dor pelo suplício que agora abraço. Desejo-te uma longa eternidade, macia e leve. Na qual amanheças todos os dias para as razões que te impediram de estar à minha altura e me fizeram sair porta fora, discretamente, claro, depois de te ter permitido pagar o almoço caro em homenagem às convenções gerais. Viverás.

As pessoas são ilegais. Caminham escondidas e pela sombra, subindo e descendo colinas e escadas. Fugir é o seu destino. Sem papéis ou certidões. Os sentimentos são proibidos. Os laços de afecto são escrutinados pela sociedade. O Homem não inventou o quente e o frio mas descobriu a impossibilidade e o averbamento. Assim é o mundo em que vivemos e teremos de nos contentar com coisas pequenas, somos afinal, adultos. Consolos mínimos, em ocasiões. Palavras parcas, quase sempre.

Evitei a morte de uns tantos vivos pela minha vida fora. Não receberei essa notícia funesta, tornei-me imune a esses fins. Estou demasiado longe para que o eco do desaparecimento desses corpos me alcance. Estou a salvo dos braços negros cruzados no caixão. Das coroas de flores lívidas a debruar o defunto. Da paz soluçada que prenuncia a acção dos vermes. Poupo a água dessas lágrimas, eventualmente as terei já chorado por antecipação. Posso até recordá-los como figuras fantasmagóricas, mortos nunca.

Parece cruel, eu sei. É a vida, como se costuma dizer.

Uma vida de papel. Uma vida de silhuetas dançantes, de  mosaicos narrativos, de puzzles e patchwork. Tudo é ritmo, luz e escuridão. Simulação, jogos de espelhos, holofotes. A alma a secar por dentro. Medo anestesiado. Lexotans. Existência paliativa. Sem gritaria. Sem sangue. Sem pulso. Sem ondas. Sem feitiçarias.

Saudade eterna.


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