sexta-feira, 11 de setembro de 2015

QUANDO ACONTECEM COISAS MÁS ÀS PESSOAS BOAS




Um dia comprei um livro chamado “Já Não Sofro Por Amor” da Lucía Etxebarría, atraída talvez pelo sub-título: "um livro aspirina".
Sim, sou céptica em relação aos livros de auto-ajuda. Mas achei graça a autora estar a desmontar a farsa mesmo na capa, nas barbas do leitor. Logo achei que devia dar uma espreitadela. Gostei muito, principalmente por Lucía ser tão honesta quando à utilidade do seu livro. Este servirá tanto quanto uma aspirina numa dor de cabeça. Quem tem um problema grave na vida não vai encontrar a solução num livro.
Mas, de facto, a autora desmascara o Amor como grande Mito que prende as mulheres em relações insatisfatórias e muitas vezes indignas, o Amor como justificação romântica da dor. Quantas canções de amor , quantos filmes de amor não foram criados para manter as mulheres debaixo da rédea curta de um amor doloroso e de uma relação quantas vezes vexatória?
O livro aspirina pode não curar a maleita mas é um indício de que a solução definitiva da patologia é uma realidade. E por isso vale pena ser lido.


Se o livro da Lucía era o livro aspirina este “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas” poderia chamar-se livro tónico fortificante.


Este é um livro para as pessoas que colocam Deus no trono absoluto da omnipotência. E também para os que acham absurda a ideia de um Deus omnipotente perante a tragédia constante que acompanha a vida da Humanidade.


Desde cedo nos ensinam que Deus é todo poderoso, a Deus nada é impossível, dizem-nos. E que existe uma ligação directa entre as ofensas a Deus e os castigos recebidos como pagamento justo destas prevaricações.
Ao crescermos verificamos, não sem espanto, que a vida não se passa exactamente como nos prometeram. A lição mais dura, que se aprende, mais cedo ou mais tarde, é que a vida não é justa. Mas então porque é que Deus permite que aconteçam coisas más às boas pessoas? Esta é a pergunta que Harold Kushner se propõe responder neste “pequeno” livro.
É uma obra interessante, em primeiro lugar, porque o autor é rabino, um profissional da religião, numa pequena cidade americana, um homem que é chamado a consolar outros homens perante calamidades, nas horas trágicas e dolorosas e que está constantemente a ser confrontado com esta dúvida terrível sobre a bondade e a justiça divinas. Este é um autor que sabe do que nos fala, e dará uma resposta que vem de dentro da Igreja, neste caso judaica.
Em segundo lugar, porque Harold tem uma história de vida muito relevante para a matéria em questão. Teve um filho que nasceu com progéria, uma doença genética que se caracteriza por um envelhecimento precoce manifestado nos primeiros anos de vida. Há apenas 100 casos registados em todo o mundo até agora. Aaron, o filho de Harold morreu de velhice precoce aos 14 anos de idade, e este livro é dedicado à sua memória.
Portanto a ele, um homem devoto a Deus, sem pecados de assinalar, aconteceu a pior coisa que pode suceder a um pai: a morte de um filho em criança. Ainda por cima uma morte anunciada pouco tempo após o nascimento. Podia ter ficado à beira da descrença, no entanto conseguiu ultrapassar a sua crise de fé.
Onde terá ido procurar respostas para as dolorosas perguntas? À Bíblia, pois então, mais concretamente ao livro de Job.
E o que nos conta então a história de Job?
Job era um homem do melhor que podia haver. Temente a Deus. Cumpridor das suas leis, tudo. Como seria de esperar, a vida corria-lhe bem. Estava tudo certo. Mas eis que a páginas tantas a desgraça abate-se sobre ele. Morrem-lhe os filhos, morrem-lhe as filhas, incendeiam-se as colheitas e as casas., fica sem nada. Apesar disso aguenta estoicamente e diz: "o Senhor mo deu, o Senhor mo tirou".
Mas a desgraça não acaba aqui. Em breve é atacado pela doença, "(...)  uma lepra maligna, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. E Job pegou num caco de telha para se raspar com ele e ficava sentado sobre a cinza."
Neste ponto da história entram os amigos: " Três amigos de Job- Elifaz de Teman, Bildad de Chua e Sofar de Naamá ao saberem das desgraças que lhe tinham sucedido, partiram cada um da sua terra e combinaram juntar-se a fim de compartilharem a sua dor e o consolarem. E quando de longe levantaram os olhos, não o reconheceram; puseram-se então a chorar, rasgaram as suas vestes e espalharam pó sobre as suas cabeças. Ficaram sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande."
Mas claro, eles tinham vindo de longe para o consolar, e foi isso que iriam tentar fazer. Ora eles tentam dar um sentido ao tormento de Job, se ele sofre é porque Deus lhe viu alguma falha que merecesse castigo. 
Neste ponto Job revolta-se. Ele não vê razão nenhuma para ser punido por Deus, não fez nada de mal, está inocente. É uma pessoa boa à qual estão a acontecer coisas más, muito más. Os amigos de Job, de saúde intacta e com uma vida boa, não querem crer que aquela tortura toda não tenha uma razão de ser, uma lógica no mundo justo de Deus. Mas Job responde sempre reclamando a sua inocência. O livro de Job é este diálogo entre eles, páginas e páginas de vários debates em que o homem sofredor não reconhece a sua culpa, porque ela de facto não existe. O castigo é injusto.


Se Deus é omnipotente e Job é um homem justo não haveria qualquer razão para que sofresse tamanhos tormentos. Job afirma insistentemente que é um homem justo. Job é justo, diz aos amigos. E estes acham que tal não é possível pois Deus é omnipotente. Duas premissas totalmente incompatíveis.
Então Job, de consciência tranquila, dirige-se a Deus e pede a sua intervenção, se ele pecou que lhe indique os seus crimes.
Deus aparece mas não para apontar o que quer que seja a Job. Diz assim: " (...)Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? (...) Sabes quando nascem as crias das corças? Assististe ao parto das gazelas? Contaste os meses da sua gravidez e conheces o tempo do seu parto? (...)"
É um longo e belo poema, esta resposta de Deus a Job, vale a pena ir lê-lo na Bíblia.
O que Harold S. Kushner nos explica é que Deus quer que Job entenda que isto de criar o Mundo não é tarefa fácil. E que temos de concluir que Deus não é omnipotente. Quando acontecem coisas más às pessoas boas Deus não gosta, mas nada pode fazer para o evitar. Não se trata de um castigo. É simplesmente uma inevitabilidade. Se um homem cai de uma janela de parte a coluna no chão isso deve-se à Lei da Gravidade. Se Deus cancelasse a Lei da Gravidade de cada vez que um homem cai de uma janela, com a quantidade de homens a caírem de janelas, uns por vontade própria, outros por vontade alheia e outros por acaso, seria o caos absoluto no Universo. 
Portanto as Leis gerais foram feitas no início do Mundo e depois as coisas seguiram o seu curso.


Fiquei muito bem impressionada pelo modo claro com que o autor nos explica esta verdade tão importante: Deus não castiga, Deus não pode fazer qualquer milagre. Deus não pode evitar desgraças naturais ou sofrimentos causados pela mão do Homem. O Mundo é como é.
“esta é porventura a ideia filosófica chave para tudo o mais que proponho neste livro. Seremos capazes de aceitar a ideia de que algumas coisas acontecem sem razão, que existe uma certa casualidade no universo? Algumas pessoas não conseguem lidar com essa ideia....”
E se Deus oferecesse uma recompensa por cada boa acção praticada pelo Homem deixaria de haver espaço para a liberdade de fazermos o que é certo. Tudo seria resumido a uma jogo de interesses: faço isto para receber aquilo. Fazer o bem sem consequências, eis o verdadeiro sentido do livre arbítrio.
Harold Kushner fez-me ir à Bíblia ler o livro de Job e qual não é o meu espanto quando verifico que no início do mesmo existe um resumo explicativo que nos passa exactamente a mesma ideia:


"Em suma, neste livro recusa-se que a causalidade de todo o sofrimento deva ser atribuída, seja ao homem, seja a Deus. A ética e o ciclo da vida com os seus percursos naturais de sofrimento e morte são dois processos coexistentes, mas autónomos. Pretender misturá-los é simplista e inútil. A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as regras de equivalência que são normais em justiça distributiva. (...) A sua atitude básica perante o sofrimento não é de moral legalista, nem é pietista, nem expiacionista. É uma atitude de corajoso acolhimento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria. (…)


Kushner no resto do livro explica-nos como um Deus que não é omnipotente continua a ter um papel importante na vida do Homem.


Termino com mais uma citação do “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas”:




“ No fim do século XIX e início do século XX o francês Emile Durkheim foi um dos fundadores da sociologia. Neto de um rabino ortodoxo, Durkheim estava bastante interessado no papel que a sociedade desempenhava na conformação das perspectivas éticas e religiosas dos indivíduos. Passou anos nas ilhas dos Mares do Sul a estudar a religião dos povos primitivos nativos a fim de descobrir como era a religião antes de ser formalizada com livros de orações e clérigos profissionais. Em 1912 publicou o seu importante livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, que que sugeria que o principal objectivo da religião começara por ser, não o de pôr as pessoas em contacto com Deus, mas sim umas com as outras. Os rituais religiosos ensinavam as pessoas a partilhar com os seus vizinhos as experiências do nascimento e da morte, de jovens que se casavam de pais que morriam. Havia rituais de plantação e colheita, para o solstício de Inverno e para o equinócio de Verão. Dessa forma, a comunidade seria capaz de partilhar os momentos mais felizes e os momentos mais assustadores da vida. Ninguém tinha de os enfrentar sozinho.”








1 comentário:

  1. Quando a dicotomia bem e mal (bons e maus) mete Deus ao barulho, passe a ligeireza da expressão, prefiro passar...ao lado.

    ResponderEliminar