Um dia comprei um livro
chamado “Já Não Sofro Por Amor” da Lucía Etxebarría, atraída
talvez pelo sub-título: "um livro aspirina".
Sim, sou céptica em
relação aos livros de auto-ajuda. Mas achei graça a autora estar a
desmontar a farsa mesmo na capa, nas barbas do leitor. Logo achei que
devia dar uma espreitadela. Gostei muito, principalmente por Lucía
ser tão honesta quando à utilidade do seu livro. Este servirá
tanto quanto uma aspirina numa dor de cabeça. Quem tem um problema
grave na vida não vai encontrar a solução num livro.
Mas, de facto, a autora
desmascara o Amor como grande Mito que prende as mulheres em relações
insatisfatórias e muitas vezes indignas, o Amor como justificação
romântica da dor. Quantas canções de amor , quantos filmes de amor
não foram criados para manter as mulheres debaixo da rédea curta de
um amor doloroso e de uma relação quantas vezes vexatória?
O livro aspirina pode não
curar a maleita mas é um indício de que a solução definitiva da
patologia é uma realidade. E por isso vale pena ser lido.
Se o livro da Lucía era o
livro aspirina este “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas”
poderia chamar-se livro tónico fortificante.
Este é um livro para as
pessoas que colocam Deus no trono absoluto da omnipotência. E também
para os que acham absurda a ideia de um Deus omnipotente perante a
tragédia constante que acompanha a vida da Humanidade.
Desde cedo nos ensinam que
Deus é todo poderoso, a Deus nada é impossível, dizem-nos. E que
existe uma ligação directa entre as ofensas a Deus e os castigos
recebidos como pagamento justo destas prevaricações.
Ao crescermos verificamos,
não sem espanto, que a vida não se passa exactamente como nos
prometeram. A lição mais dura, que se aprende, mais cedo ou mais
tarde, é que a vida não é justa. Mas então porque é que Deus
permite que aconteçam coisas más às boas pessoas? Esta é a
pergunta que Harold Kushner se propõe responder neste “pequeno”
livro.
É uma obra interessante,
em primeiro lugar, porque o autor é rabino, um profissional da
religião, numa pequena cidade americana, um homem que é chamado a
consolar outros homens perante calamidades, nas horas trágicas e
dolorosas e que está constantemente a ser confrontado com esta
dúvida terrível sobre a bondade e a justiça divinas. Este é um
autor que sabe do que nos fala, e dará uma resposta que vem de
dentro da Igreja, neste caso judaica.
Em segundo lugar, porque
Harold tem uma história de vida muito relevante para a matéria em
questão. Teve um filho que nasceu com progéria, uma doença
genética que se caracteriza por um envelhecimento precoce
manifestado nos primeiros anos de vida. Há apenas 100 casos
registados em todo o mundo até agora. Aaron, o filho de Harold
morreu de velhice precoce aos 14 anos de idade, e este livro é
dedicado à sua memória.
Portanto a ele, um homem
devoto a Deus, sem pecados de assinalar, aconteceu a pior coisa que
pode suceder a um pai: a morte de um filho em criança. Ainda por
cima uma morte anunciada pouco tempo após o nascimento. Podia ter
ficado à beira da descrença, no entanto conseguiu ultrapassar a sua
crise de fé.
Onde terá ido procurar
respostas para as dolorosas perguntas? À Bíblia, pois então, mais
concretamente ao livro de Job.
E o que nos conta então a
história de Job?
Job era um homem do melhor
que podia haver. Temente a Deus. Cumpridor das suas leis, tudo. Como
seria de esperar, a vida corria-lhe bem. Estava tudo certo. Mas eis
que a páginas tantas a desgraça abate-se sobre ele. Morrem-lhe os
filhos, morrem-lhe as filhas, incendeiam-se as colheitas e as casas.,
fica sem nada. Apesar disso aguenta estoicamente e diz: "o
Senhor mo deu, o Senhor mo tirou".
Mas a desgraça não acaba
aqui. Em breve é atacado pela doença, "(...) uma lepra
maligna, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. E Job pegou
num caco de telha para se raspar com ele e ficava sentado sobre a
cinza."
Neste ponto da história
entram os amigos: " Três amigos de Job- Elifaz de Teman, Bildad
de Chua e Sofar de Naamá ao saberem das desgraças que lhe tinham
sucedido, partiram cada um da sua terra e combinaram juntar-se a fim
de compartilharem a sua dor e o consolarem. E quando de longe
levantaram os olhos, não o reconheceram; puseram-se então a chorar,
rasgaram as suas vestes e espalharam pó sobre as suas cabeças.
Ficaram sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem
lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande."
Mas claro, eles tinham
vindo de longe para o consolar, e foi isso que iriam tentar fazer.
Ora eles tentam dar um sentido ao tormento de Job, se ele sofre é
porque Deus lhe viu alguma falha que merecesse castigo.
Neste ponto Job
revolta-se. Ele não vê razão nenhuma para ser punido por Deus, não
fez nada de mal, está inocente. É uma pessoa boa à qual estão a
acontecer coisas más, muito más. Os amigos de Job, de saúde
intacta e com uma vida boa, não querem crer que aquela tortura toda
não tenha uma razão de ser, uma lógica no mundo justo de Deus. Mas
Job responde sempre reclamando a sua inocência. O livro de Job é
este diálogo entre eles, páginas e páginas de vários debates em
que o homem sofredor não reconhece a sua culpa, porque ela de facto
não existe. O castigo é injusto.
Se Deus é omnipotente e
Job é um homem justo não haveria qualquer razão para que sofresse
tamanhos tormentos. Job afirma insistentemente que é um homem justo.
Job é justo, diz aos amigos. E estes acham que tal não é possível
pois Deus é omnipotente. Duas premissas totalmente incompatíveis.
Então Job, de consciência
tranquila, dirige-se a Deus e pede a sua intervenção, se ele pecou
que lhe indique os seus crimes.
Deus aparece mas não para
apontar o que quer que seja a Job. Diz assim: " (...)Onde
estavas quando lancei os fundamentos da terra? (...) Sabes quando
nascem as crias das corças? Assististe ao parto das gazelas?
Contaste os meses da sua gravidez e conheces o tempo do seu parto?
(...)"
É um longo e belo poema,
esta resposta de Deus a Job, vale a pena ir lê-lo na Bíblia.
O que Harold S. Kushner
nos explica é que Deus quer que Job entenda que isto de criar o
Mundo não é tarefa fácil. E que temos de concluir que Deus não é
omnipotente. Quando acontecem coisas más às pessoas boas Deus não
gosta, mas nada pode fazer para o evitar. Não se trata de um
castigo. É simplesmente uma inevitabilidade. Se um homem cai de uma
janela de parte a coluna no chão isso deve-se à Lei da Gravidade.
Se Deus cancelasse a Lei da Gravidade de cada vez que um homem cai de
uma janela, com a quantidade de homens a caírem de janelas, uns por
vontade própria, outros por vontade alheia e outros por acaso, seria
o caos absoluto no Universo.
Portanto as Leis gerais
foram feitas no início do Mundo e depois as coisas seguiram o seu
curso.
Fiquei muito bem
impressionada pelo modo claro com que o autor nos explica esta
verdade tão importante: Deus não castiga, Deus não pode fazer
qualquer milagre. Deus não pode evitar desgraças naturais ou
sofrimentos causados pela mão do Homem. O Mundo é como é.
“esta é porventura a
ideia filosófica chave para tudo o mais que proponho neste livro.
Seremos capazes de aceitar a ideia de que algumas coisas acontecem
sem razão, que existe uma certa casualidade no universo? Algumas
pessoas não conseguem lidar com essa ideia....”
E se Deus oferecesse uma
recompensa por cada boa acção praticada pelo Homem deixaria de
haver espaço para a liberdade de fazermos o que é certo. Tudo seria
resumido a uma jogo de interesses: faço isto para receber aquilo.
Fazer o bem sem consequências, eis o verdadeiro sentido do livre
arbítrio.
Harold Kushner fez-me ir à
Bíblia ler o livro de Job e qual não é o meu espanto quando
verifico que no início do mesmo existe um resumo explicativo que nos
passa exactamente a mesma ideia:
"Em suma, neste livro
recusa-se que a causalidade de todo o sofrimento deva ser atribuída,
seja ao homem, seja a Deus. A ética e o ciclo da vida com os seus
percursos naturais de sofrimento e morte são dois processos
coexistentes, mas autónomos. Pretender misturá-los é simplista e
inútil. A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as
regras de equivalência que são normais em justiça distributiva.
(...) A sua atitude básica perante o sofrimento não é de moral
legalista, nem é pietista, nem expiacionista. É uma atitude de
corajoso acolhimento do real; é contemplativa e verificadora; é um
caminho de sabedoria. (…)
Kushner no resto do livro
explica-nos como um Deus que não é omnipotente continua a ter um
papel importante na vida do Homem.
Termino com mais uma
citação do “Quando Acontecem Coisas Más às Pessoas Boas”:
“ No fim do século XIX
e início do século XX o francês Emile Durkheim foi um dos
fundadores da sociologia. Neto de um rabino ortodoxo, Durkheim estava
bastante interessado no papel que a sociedade desempenhava na
conformação das perspectivas éticas e religiosas dos indivíduos.
Passou anos nas ilhas dos Mares do Sul a estudar a religião dos
povos primitivos nativos a fim de descobrir como era a religião
antes de ser formalizada com livros de orações e clérigos
profissionais. Em 1912 publicou o seu importante livro As Formas
Elementares da Vida Religiosa, que que sugeria que o principal
objectivo da religião começara por ser, não o de pôr as pessoas
em contacto com Deus, mas sim umas com as outras. Os rituais
religiosos ensinavam as pessoas a partilhar com os seus vizinhos as
experiências do nascimento e da morte, de jovens que se casavam de
pais que morriam. Havia rituais de plantação e colheita, para o
solstício de Inverno e para o equinócio de Verão. Dessa forma, a
comunidade seria capaz de partilhar os momentos mais felizes e os
momentos mais assustadores da vida. Ninguém tinha de os enfrentar
sozinho.”