terça-feira, 24 de abril de 2018

Amor sem Carne




Balões de luz lançados aos deuses, na Tailândia


seres de luz
queríamos ser
balões de luz
só bom senso
ninguém nos fez
essa vontade
outras nos deu
deus ou deuses
que sabemos nós
que queremos nós
só bom senso
renegamos o corpo
damo-nos ao trabalho
de matar pelo alimento
mas à mesma à mingua
vamos caindo sempre
pela calada da estrada
com medo da fome
e da sua oposição
balões com alma
sensíveis
subindo sempre
queríamos ser
sem peso sem lastro
como se houvesse opção
de costas para o corpo
os deuses riem-se
amaldiçoando o espelho
quebranto como preferência
vigor como alternativa
esse será o único livre
arbítrio ou censura
quem quiser que escolha
o seu amor sem carne












quarta-feira, 18 de abril de 2018

Cólicas e melancolia

A Valsa, Camille Claudel



caixinha de música
com bailarina presa
um mecanismo metálico
se os foles incham
os dentes pisam as notas
abrindo as válvulas
à melancolia
crescem cólicas
direitas ao clímax
bronze a varrer
a música
mil metáforas
altamente absorventes 
são lixo debaixo
do tapete secreto
bailarina presa
às voltas cegas
braços parados
em concha
órgãos portáteis
de rodar a manivela
os tubos do órgão
pequeno realejo
escorrendo melancolia
prontamente socorrida
por mil metáforas
poderosas e abstinentes
cólicas que se travam
como cigarros falsos
de chocolate negro








sexta-feira, 13 de abril de 2018

A Montanha Mágica






Agora serás o imberbe rapaz
Durante três meses
Subirás a Montanha Mágica
A tentar subjugar o Tempo
Se te parecer extenso será extenso
Se te parecer breve será breve
Na realidade domarás o Tempo
Durante sete anos
 Ó filho traquina da vida
Uma enfermeira muda
o Tempo
Coluna de mercúrio sem escala
Para os que pensam fazer batota
Na Montanha Mágica 
Nenhum clarim inaugura o novo ano
Somos nós que lançamos foguetes 
 Repicando os sinos
Na passagem do século
Agora serás o homem-que-só-sabe-esperar
 Um comilão de massas temporais
Deglutindo o Tempo
O rapaz que se liberta 
Da vida pequenina na planície
  Um Antes feito de engenharia naval
E ascende Agora à Montanha Mágica 
 Implodindo o Tempo
Repousando embrulhado 
Nas mantas de camelos
Descobrindo o Mundo
Reinando na neve
Dando de caras com o Amor
Nas barbas dos juízes do Inferno
Benditas as teias mágicas
Dos olhos tártaros de uma mulher








quinta-feira, 12 de abril de 2018

hamurabi




hamurabi
o dente por dente
a língua pela língua
o olho por olho
a pele colando a pele
o lábio lambendo o lábio
rigoroso hamurabi
o dente por dente
a verdade a vir à tona
a saliva selando a saliva
o olho por olho
cego e doce hamurabi
o abel dente no dente caim  
o sexo afogado no sexo
a desforra a consumar-se
o quente queimando o quente
o molhado chovendo no molhado
cândido hamurabi
o olho arreganhado no olho
o dente aberto no dente
a verdade emergindo do poço
a saliva enrolando a saliva 
o sexo serrando o sexo
a vingança a estalar
grande justiceiro
hamurabi meu amor

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Corvos tontos

Seara com Corvos, Vicent Van Gohg (versão Luciano Duarte)



esses corvos tontos
de fraca bússola
perdidos nos vasos
tempestades no corpo
de pescoço partido
aos magotes
contra as paredes
do tórax
os tontos corvos
temperamentais
desorientados
de bússola estilhaçada
no chão do tronco
tontos
corvos em corso
chovem contra
a carne dilacerada
tentam escapar
acusam a fatalidade
do cárcere
toscos
tantos em volta
busca
desesperada pelo centro
magnético da terra
prisioneiros do corpo
tontos
quase mortos
os corvos















sábado, 31 de março de 2018

Mulher (i)movél

Profonde Pensée, de Camille Claudel


Mulher (i)móvel
tábua rasa
pronta a usar
onde repousa 
a mulher miniatura
sentadas duas
criaturas excêntricas
fora de esquadria
numa dupla aliança
esperam ordens
superiores do verdugo
que as manipula


Mulher aparador
onde circula conversa
de volta à partida
ponto por pequeno ponto
no nome
da mulher abreviatura
pousam nelas
metálicas avionetas
e o berlinde abafador
brinquedos do verdugo
que lhes há-de infligir
um iníquo silêncio



Mulher estatueta
o contrário da fotografia
na poltrona em frente
uma bacante em delírio
desafiadora
da mulher fotocópia
duas presas no cativeiro
de incapacidade
fruto do ventre
um tição
esse verdugo
que as irá despejar
despidas
na torrente
qual pluma ao vento










sábado, 24 de março de 2018

alerta carta

Encontro no Espaço, Edvard Munch



quando te oferecer
uma carta
desconfia
fica alerta
estarei bêbada certamente
caída em vão de escada 
possuída por algum
alienígena transviado
tu não és recebedor de banalidades
rodriguinhos delico-doces
merdas para abafar a melancolia
distrações
palavras mascadas
entre dentes
na boca de mil povos
extintos ou contemporâneos
as tagarelices e tretas do costume
mosto da solidão
fermentada
fruto do esforço
da marcha parada
de muitos pés
apenas te darei
um ou outro
poema de raiva
poema de vingança
bofetão metafórico
(aguenta aguenta)
ou alguma daquelas cambalhotas
monumentais
das que me arrancam
lágrimas de alegria profunda
e gargalhadas
palavras p'ra quê?

e tudo por dizer