quarta-feira, 14 de março de 2018

Coletânea de ridículos

Medo de morrer não sei se tenho, não me aflige muito, pelo menos. Mas há uma coisa que me atormenta: dizem que no momento final passam imagens da nossa vida como um pequeno filme, um vídeo dos melhores momentos, parece. Ora com a sorte que eu tenho, e se a coletânea de imagens minhas for a dos momentos de ridículo? Como uma espécie de anti colecção de beijos do Cinema Paraíso: todos os momentos de humilhação que passei na vida. Seria épico mas em mau.

Florescentes




Os homens florescentes
da Câmara Municipal
debaixo de chuva densa
vêm recolher o cadáver inútil
de um pinheiro bravo
As amigas rasteiras ralham  rabujam
nervosas contra a ventania mouca
minadas de cansaço ou caruncho
de ambos talvez
a revolta fala mais alto
do que as raquíticas copas
fustigadas pelos elementos
tentam em vão ripostar
protestos de ramos e raízes
não baixarão os braços

Os homens de plástico
com moto-serras eliminam
as sobreviventes
agitam-se as trombas de água
os ares e as árvores rasteiras
não foi sem uma pequeníssima luta
que se deixaram vencer
pelas moto-serras municipais.
nem tão pouco sem sede de vingança

terça-feira, 13 de março de 2018

Lady Girl

Mulher sentada, em roupa interior, por Egon Schiele


Tomas-me (suavemente)
a ponta dos dedos
(entretanto dirigidos ao chão)
como auxílio ao impulso
das pernas
uma antes da outra
na saída do armário
rumo à claridade do dia


A luz solar
salpica os beijos
uma segunda língua
saltitando como uma aia
confidente e fiel
que se alegra
a nosso favor

Em breve
ao entrar a noite súbita
regressarei ao fundo
seco e secreto do móvel
despida de glamour
pelo meu próprio pé

sexta-feira, 2 de março de 2018

Dias de Tempestade


Mulher-vampiro, Edvard Munch


rara a semana
que não acabe
em avalanche
o ruído antecede
a derrocada
aviso para a fuga
impossível
o corpo congela
o mundo deixa-se cair
sobre a cabeça
a luz branca
a esclarecer tudo
num momento
uma vista
sobre o futuro

tal como o cão
que se cura
com o pelo do cão
a queda por dentro
é  sutura retendo
a montanha
que tenta desembocar
esmaga e desmonta

o corpo congela
e endurece
como um fel quente
que se oferece
para amenizar
o epiléptico

dizem que há
um género
de demónio
que só o jejum
há-de expulsar

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Poema Suiço



Um poema versátil
resistente um canivete
suiço em aço
seguro luz
na dupla face
ferramenta ideal
amuleto de exércitos
ou singulares
aventureiros
decorativo icónico
quando original

Um poema incisivo
punhalada ao centro
para entrar o ar
se uma bala engasga
a garganta
a boa intenção
toda gente aguenta 
depois de fervura
chuva de canivetes
é brinde de cirurgiões
amuleto
luz na dupla face


Um poema penetrante
abre vinhos
salva-vidas relíquia
de família ajudando
nos partos das jumentas
parte o vidro
de emergência
para a fuga
lâmina grande
lâmina pequena
luz na dupla face
mil funções contra
fome e sede
amuleto
dos pés as farpas









sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

ouvido (in)terno


horse-whisper, phippen.k


a distância é combustível
nas galés do martelo
sussurram-se nos ossículos
das depravadas miúdas
todo um discurso interno
em prantos de convicção dúbia
havendo uma propensão especial
para o vício
o som que acicata o bicho
o tiro esconso do cavalo
é perigo de queda iminente



sempre há quem pratique a carne



a bigorna vai retorcida
quando a distância é combustível
a espora é um estribo esquerdo
elevado à sétima potência do animal
impulso corrupto para domesticação
nas competições de lida
espreito de esguelha ao postigo
distingo o frapê e a potagem
os dois a dessedentar
em braço de ferro e prata
durante o adestramento
obedece-se ao comando
do cavaleiro
por perigo de queda iminente
medo que o animal empine
ou dispare veloz
num galope



quando a distância é combustível
para quem pratica a carne
o corpo é combustão
e a queda iminente

















































domingo, 4 de fevereiro de 2018