quarta-feira, 13 de abril de 2022

Baixinho

Speak Low:
espectáculo da companhia de Wim Vandekeybus



Para lá da janela, uma lágrima branca vem escorrendo das nuvens: um rasto de avião que desce à terra. É a maneira que o céu tem de chorar num dia luminoso e ameno de inverno.

A rapariga acordou há pouco e lembra-se que faz  um mês que o homem desapareceu. E com ele quase todos os vestígios da sua presença.

"Fala-me baixinho, querido, fala-me baixinho, os nossos dias de verão foram murchando cedo demais."

As suas palavras já não a inundam, diariamente, por todas as frentes: cartas, mensagens, publicações, telefonemas, ou presencialmente sob a forma de monólogos, discursos e até sermões. 

Agora, todos os sinais se apagaram. Impera o silêncio no quarto. O planisfério na parede em frente à cama é um mundo sem som. O exército de palavras bateu em retirada, derrotado.

A rapariga recorda um tempo de prazer, oferecido pela  sonoridade das frases curtas sussurradas ao ouvido na cama.

A voz do homem, uma voz de peito, densa e encorpada, ampliava-lhe o desejo até ao arrebatamento final.

Um dia, por um qualquer motivo obscuro, os ouvidos não lhe devolveram a sensação de calor daquela voz redonda e escura. Estava surda para o ruído desse amor. Quebrara-se o encanto.

"Fala-me baixinho, o nosso momento vai deslizando veloz, como barcos à deriva somos varridos tão depressa."

Uma legião de cartas lhe enviou então, o homem apanhado de surpresa, tentando resgatar o feitiço.

A rapariga resistia a ler as epístolas.

Longas missivas de parágrafos fortes e imponentes como montanhas vinham em auxílio dos vocábulos orais,  irmãos do efeito acústico gorado. Ondas de texto atacando por vagas, sonhando provocar na imaginação dela o simulacro hipnótico dos murmúrios amorosos. 

Tinta gasta em vão. 

 A destinatária desistia de descodificar os signos suplentes. A escrita não foi capaz de excitar como as palavras aladas.  Pequenas pombas de ar que voavam do ouvido ao seu refúgio secreto.

"O tempo é tão velho e o amor tão breve. O amor é ouro puro e o tempo é um ladrão"

Ficava a olhar aquelas compactas muralhas de texto, apreciando-lhes a consistência sólida, a robustez, a tenacidade. Imaginava pequenas brechas nesses sólidos muros, construídos vocábulo a vocábulo como tijolos destemidos, teimosos. Desconfiava que haveria de existir um ponto fraco naquela construção magnífica por onde a estrutura  começaria a ceder desamparada, até sucumbir no chão.

Adiava a implosão, a leitura, a confirmação do fim.

" Estamos a ficar para trás, querido. A cortina desce e tudo acaba depressa demais. Baixinho, fala-me baixinho."

Faz hoje um mês que o homem desapareceu a seu pedido,  a rapariga prepara-se para conhecer a primeira carta.

O dia abriu um sorriso de finos cirros. A rapariga desiste da leitura, deixa o quarto, vai em busca da resposta a uma última pergunta. 





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