sábado, 30 de dezembro de 2017
Poema Penso-rápido
Seja por divertimento
por sorte ou condenação
dói de igual modo
o pacto de sangue
esse vinho tonto
derramando o drama
nos indicadores colados
das duas criancinhas delambidas
e mordiscadoras
dói como carne
interrompida
urge o curativo sério
no imediato, no entanto,
cada um vai sacar do seu bolso
um poema penso-rápido
estacando o sonho
na cabeça do dedo
latejante,
um dói-dói
no fim da linha
do seu verso
adiando a sutura definitiva
que virá, talvez, depois
por sorte
por divertimento
por ironia
ou convicção contracorrente
quinta-feira, 28 de dezembro de 2017
Farol
Farol da Marca da Mama, Carnaxide |
uma centelha intermitente
numa volta completa
em torno do maior eixo
um flash de sinais codificados
em amplitude modulada
o farol guia
guina-me o flanco
contra as rochas
dão à costa
as minhas pernas
ele entre elas
num silêncio
ondulante
faça-se uma ilha de luz
cercada de trevas
por todos os lados
ou tudo me faltará
o ar a água o faro
no calaboiço uma craca
a crescer por dentro
numa interrogação
proibida
um Farol é uma passagem
para a mesma margem
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
Kombucha
Uma bruxa
é uma ferida
aberta há dias
um excesso
de metáforas
põe o dedo
na mazela
um empurrão
para a fogueira
a arder
Uma bruxa
é invasora
convidada a entrar
na casa em estado
livre e breve
se agarra
ao tecto
como um bolor
e alastra cálido
Uma bruxa
pode até ser
uma kombucha
retrai-se
se tocada
sem cautela
não sendo
um animal
nas feridas abertas
é tal e qual
Uma bruxa
é um veneno
involuntário
ninguém deseja
beber ou cheirar
perímetro
de segurança
um excesso
de metáforas
poderá até salvar
Uma bruxa
é carne
para canhão
ateando o lume
quando há visitas
festas e juras
de serem as feridas
abertas
o melhor carvão
o condimento
Uma bruxa
é uma despedida
anunciada
uma morte
ao virar da esquina
talvez por alergia
um excesso
de metáforas
também não passa
de um bolor
cálido afinal
quinta-feira, 14 de dezembro de 2017
de tempos a tempos
The Walk, filme de 2015 |
recordo agora o nome
de uma rua
que repousava num tempo
em final de época
quando para surpresa de todos
o que era conhecido
se tornou estrangeiro
e o que era estranho
se encontrou familiar
o que era próximo
se tornou longínquo
e o que estava afastado
se tornou íntimo
o que se sentia chegado
se voltou misterioso
e o que se imaginava
quase alienígena
virou gémeo
nesse revoltoso tempo
o que era angular
ficou redondo
o antes trocou de lugar
com o depois
o primeiro com o segundo
o último com o seu antecessor
uma reviravolta matemática
de maré em quebra ciclo
uma bolha que rebenta
e não rebenta
um suster de respiração
uma batida falhada
pausa suspensa e presa
uma gotícula de um milagre
lembrei-me também da mão
que fecha o dique
a mesma travando a boca
já doca seca
não vem de cima
nem de baixo
nem do meio
mas da profunda natureza
de todas as coisas
em precário equilíbrio
e ameaça com um final
de tempos que antecedem
outros de recomeço
sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
Farpa do lar
em casa
sento-me no sofá
observando os passos
que daria fazendo a lida
se fosse fada deste lar
olho as tralhas pelo chão
como quem fuma um cigarro
e o fumaria displicente
se fumasse
antes levo à boca uma farpa
que é a lembrança da tua língua
na minha língua castigando-me
por ser uma imagem sem corpo
vejo-me então brincando
aos pais e às mães
às voltas com os trabalhos
domésticos aspirando
o pó para de baixo do tapete
do rato do computador
faço a cama aos sonhos
cozinhando uma sopa de letras
estendo o puzzle das meias
verdades a cozer ao sol
limpo o forno de lenha
onde a tua ausência assa
esse pão nosso sem nós
manteiga ou ilusão
se querem mesmo saber
senhores o certo
é que se acabou
o sal
e o meu papel
higiénico
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Rapsódia
o poeta vive na rapsódia
e no baixo cima baixo cima
baixo da guitarra
vim encontrar
a palavra incêndio
mas não um incêndio vulgar
dos que queimam e deixam
tudo negro à saída
um incêndio que larga
pontos de luz depois
das chamas
e não gasta o ar respirável
antes o reproduz
e de tantos poetas que há
uns tombados pelo tempo
outros pelo chão voluntários
em cinzas boiando
escolhe-se de meia dúzia
que vive numa melodia
imprópria
para consumo privado
o único que haverá
de nos fazer atravessar
a cidade
de uma ponta à outra
por um compasso
de espera e esperança
até deixar de nos doer
os pés e a alegria
de um hino
terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Aniversário
Um adeus é um espelho estilhaçado
no chão
migalhas de uma enorme recusa
que se reproduziu
por geração espontânea
entrou a pés juntos
e foi expelida pelo organismo
como uma maré baixa
mil pontos negros
a descoberto
O último pedaço entra na pá
por intermédio
da prestimosa vassoura
a contragosto pensa
o que faço aqui
depois do adeus
e dos trezentos
e quarenta e cinco
bocados de ruína
já enterrados no lixo
agora que tudo se perdeu
Uma sobra temerária
encontrada meses depois
debaixo de um móvel
esquecida
um pedaço de um adeus
um negativo por revelar
destroço de uma memória
futura
esquecida na máquina
de viagens no tempo
avariada
O último grão de areia
na grande engrenagem
o derradeiro eco
da sequência maldita
a punir o ouvido derrotado
um pequeno nada
do qual nenhuma vida
foi feita
embora hoje seja dia
de aniversário
e por isso apenas
e como resquício de um adeus
obsoleto
os meus Parabéns
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
Matimar
Lembro-me
como se tivesse
alguma vez assistido
ao dia-a-dia no grande armazém
de revenda
os soutiens de copas
extra generosas
as cintas xxl
das mulheres roliças
à antiga portuguesa
as larachas entre colegas
as toneladas de tecido
o contar dos tostões no final do mês
dia de salário
Lembro-me com a memória possível
a quem ouviu os relatos
vezes sem conta
e visitou verdadeiramente
o escritório principal
uma única vez
uma fotografia fosca
de uma cabeleira
preta e espessa
e a certeza da amabilidade
sem mácula
nos lábios
Um homem singular
chamado Joaquim Matias
quando me levaste
a conhecer o teu ex-patrão
e patrono
Sr. Matias
um homem bom
que não foi recompensado
em vida
porque se compensações
houvesse
não existiriam homens bons
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