sábado, 13 de junho de 2015

O Encantador de Memórias


Chegara antes da hora marcada. Depois de um bom bocado sentada no café da esquina esperava agora na rua em frente pelas duas da tarde.
Não trazia relógio. De modo que não encontrava outro remédio senão retirar, a intervalos de tempo tão regulares quanto lhe era possível, o telemóvel da mala para ver quanto faltava. Estava nisto há quarenta e três minutos e já conseguia manter uma constância de três ou quatro desde os últimos dez. Estava quase. Quando chegou o momento faltaram-lhe as forças. Sentia fugir-lhe a coragem. Para quê? Por quê? O que pretendia com aquele encontro?
Não era tão óbvio quanto poderia parecer à primeira vista mas, por teimosia ou para não dar parte de fraca, obrigou-se a ir até à entrada do prédio. Ouviu um zunido abafado ao premir a campainha do terceiro andar direito. O trinco soltou um estalido e a porta abriu. Era pesada, de madeira, e só com esforço, mais por nervos do que por falta de músculo, a empurrou para entrar. Subiu os lances de escadas devagar. No patamar podia ver que a porta do apartamento estava entreaberta. Aproximou-se e não viu ninguém à sua espera. Bateu com os nós dos dedos suavemente. O som saiu a medo e logo se ouviu: “entre!”
Caminhou por um corredor longo no qual contou quatro portas de cada lado fechadas. Ao fundo, conseguia ver luz natural que se propagava tanto do compartimento da esquerda como do da direita. Mas antes que tivesse de adivinhar a direcção que teria de tomar, o homem assomou-se à entrada do lado esquerdo.
- Como está? - estendeu-lhe a mão sorrindo ligeiramente sem perder o seu ar grave.
- Muito obrigada por me receber.
- Ora essa, eu é que agradeço. Sente-se.
Era uma espécie de escritório ou sala de estar com muitos livros. Estantes escuras e pesadas preenchiam quase todas as paredes. Junto à janela estava uma secretária. E havia um sofá comprido em frente de um relógio de pêndulo pendurado na parede. O som da cadência dos segundos era bem audível.
O homem ofereceu-lhe um lugar na ponta do sofá e sentou-se num cadeirão de verga em frente a ela, por baixo do relógio de pêndulo, com o tique-taque metálico quase a servir-lhe de chapéu.
- Sente-se confortável? - perguntou com uma simpatia tímida na voz.
- Sim, sim, estou bem - mentiu ela delicadamente.
- Não se preocupe. Daqui a nada vai sentir-se mais à-vontade. É tudo uma questão de hábito. O que mais custa é começar.
Ela olhava-o com admiração. Estudava-lhe as feições. Os olhos pequenos e encovados de um azul acinzentado que lhe trazia uma tristeza quase dolorosa ao semblante, eram emoldurados por umas olheiras fundas e trágicas. O cabelo de um loiro sombrio era comprido mas escasso. E a barba, uma pêra bem aparada, deixava adivinhar um tom mais claro que o do cabelo. Não era bonito mas exercia sobre ela uma estranha atracção.
- Quer que comece? - Perguntou-lhe hesitante.
- Quando quiser. Quando se sentir à vontade - respondeu ele, tranquilizador.
- É o que diz: o que mais custa é começar. Mais vale começar de imediato:

Ele era um misto quase impossível de elegância e rusticidade. Muito mais velho que eu. Creio até que poderia ter idade para ser meu pai. Tinha uns olhos azuis muito claros, muito vivos e umas rugas ternas aos cantos dos olhos e da boca. Exibia auto-confiança. E, no entanto, dava sinais inequívocos e pungentes de desamparo. Ele era meu mestre. Mas em pouco tempo comecei a sentir uma pulsão irresistível em ir em seu auxílio. Comecei a sonhar com ele, a ter pesadelos em que ele caía de um precipício gritando o meu nome. Acordava com a sensação de ter sido eu a cair. E passava o resto dos dias inquieta, com a vaga noção de que teria de tomar uma resolução que me tirasse daquele estado.
Um dia, o pesadelo foi particularmente aterrorizador ao ponto de ter empapado os lençóis com suor. Tornou-se nesse momento claro que seria a sua intérprete. A pessoa que ofereceria ao mundo a sabedoria dos seus pensamentos codificados.
Ele era um grande professor. Um grande anatomista. Que se tornou também, um pouco por acaso, num grande artista plástico.
A universidade era, considerando o panorama das universidades a nível mundial, no mínimo, obscura. Mas por um acaso do destino, os seus desenhos, no quadro, a giz, durante as aulas de anatomia para os alunos do 2º ano de medicina, com as duas mãos ao mesmo tempo, foram filmados e divulgadas na Internet.
Na outra ponta do mundo, um outro anatomista, desta vez de Harvard, deu com o vídeo e achou que estava a ver a reencarnação de Andreas Vesalius, o pai da Anatomia do século XVI. Havia a semelhança física inegável, mas sobretudo havia a paixão que transparecia nas imagens. Ficou famoso depois de uma exposição de arte em Boston. A filigrana de nervos ou de vasos sanguíneos dos seus desenhos do corpo humano desenhado num quadro preto, com as duas mãos em simultâneo percorreram o mundo.
Tão ou mais bizarra que a sua maneira de desenhar era a sua condição linguística. Em relação a questões científicas, o discurso era perfeitamente normal. Mas em relação à vida do dia-a-dia, a sua linguagem era tudo menos comum. Não falava um idioma normal. Expressava-se utilizando nomes próprios apenas. A comunicação com as pessoas tornava-se praticamente impossível. O que, de certo modo, ampliou o interesse do público pela personagem.
Foi então que apareci. Era sua assistente há pouco mais de meio ano quando decidi decifrar o seu código de linguagem. Foi um salto de fé considerar que havia um código de linguagem num discurso aparentemente desconexo constituído por listas de nomes próprios, quase exclusivamente de mulheres.
Mas estava determinada. Pensava que só assim poderia acabar com os pesadelos.
Demorou-me seis meses a decifrar o código. Obedecia a uma lógica enviesada e pouco clara. Havia palavras que se obtinham facilmente por junção das iniciais do nomes próprios pronunciados. Por exemplo: Um simples “bom dia” era “Balbina-Olga-Maria-Dina-Isabel-Andreia”. Uma das frases que dizia sempre de manhã, quando nos encontrávamos ao pequeno-almoço.
Mas havia outras frases que a letra-chave era a segunda. Outras a terceira e ainda outras em que a posição da letra-chave alterava-se do primeiro nome de mulher para o segundo.
Depois havia ainda as frases em que apareciam os nomes de homem. Geralmente isso indicava um sentimento de frustração ou raiva. Mas como era uma pessoa calma estas eram frases raras e por isso mais difíceis de decifrar.
Tornei-me quase tão célebre quanto ele. Pelo menos no meio académico. Publiquei um considerável número de artigos nas revistas de referência das mais variadas áreas, desde a neurologia, da terapia da fala e principalmente de criptologia onde alcancei um estatuto considerável.
Não foi fácil conquistar a confiança daquele homem extravagante e macambúzio. Passava semanas sem dizer mais do que duas ou três frases por dia. Mas, por vezes, ao olhar para mim mais demoradamente, conseguia antever uma solidão feroz, uma tristeza dolorida. Então sentava-me junto dele e pegava-lhe na mão. Ficávamos horas de mãos dadas sem dizer palavra. Eu sem dizer palavra. Ele sem dizer nome. E assim com o passar dos meses fomos ficando mais íntimos, até me tornar sua amante.
Foram tempos de grandes convulsões emocionais. Por um lado, estava a viver uma relação fisicamente muito intensa. Por outro lado, o problema de linguagem do homem trazia entraves sérios à nossa paixão.
Não era fácil, no acto do amor, ouvir nomes de mulheres e manter uma total abstracção. Acabei por lhe pedir que permanecesse em silêncio enquanto me beijava, enquanto percorria o meu corpo com a boca, enquanto me tomava nos braços e me penetrava. Ele concordava, cheio de compreensão. Mas no momento do êxtase perdia o controle e tinha de falar: “Sílvia!... Sílvia!... Sílvia!... Sílvia-Ivete-Madalena!
Era sempre a mesma sequência de nomes. Onde os outros homens diziam “sim”, ele chamava a Sílvia, a Ivete e a Madalena. Claro que isso roubava-me a concentração impedindo-me de atingir o prazer completo. Pensei que bastaria ter paciência que a frase entraria na nossa rotina e deixaria de me causar problemas mas foi exactamente o contrário.
Ao fim de uns meses valentes de Sílvias, Ivetes e Madalenas comecei a sentir um desconforto inquietante. Era a Sílvia que me causava mais irritação. Imaginava que aquele nome, naquele momento tão crucial, teria de significar qualquer coisa mais, não podia ser por acaso, não podia ser só o vocábulo de onde se podia retirar a letra s de “sim”. Se assim fosse porque não teria escolhido Sofia, Sónia, Selma, Sabina, sei lá, qualquer outro nome?
Tentei investigar, inquirir discretamente sobre o seu passado amoroso. Em vão. Quando sentia a minha curiosidade, a minha desconfiança, usava os nomes masculinos muito difíceis de decifrar e era com esforço que acabava por perceber que me dizia ser eu a única mulher da sua vida. Coisa que, obviamente, eu não acreditava. Contratei, a certa altura, um investigador particular, para deslindar as suas origens. Foi tarefa árdua, pois o homem tinha vindo das ex-colónias. Dei por mim a imaginar uma Sílvia africana. E nada de concreto se concluiu.
Ele compadeceu-se do meu sofrimento. Prometeu controlar os devaneios verbais no momento do clímax mas era tão grande o seu esforço que a expressão facial de masséteres contraídos acabava por me distrair do desejo. Mesmo de luz apagada eram os sons abafados que fazia na tentativa de não falar que me diziam que as Silvias queriam sair, que ainda lá estavam.
Assim fui vivendo em permanente estado de insatisfação.
A nossa vida social, no entanto ia de vento em popa. Éramos convidados para os mais diversos eventos. Inaugurações de exposições, peças de teatro, palestras de conferencistas estrangeiros de todas as áreas científicas, enfim, estávamos em todo o lado.
Havia sempre um interesse desmesurado em ouvir o professor falar e saber, através da minha pessoa, o que queria ele dizer com aquele chorrilho de nomes de mulheres. Era uma ave rara que todos queriam ver ao vivo e a cores. E no entanto, tirando as palestras sobre Anatomia e as suas aulas para o curso de Medicina, ocasiões em que falava português comum, tudo o que dizia no seu idioma fabricado ou inato, coisa que estava ainda por determinar e era alvo de muitas teorias, não passava de frases corriqueiras: “foi uma palestra muito interessante”. Que neste caso soava como um rebuscado desfilar de nomes: Fernanda-Olga-Isabel Núria-América-Natércia Paula-Adélia-Luísa-Eva-Sofia-Teresa-Rita-Alexandra Amanda-Dulce-Micaela-Itelvina-Joana Ilda-Nlema-Tânia-Elsa-Rosa-Ema-Simone-Susana-Alberta-Nádia-Telma-Eunice. Era uma frase em que alternadamente interessava a primeira letra e a segunda das cinco sequências de nomes. Tornou-se para mim numa frase batida. O que acaba por facilitar em boa medida o meu trabalho.
Pensava em sexo o tempo todo. Ele sentia-se lisonjeado por ser tão requisitado por mim. Não lhe passava pela cabeça que isso seria fruto de uma problema latente. Era demasiado ingénuo para o perceber. Ou demasiado indiferente.
Com o tempo, o meu corpo acabou por entender que não adiantava continuar a investir naquela relação e deixei, involuntariamente, de ter interesse físico nele. Habituado como estava a não ter de me procurar, por preguiça ou por orgulho tentou aguentar-se por sua conta. Até que finalmente a meio da noite após muitas horas revirando-se na cama sem conseguir dormir com a excitação, abraçou-me bruscamente sussurrando: “Patrícia-Olga-Rita Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda, Patrícia-Olga-Rita Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda!”
Eu cedi, comovida, contente por saber que lhe dava prazer e alívio. E durante mais um par de semanas ele permaneceu no seu canto tentando incomodar-me o menos possível. Até chegar ao limite da sua resistência de saudade pelo meu corpo. Esta passou a ser a nossa rotina sexual. Mas sempre, sempre com as Sílvias finais, vocalizadas ou por vocalizar. Nunca esquecidas nem aceites por mim.
O que nos aguentou tanto tempo juntos foram os cavalos. Todas as tardes passeávamos com os cavalos. Ele montado no seu Lusitano de cor tordilha e eu com a minha égua de Sorraia pela guia. Desculpava-me com as vertigens para não montar. No fundo o que não gostava era da sensação de dominância em relação ao animal. Preferia fazer de conta que a égua era simplesmente um cão de grande porte que me acompanhava. Já ele, sentia-se um monarca inglês em cima do magnífico equino, pronto para conquistar o mundo.
Eram tardes tranquilas. Ficava sentada a vê-lo galopar ao longe, agarrada às pernas flectidas, de cabeça repousada de lado nos joelhos. A égua, por vezes pressentindo-me triste, vinha mordiscar-me delicadamente a face como que a consolar-me do desgosto. Naqueles momentos considerava que a vida era boa, nem tudo eram bizarrias e complicações. O mundo também tinha lugares serenos e tranquilizadores.
Uma noite, num jantar de gala, na tomada de posse do novo governo municipal, alguém perguntou ao professor o que pensava sobre a problemática do terrorismo. Vinha isto a propósito do ataque ao World Trade Center e todos estávamos ainda em estado de choque com os acontecimentos Fez-se silêncio para que se ouvisse o excêntrico sábio. Seguiu-se um chorrilho de nomes próprios femininos como seria de esperar e de seguida já as cabeças todas apontavam para mim. Traduzi espontaneamente, já nem precisava de pensar muito tal era a minha prática: “o gato das botas é muito meu amigo!”
Foi a estupefacção geral. Não maior do que a minha pois tinha a certeza de que não me havia enganado. Virei-me implorando o seu auxílio mas para meu espanto vi que o seu ar era de fúria e gritou-me uma série de nomes próprios masculinos que não fui capaz de decifrar. Depois arrastou a cadeira com um estrondo e retirou-se intempestivamente, deixando-me sozinha com os convidados.
Disseram-me com toda a delicadeza que deveria levá-lo ao médico. Mas ele era médico, retorqui, de facto eu também o era. Mas insistiram que deveria procurar ajuda especializada. Em quê? Não sabiam. Eu também não.
Teria sido erro meu? Afinal ele podia ter usado uma variante mais complexa do código que eu ainda não havia decifrado. Tinha defraudado as expectativas do público em relação ao que ele tinha para dizer sobre um tema de tanta importância. Quando as pessoas se sentiam desamparadas procuravam conforto e respostas onde quer que estas se encontrassem. Ele era uma espécie de génio, de louco, de homem com algo profundo para dizer. E no entanto o que haveria que se pudesse dizer?
Fui encontrá-lo no campo com o cavalo. Estava com o animal pela guia mas quando me viu aproximar colocou o pé no estribo e atirou-se para a cela, largando a galope. A tarde tinha-se tornado cinzenta e carregada prenunciando um temporal. O que aconteceu de seguida não o poderia prever. Um relâmpago caiu escassos metros à frente do cavalo que se empinou e, dando uma cambalhota para trás, caiu com a coluna vertebral no chão. Apenas por milímetros não aterrou em cima do professor. Durante a queda ouviu-se um grito que ecoou no ar: “socorro!”
Socorro!”, eu ouvira “socorro!” e não “Soraia-Ofélia-Carina-Odete-Rosário-Rute-Olívia!”. Não, tinha sido um claro, inequívoco, instintivo, natural “socorro”. Algo impossível de reprimir perante a confrontação com a iminência da morte. Levei ainda uns minutos para perceber o alcance da simples palavra. E umas horas para reflectir sobre a importância da minha descoberta.
Entre a chegada da ambulância e a viagem para os cuidados intensivos do Hospital, entre as conversas com os médicos e as demoradas cirurgias para descomprimir as hemorragias intracraneanas fui concluindo que talvez tivesse estado a viver um grande equívoco. Mas só depois da convalescença de semanas pude de facto confrontar o homem com aquele novo e definitivo facto: ele falava normalmente, como o comum dos mortais.
Cansado, envelhecido, doente e derrotado contou-me tudo em português escorreito. Deixara de falar para se manter afastado das pessoas. Entediavam-no as pessoas. Com as suas conversas de circunstância, as suas frases feitas, as suas banalidades insuportáveis. Não queria o convívio da populaça mas, por outro lado, não sabia ser indelicado, rude, mal-educado. Inventou então um esquema simples de palavras indecifráveis. Que não tinham nada de especial. Só quando eu apareci e comecei a investigar ele se assustou e, para não ser desmascarado, começou a refinar as sequências e foi inventando o código. Quanto mais perto eu chegava da solução mais ele a refinava até se ter apaixonado por mim, até ser reconhecido por toda a gente e se ter habituado ao convívio mundano e de tudo quanto quisera um dia abdicar, até ser tarde demais.
Então percebi que o mais grave ainda estava para saber. A Sílvia, quem era ela afinal?
Era a esposa morta, perdida para o paludismo, em África, apenas uns dias depois da boda. Sim, não a conseguira esquecer até ao presente. Por isso, ao fazer amor comigo, fazia na verdade amor com ela, que até morrera virgem.
Finalmente pude perceber o meu pesadelo que tantas noites me acordara. A angústia que me empapava os lençóis de suor era a do paradoxo circular, da piada seca e sem graça de uma justificação que continha a sua própria causa. Eu criara a fala encriptada do professor, ao tentar decifrar algo que não tinha sentido inicialmente. E ele agora caía de um precipício, não porque eu caía com ele, mas porque eu o havia empurrado. Eu suava porque tinha sido a causa da sua queda. E querer ajudá-lo era o motivo da sua perdição.
Não havia alternativa senão despedir-me para sempre. Ele abandonou os nomes próprios e voltou às suas aulas e aos pacatos passeios a cavalo ao fim da tarde. O mundo finalmente esquecera-se do professor caprichoso.
Tudo o que eu desejava era começar a esquecê-lo também.


Olhou o relógio de pêndulo e com surpresa viu que tinham passado três horas. Tanto tempo. Fizera pausas. Criara silêncios. Tentara afogar a ansiedade friccionando as mãos uma contra a outra, em movimentos em concha durante minutos mudos. Mas reproduzira a sua memória tão fiel quanto lhe foi possível. O homem ouvira pacientemente sem qualquer interrupção.
Olhava-a com simpatia. Ou compaixão. Por fim perguntou:
- Tem a certeza que lhe será útil a minha ajuda?
- Não acha que sim?- retorquiu surpreendida.- Preciso libertar-me!
- Não ponho isso em causa. Eu tento ser consciencioso no meu trabalho. Tenho sempre que averiguar que vou ser uma ajuda e não um prejuízo.
- Como assim?
- Diz que quer libertar-se. Ora eu concordo. Precisa de se libertar. Resta saber de quê? O que está a prendê-la concretamente? A memória do Professor? Ou a culpa?
- Sim, a culpa, é a culpa do que lhe fiz!
- Então temos de pensar numa estratégia para acabar com a culpa. Mas receio que fazer desaparecer a memória, esta memória específica, ou seja, neste caso todas as suas memórias envolvendo o Professor, não vai fazer desaparecer a culpa...
- Como assim? É claro que vai! Não vou voltar a sonhar com o Professor a cair do precipício, não vou continuar a acordar durante a noite com o corpo todo molhado do medo...
- Sim, isso irá desaparecer, de facto, mas...
- Mas? Não há mas. É tudo isso que eu preciso. É só isso...
- Temo que não seja assim tão simples.
- Como não? Consegue ou não fazer-me esquecer selectivamente a memória do Professor?
- Consigo. Não é isso que está em causa. O meu método é infalível e extremamente eficaz. Está a ver estes livros? - olhou para as estantes que forravam quase a totalidade do compartimento de alto a baixo. - São as memórias removidas de quem me procura. Está tudo aqui. Isso quer dizer que nunca mais serão recordadas por quem se quis ver livre delas.
- Ah, devem ser milhares... - disse olhando os livros grossos de encadernações clássicas agrupados cuidadosamente nas prateleiras por cores. - O que faz com as histórias? Publica?
Ele olhou também os livros demoradamente com um sorriso carinhoso.
- Todas as histórias ficam guardadas por escrito e algumas publico, sim. Elas tornam-se minhas. Faz parte do acordo que assinará e que será válido se chegarmos à conclusão que posso ajudá-la.- passou-me uma folha e uma caneta.
- Porque duvida?
- Porque o seu problema é a culpa. Não acredito que seja a sua história com o Professor.
- Mas sem história com o Professor não haverá desilusão e por isso não haverá culpa.
- Pois é aí que eu discordo. Repare uma coisa, a culpa não é assim tão simples. A culpa é uma entidade com a sua própria agenda. Ela comporta-se quase como um ser independente que vive dentro do nosso espírito. É como se fosse um parasita espiritual. Vai-se alojando de memória em memória. Ou seja, é possível que eu faça desaparecer a sua memória do Professor mas não vou matar a culpa. Então ela irá saltar para uma história mais antiga. Quem sabe com os seus pais... Tudo no fundo remonta às histórias da nossa infância. E essas são complicadas de apagar. Só muito raramente apago memórias envolvendo progenitores. Porque essas memórias definem a nossa personalidade. Não quero mutilar personalidades. Tenho uma ética muito rigorosa. Muito rigorosa. Tirando os casos de maltrato graves, nunca retiro a memória de um pai ou de uma mãe a uma pessoa. Só mesmo em último caso. Outro caso que recuso liminarmente é uma história que abarque quase a totalidade da vida da pessoa. Por exemplo, ainda ontem tive uma senhora que queria esquecer o marido que lhe pedira o divórcio ao fim de quarenta anos de casados. Ora isso era causar-lhe uma amnésia quase total. O equivalente à destruição da personalidade da senhora. Ficava sem memória mas também sem bases emocionais que lhe dessem indicações de quem é. Não é aos sessenta anos que uma pessoa tem tempo de se reconstruir do zero.
- Acha então que mesmo anulando o que passei durante uns anos vou continuar com os mesmos pesadelos?
- Não com os mesmos. Com outros. Como foi o resto da sua vida? Não quero que me conte. Quero que durante uns momentos medite. Não tenha pressa. Irei lá dentro preparar as coisas para o caso que chegarmos à conclusão que devemos prosseguir...
Ela olhou longamente para os livros de várias cores. Havia, pelos vistos, muitas memórias deletérias. Memórias sem utilidade, sem préstimo. Memórias que apenas perpetuam dor e medo. Queria mesmo largar aquela sua história? Como uma cobra largando uma pele já morta, que apenas comprime o que fica vivo e precisa de se mover e progredir? Haveria alguma coisa imprescindível que se perderia com aquela recordação? Seria a lembrança daquele amor uma relíquia digna de preservação? Havia tantos episódios inócuos do passado que gostaria poder revisitar e que lhe estavam vedados. Porque seria que aquela longa novela de enganos teimava em persegui-la, atormentando-a em sonhos?
Enquanto se perdia nestas deambulações mentais, ele regressou com um tabuleiro de prata com uma taça cheia de um liquido de cor parda que lhe colocou no colo.
- Pensou bem? - agora sorria abertamente. Como se tivesse adivinhado que ela havia tomado a decisão certa.
- Sim. Não tenho dúvidas. Esta é a história que quero matar. A culpa está incrustada aqui. Mesmo que ela migre para outro lado será um problema a posteriori que resolverei provavelmente recorrendo a outros métodos. Como disse e bem, não vou poder esquecer o meu pai, se o problema estiver aí, como provavelmente estará. Mas irei procurar a melhor solução. Tal como o soube fazer quando decidi procurá-lo a si.
- Não teve dúvidas durante os nossos contactos por escrito?
- Não. Só me custou a espera antes de subir a sua casa. Por ter chegado antes da hora. O que preciso fazer? Beber este líquido? Quanto tempo demorará a fazer efeito? - Falava enquanto assinava o contrato.
- Sim, beba. Será rápido e indolor. Não tenha medo.
- Não tenho. Confio em si. - E bebeu decidida todo o conteúdo da taça de uma só vez. Sorriu para ele e foi correspondida.
- Não se levante já. Relaxe por uns minutos. Deixe correr os pensamentos. Sente-se bem?
- Sim, perfeitamente. Quero agradecer-lhe. Tenho o pagamento aqui na mala. -retirou um envelope fechado que continha notas levantadas do banco logo pela manhã. Estendeu-lho.
- Obrigado. Não se levante ainda. - recebeu o envelope, guardou-o numa gaveta da secretária. Voltou a sentar-se em frente ao sofá comprido.
- Quando quiser... está pronta. Se algum dia voltar a precisar de mim... cá estarei, para ajudá-la. Sempre e só para ajuda-la.
- Muito obrigada. Não me esquecerei de si. Muito obrigada por tudo.
Ele acompanhou-a à porta. Despediram-se com um aperto de mão caloroso. Ela sorriu uma vez mais. Ele correspondeu ao olhar prolongado. E ao sorriso.
Ela desceu as escadas ainda mais lentamente do que as tinha subido. Antes de abrir a porta da rua sentiu vontade de regressar aquele sítio. Voltar a subir as escadas e visitar o homem. Talvez a culpa não fosse o único parasita mental a saltar de memória em memória. O que dizer do amor? Mas logo ao sair para a rua se esqueceu do que estava a pensar.
Apenas uma certeza a dominava completamente: tinha de voltar a ver aquele homem.







1 comentário:

  1. Gostei muito. Li-o de um fôlego. Qualquer comentário seria um intruso neste conto admirável.
    Um abraço

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