Chegara antes da hora marcada. Depois de um bom bocado
sentada no café da esquina esperava agora na rua em frente pelas
duas da tarde.
Não trazia relógio. De modo que não encontrava outro
remédio senão retirar, a intervalos de tempo tão regulares quanto
lhe era possível, o telemóvel da mala para ver quanto faltava.
Estava nisto há quarenta e três minutos e já conseguia manter uma
constância de três ou quatro desde os últimos dez. Estava quase.
Quando chegou o momento faltaram-lhe as forças. Sentia fugir-lhe a
coragem. Para quê? Por quê? O que pretendia com aquele encontro?
Não era tão óbvio quanto poderia parecer à primeira
vista mas, por teimosia ou para não dar parte de fraca, obrigou-se a
ir até à entrada do prédio. Ouviu um zunido abafado ao premir a
campainha do terceiro andar direito. O trinco soltou um estalido e a
porta abriu. Era pesada, de madeira, e só com esforço, mais por
nervos do que por falta de músculo, a empurrou para entrar. Subiu os
lances de escadas devagar. No patamar podia ver que a porta do
apartamento estava entreaberta. Aproximou-se e não viu ninguém à
sua espera. Bateu com os nós dos dedos suavemente. O som saiu a medo
e logo se ouviu: “entre!”
Caminhou por um corredor longo no qual contou quatro
portas de cada lado fechadas. Ao fundo, conseguia ver luz natural que
se propagava tanto do compartimento da esquerda como do da direita.
Mas antes que tivesse de adivinhar a direcção que teria de tomar,
o homem assomou-se à entrada do lado esquerdo.
- Como está? - estendeu-lhe a mão sorrindo
ligeiramente sem perder o seu ar grave.
- Muito obrigada por me receber.
- Ora essa, eu é que agradeço. Sente-se.
Era uma espécie de escritório ou sala de estar com
muitos livros. Estantes escuras e pesadas preenchiam quase todas as
paredes. Junto à janela estava uma secretária. E havia um sofá
comprido em frente de um relógio de pêndulo pendurado na parede. O
som da cadência dos segundos era bem audível.
O homem ofereceu-lhe um lugar na ponta do sofá e
sentou-se num cadeirão de verga em frente a ela, por baixo do
relógio de pêndulo, com o tique-taque metálico quase a servir-lhe
de chapéu.
- Sente-se confortável? - perguntou com uma simpatia
tímida na voz.
- Sim, sim, estou bem - mentiu ela delicadamente.
- Não se preocupe. Daqui a nada vai sentir-se mais
à-vontade. É tudo uma questão de hábito. O que mais custa é
começar.
Ela olhava-o com admiração. Estudava-lhe as feições.
Os olhos pequenos e encovados de um azul acinzentado que lhe trazia
uma tristeza quase dolorosa ao semblante, eram emoldurados por umas
olheiras fundas e trágicas. O cabelo de um loiro sombrio era
comprido mas escasso. E a barba, uma pêra bem aparada, deixava
adivinhar um tom mais claro que o do cabelo. Não era bonito mas
exercia sobre ela uma estranha atracção.
- Quer que comece? - Perguntou-lhe hesitante.
- Quando quiser. Quando se sentir à vontade - respondeu
ele, tranquilizador.
- É o que diz: o que mais custa é começar. Mais vale
começar de imediato:
Ele era um misto quase impossível de elegância e
rusticidade. Muito mais velho que eu. Creio até que poderia ter
idade para ser meu pai. Tinha uns olhos azuis muito claros, muito
vivos e umas rugas ternas aos cantos dos olhos e da boca. Exibia
auto-confiança. E, no entanto, dava sinais inequívocos e pungentes
de desamparo. Ele era meu mestre. Mas em pouco tempo comecei a sentir
uma pulsão irresistível em ir em seu auxílio. Comecei a sonhar com
ele, a ter pesadelos em que ele caía de um precipício gritando o
meu nome. Acordava com a sensação de ter sido eu a cair. E passava
o resto dos dias inquieta, com a vaga noção de que teria de tomar
uma resolução que me tirasse daquele estado.
Um dia, o pesadelo foi particularmente aterrorizador ao
ponto de ter empapado os lençóis com suor. Tornou-se nesse momento
claro que seria a sua intérprete. A pessoa que ofereceria ao mundo a
sabedoria dos seus pensamentos codificados.
Ele era um grande professor. Um grande anatomista. Que
se tornou também, um pouco por acaso, num grande artista plástico.
A universidade era, considerando o panorama das
universidades a nível mundial, no mínimo, obscura. Mas por um acaso
do destino, os seus desenhos, no quadro, a giz, durante as aulas de
anatomia para os alunos do 2º ano de medicina, com as duas mãos ao
mesmo tempo, foram filmados e divulgadas na Internet.
Na outra ponta do mundo, um outro anatomista, desta vez
de Harvard, deu com o vídeo e achou que estava a ver a reencarnação
de Andreas Vesalius, o pai da Anatomia do século XVI. Havia a
semelhança física inegável, mas sobretudo havia a paixão que
transparecia nas imagens. Ficou famoso depois de uma exposição de
arte em Boston. A filigrana de nervos ou de vasos sanguíneos dos
seus desenhos do corpo humano desenhado num quadro preto, com as duas
mãos em simultâneo percorreram o mundo.
Tão ou mais bizarra que a sua maneira de desenhar era a
sua condição linguística. Em relação a questões científicas, o
discurso era perfeitamente normal. Mas em relação à vida do
dia-a-dia, a sua linguagem era tudo menos comum. Não falava um
idioma normal. Expressava-se utilizando nomes próprios apenas. A
comunicação com as pessoas tornava-se praticamente impossível. O
que, de certo modo, ampliou o interesse do público pela personagem.
Foi então que apareci. Era sua assistente há pouco
mais de meio ano quando decidi decifrar o seu código de linguagem.
Foi um salto de fé considerar que havia um código de linguagem num
discurso aparentemente desconexo constituído por listas de nomes
próprios, quase exclusivamente de mulheres.
Mas estava determinada. Pensava que só assim poderia
acabar com os pesadelos.
Demorou-me seis meses a decifrar o código. Obedecia a
uma lógica enviesada e pouco clara. Havia palavras que se obtinham
facilmente por junção das iniciais do nomes próprios pronunciados.
Por exemplo: Um simples “bom dia” era
“Balbina-Olga-Maria-Dina-Isabel-Andreia”. Uma das frases que
dizia sempre de manhã, quando nos encontrávamos ao pequeno-almoço.
Mas havia outras frases que a letra-chave era a segunda.
Outras a terceira e ainda outras em que a posição da letra-chave
alterava-se do primeiro nome de mulher para o segundo.
Depois havia ainda as frases em que apareciam os nomes
de homem. Geralmente isso indicava um sentimento de frustração ou
raiva. Mas como era uma pessoa calma estas eram frases raras e por
isso mais difíceis de decifrar.
Tornei-me quase tão célebre quanto ele. Pelo menos no
meio académico. Publiquei um considerável número de artigos nas
revistas de referência das mais variadas áreas, desde a neurologia,
da terapia da fala e principalmente de criptologia onde alcancei um
estatuto considerável.
Não foi fácil conquistar a confiança daquele homem
extravagante e macambúzio. Passava semanas sem dizer mais do que
duas ou três frases por dia. Mas, por vezes, ao olhar para mim mais
demoradamente, conseguia antever uma solidão feroz, uma tristeza
dolorida. Então sentava-me junto dele e pegava-lhe na mão.
Ficávamos horas de mãos dadas sem dizer palavra. Eu sem dizer
palavra. Ele sem dizer nome. E assim com o passar dos meses fomos
ficando mais íntimos, até me tornar sua amante.
Foram tempos de grandes convulsões emocionais. Por um
lado, estava a viver uma relação fisicamente muito intensa. Por
outro lado, o problema de linguagem do homem trazia entraves sérios
à nossa paixão.
Não era fácil, no acto do amor, ouvir nomes de
mulheres e manter uma total abstracção. Acabei por lhe pedir que
permanecesse em silêncio enquanto me beijava, enquanto percorria o
meu corpo com a boca, enquanto me tomava nos braços e me penetrava.
Ele concordava, cheio de compreensão. Mas no momento do êxtase
perdia o controle e tinha de falar: “Sílvia!... Sílvia!...
Sílvia!... Sílvia-Ivete-Madalena!
Era sempre a mesma sequência de nomes. Onde os outros
homens diziam “sim”, ele chamava a Sílvia, a Ivete e a Madalena.
Claro que isso roubava-me a concentração impedindo-me de atingir o
prazer completo. Pensei que bastaria ter paciência que a frase
entraria na nossa rotina e deixaria de me causar problemas mas foi
exactamente o contrário.
Ao fim de uns meses valentes de Sílvias, Ivetes e
Madalenas comecei a sentir um desconforto inquietante. Era a Sílvia
que me causava mais irritação. Imaginava que aquele nome, naquele
momento tão crucial, teria de significar qualquer coisa mais, não
podia ser por acaso, não podia ser só o vocábulo de onde se podia
retirar a letra s de “sim”. Se assim fosse porque não teria
escolhido Sofia, Sónia, Selma, Sabina, sei lá, qualquer outro nome?
Tentei investigar, inquirir discretamente sobre o seu
passado amoroso. Em vão. Quando sentia a minha curiosidade, a minha
desconfiança, usava os nomes masculinos muito difíceis de decifrar
e era com esforço que acabava por perceber que me dizia ser eu a
única mulher da sua vida. Coisa que, obviamente, eu não acreditava.
Contratei, a certa altura, um investigador particular, para deslindar
as suas origens. Foi tarefa árdua, pois o homem tinha vindo das
ex-colónias. Dei por mim a imaginar uma Sílvia africana. E nada de
concreto se concluiu.
Ele compadeceu-se do meu sofrimento. Prometeu controlar
os devaneios verbais no momento do clímax mas era tão grande o seu
esforço que a expressão facial de masséteres contraídos acabava
por me distrair do desejo. Mesmo de luz apagada eram os sons abafados
que fazia na tentativa de não falar que me diziam que as Silvias
queriam sair, que ainda lá estavam.
Assim fui vivendo em permanente estado de insatisfação.
A nossa vida social, no entanto ia de vento em popa.
Éramos convidados para os mais diversos eventos. Inaugurações de
exposições, peças de teatro, palestras de conferencistas
estrangeiros de todas as áreas científicas, enfim, estávamos em
todo o lado.
Havia sempre um interesse desmesurado em ouvir o
professor falar e saber, através da minha pessoa, o que queria ele
dizer com aquele chorrilho de nomes de mulheres. Era uma ave rara
que todos queriam ver ao vivo e a cores. E no entanto, tirando as
palestras sobre Anatomia e as suas aulas para o curso de Medicina,
ocasiões em que falava português comum, tudo o que dizia no seu
idioma fabricado ou inato, coisa que estava ainda por determinar e
era alvo de muitas teorias, não passava de frases corriqueiras: “foi
uma palestra muito interessante”. Que neste caso soava como um
rebuscado desfilar de nomes: Fernanda-Olga-Isabel
Núria-América-Natércia
Paula-Adélia-Luísa-Eva-Sofia-Teresa-Rita-Alexandra
Amanda-Dulce-Micaela-Itelvina-Joana
Ilda-Nlema-Tânia-Elsa-Rosa-Ema-Simone-Susana-Alberta-Nádia-Telma-Eunice.
Era uma frase em que alternadamente interessava a primeira letra e a
segunda das cinco sequências de nomes. Tornou-se para mim numa frase
batida. O que acaba por facilitar em boa medida o meu trabalho.
Pensava em sexo o tempo todo. Ele sentia-se lisonjeado
por ser tão requisitado por mim. Não lhe passava pela cabeça que
isso seria fruto de uma problema latente. Era demasiado ingénuo para
o perceber. Ou demasiado indiferente.
Com o tempo, o meu corpo acabou por entender que não
adiantava continuar a investir naquela relação e deixei,
involuntariamente, de ter interesse físico nele. Habituado como
estava a não ter de me procurar, por preguiça ou por orgulho tentou
aguentar-se por sua conta. Até que finalmente a meio da noite após
muitas horas revirando-se na cama sem conseguir dormir com a
excitação, abraçou-me bruscamente sussurrando: “Patrícia-Olga-Rita
Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda, Patrícia-Olga-Rita
Fabiana-Aida-Vanda-Olinda-Ronalda!”
Eu cedi, comovida, contente por saber que lhe dava
prazer e alívio. E durante mais um par de semanas ele permaneceu no
seu canto tentando incomodar-me o menos possível. Até chegar ao
limite da sua resistência de saudade pelo meu corpo. Esta passou a
ser a nossa rotina sexual. Mas sempre, sempre com as Sílvias finais,
vocalizadas ou por vocalizar. Nunca esquecidas nem aceites por mim.
O
que nos aguentou tanto tempo juntos foram os cavalos. Todas as tardes
passeávamos com os cavalos. Ele montado no seu Lusitano de cor
tordilha e eu com a minha égua de Sorraia pela guia. Desculpava-me
com as vertigens para não montar. No fundo o que não gostava era
da sensação de dominância em relação ao animal. Preferia fazer
de conta que a égua era simplesmente um cão de grande porte que me
acompanhava. Já ele, sentia-se um monarca inglês em cima do
magnífico equino, pronto para conquistar o mundo.
Eram tardes tranquilas. Ficava sentada a vê-lo galopar
ao longe, agarrada às pernas flectidas, de cabeça repousada de lado
nos joelhos. A égua, por vezes pressentindo-me triste, vinha
mordiscar-me delicadamente a face como que a consolar-me do desgosto.
Naqueles momentos considerava que a vida era boa, nem tudo eram
bizarrias e complicações. O mundo também tinha lugares serenos e
tranquilizadores.
Uma noite, num jantar de gala, na tomada de posse do
novo governo municipal, alguém perguntou ao professor o que pensava
sobre a problemática do terrorismo. Vinha isto a propósito do
ataque ao World Trade Center e todos estávamos ainda em estado de
choque com os acontecimentos Fez-se silêncio para que se ouvisse o
excêntrico sábio. Seguiu-se um chorrilho de nomes próprios
femininos como seria de esperar e de seguida já as cabeças todas
apontavam para mim. Traduzi espontaneamente, já nem precisava de
pensar muito tal era a minha prática: “o gato das botas é muito
meu amigo!”
Foi a estupefacção geral. Não maior do que a minha
pois tinha a certeza de que não me havia enganado. Virei-me
implorando o seu auxílio mas para meu espanto vi que o seu ar era de
fúria e gritou-me uma série de nomes próprios masculinos que não
fui capaz de decifrar. Depois arrastou a cadeira com um estrondo e
retirou-se intempestivamente, deixando-me sozinha com os convidados.
Disseram-me com toda a delicadeza
que deveria levá-lo ao médico. Mas ele era
médico, retorqui, de facto eu também o era. Mas insistiram que
deveria procurar ajuda especializada. Em quê? Não sabiam. Eu também
não.
Teria sido erro meu? Afinal ele podia ter usado uma
variante mais complexa do código que eu ainda não havia decifrado.
Tinha defraudado as expectativas do público em relação ao que ele
tinha para dizer sobre um tema de tanta importância. Quando as
pessoas se sentiam desamparadas procuravam conforto e respostas onde
quer que estas se encontrassem. Ele era uma espécie de génio, de
louco, de homem com algo profundo para dizer. E no entanto o que
haveria que se pudesse dizer?
Fui encontrá-lo no campo com o cavalo. Estava com o
animal pela guia mas quando me viu aproximar colocou o pé no estribo
e atirou-se para a cela, largando a galope. A tarde tinha-se tornado
cinzenta e carregada prenunciando um temporal. O que aconteceu de
seguida não o poderia prever. Um relâmpago caiu escassos metros à
frente do cavalo que se empinou e, dando uma cambalhota para trás,
caiu com a coluna vertebral no chão. Apenas por milímetros não
aterrou em cima do professor. Durante a queda ouviu-se um grito que
ecoou no ar: “socorro!”
“Socorro!”, eu ouvira “socorro!” e não
“Soraia-Ofélia-Carina-Odete-Rosário-Rute-Olívia!”. Não, tinha
sido um claro, inequívoco, instintivo, natural “socorro”. Algo
impossível de reprimir perante a confrontação com a iminência da
morte. Levei ainda uns minutos para perceber o alcance da simples
palavra. E umas horas para reflectir sobre a importância da minha
descoberta.
Entre a chegada da ambulância e a viagem para os
cuidados intensivos do Hospital, entre as conversas com os médicos e
as demoradas cirurgias para descomprimir as hemorragias
intracraneanas fui concluindo que talvez tivesse estado a viver um
grande equívoco. Mas só depois da convalescença de semanas pude de
facto confrontar o homem com aquele novo e definitivo facto: ele
falava normalmente, como o comum dos mortais.
Cansado, envelhecido, doente e derrotado contou-me tudo
em português escorreito. Deixara de falar para se manter afastado
das pessoas. Entediavam-no as pessoas. Com as suas conversas de
circunstância, as suas frases feitas, as suas banalidades
insuportáveis. Não queria o convívio da populaça mas, por outro
lado, não sabia ser indelicado, rude, mal-educado. Inventou então
um esquema simples de palavras indecifráveis. Que não tinham nada
de especial. Só quando eu apareci e comecei a investigar ele se
assustou e, para não ser desmascarado, começou a refinar as
sequências e foi inventando o código. Quanto mais perto eu chegava
da solução mais ele a refinava até se ter apaixonado por mim, até
ser reconhecido por toda a gente e se ter habituado ao convívio
mundano e de tudo quanto quisera um dia abdicar, até ser tarde
demais.
Então percebi que o mais grave ainda estava para saber.
A Sílvia, quem era ela afinal?
Era a esposa morta, perdida para o paludismo, em África,
apenas uns dias depois da boda. Sim, não a conseguira esquecer até
ao presente. Por isso, ao fazer amor comigo, fazia na verdade amor
com ela, que até morrera virgem.
Finalmente pude perceber o meu pesadelo que tantas
noites me acordara. A angústia que me empapava os lençóis de suor
era a do paradoxo circular, da piada seca e sem graça de uma
justificação que continha a sua própria causa. Eu criara a fala
encriptada do professor, ao tentar decifrar algo que não tinha
sentido inicialmente. E ele agora caía de um precipício, não
porque eu caía com ele, mas porque eu o havia empurrado. Eu suava
porque tinha sido a causa da sua queda. E querer ajudá-lo era o
motivo da sua perdição.
Não havia alternativa senão despedir-me para sempre.
Ele abandonou os nomes próprios e voltou às suas aulas e aos
pacatos passeios a cavalo ao fim da tarde. O mundo finalmente
esquecera-se do professor caprichoso.
Tudo o que eu desejava era começar a esquecê-lo
também.
Olhou o relógio de pêndulo e com surpresa viu que
tinham passado três horas. Tanto tempo. Fizera pausas. Criara
silêncios. Tentara afogar a ansiedade friccionando as mãos uma
contra a outra, em movimentos em concha durante minutos mudos. Mas
reproduzira a sua memória tão fiel quanto lhe foi possível. O
homem ouvira pacientemente sem qualquer interrupção.
Olhava-a com simpatia. Ou compaixão. Por fim perguntou:
- Tem a certeza que lhe será útil a minha ajuda?
- Não acha que sim?- retorquiu surpreendida.- Preciso
libertar-me!
- Não ponho isso em causa. Eu tento ser consciencioso
no meu trabalho. Tenho sempre que averiguar que vou ser uma ajuda e
não um prejuízo.
- Como assim?
- Diz que quer libertar-se. Ora eu concordo. Precisa de
se libertar. Resta saber de quê? O que está a prendê-la
concretamente? A memória do Professor? Ou a culpa?
- Sim, a culpa, é a culpa do que lhe fiz!
- Então temos de pensar numa estratégia para acabar
com a culpa. Mas receio que fazer desaparecer a memória, esta
memória específica, ou seja, neste caso todas as suas memórias
envolvendo o Professor, não vai fazer desaparecer a culpa...
- Como assim? É claro que vai! Não vou voltar a sonhar
com o Professor a cair do precipício, não vou continuar a acordar
durante a noite com o corpo todo molhado do medo...
- Sim, isso irá desaparecer, de facto, mas...
- Mas? Não há mas. É tudo isso que eu preciso. É só
isso...
- Temo que não seja assim tão simples.
- Como não? Consegue ou não fazer-me esquecer
selectivamente a memória do Professor?
- Consigo. Não é isso que está em causa. O meu método
é infalível e extremamente eficaz. Está a ver estes livros? -
olhou para as estantes que forravam quase a totalidade do
compartimento de alto a baixo. - São as memórias removidas de quem
me procura. Está tudo aqui. Isso quer dizer que nunca mais serão
recordadas por quem se quis ver livre delas.
- Ah, devem ser milhares... - disse olhando os livros
grossos de encadernações clássicas agrupados cuidadosamente nas
prateleiras por cores. - O que faz com as histórias? Publica?
Ele olhou também os livros demoradamente com um sorriso
carinhoso.
- Todas as histórias ficam guardadas por escrito e
algumas publico, sim. Elas tornam-se minhas. Faz parte do acordo que
assinará e que será válido se chegarmos à conclusão que posso
ajudá-la.- passou-me uma folha e uma caneta.
- Porque duvida?
- Porque o seu problema é a culpa. Não acredito que
seja a sua história com o Professor.
- Mas sem história com o Professor não haverá
desilusão e por isso não haverá culpa.
- Pois é aí que eu discordo. Repare uma coisa, a culpa
não é assim tão simples. A culpa é uma entidade com a sua própria
agenda. Ela comporta-se quase como um ser independente que vive
dentro do nosso espírito. É como se fosse um parasita espiritual.
Vai-se alojando de memória em memória. Ou seja, é possível que eu
faça desaparecer a sua memória do Professor mas não vou matar a
culpa. Então ela irá saltar para uma história mais antiga. Quem
sabe com os seus pais... Tudo no fundo remonta às histórias da
nossa infância. E essas são complicadas de apagar. Só muito
raramente apago memórias envolvendo progenitores. Porque essas
memórias definem a nossa personalidade. Não quero mutilar
personalidades. Tenho uma ética muito rigorosa. Muito rigorosa.
Tirando os casos de maltrato graves, nunca retiro a memória de um
pai ou de uma mãe a uma pessoa. Só mesmo em último caso. Outro
caso que recuso liminarmente é uma história que abarque quase a
totalidade da vida da pessoa. Por exemplo, ainda ontem tive uma
senhora que queria esquecer o marido que lhe pedira o divórcio ao
fim de quarenta anos de casados. Ora isso era causar-lhe uma amnésia
quase total. O equivalente à destruição da personalidade da
senhora. Ficava sem memória mas também sem bases emocionais que lhe
dessem indicações de quem é. Não é aos sessenta anos que uma
pessoa tem tempo de se reconstruir do zero.
- Acha então que mesmo anulando o que passei durante
uns anos vou continuar com os mesmos pesadelos?
- Não com os mesmos. Com outros. Como foi o resto da
sua vida? Não quero que me conte. Quero que durante uns momentos
medite. Não tenha pressa. Irei lá dentro preparar as coisas para o
caso que chegarmos à conclusão que devemos prosseguir...
Ela olhou longamente para os livros de várias cores.
Havia, pelos vistos, muitas memórias deletérias. Memórias sem
utilidade, sem préstimo. Memórias que apenas perpetuam dor e medo.
Queria mesmo largar aquela sua história? Como uma cobra largando uma
pele já morta, que apenas comprime o que fica vivo e precisa de se
mover e progredir? Haveria alguma coisa imprescindível que se
perderia com aquela recordação? Seria a lembrança daquele amor uma
relíquia digna de preservação? Havia tantos episódios inócuos do
passado que gostaria poder revisitar e que lhe estavam vedados.
Porque seria que aquela longa novela de enganos teimava em
persegui-la, atormentando-a em sonhos?
Enquanto se perdia nestas deambulações mentais, ele
regressou com um tabuleiro de prata com uma taça cheia de um liquido
de cor parda que lhe colocou no colo.
- Pensou bem? - agora sorria abertamente. Como se
tivesse adivinhado que ela havia tomado a decisão certa.
- Sim. Não tenho dúvidas. Esta é a história que
quero matar. A culpa está incrustada aqui. Mesmo que ela migre para
outro lado será um problema a posteriori
que resolverei provavelmente recorrendo a outros métodos. Como disse
e bem, não vou poder esquecer o meu pai, se o problema estiver aí,
como provavelmente estará. Mas irei procurar a melhor solução. Tal
como o soube fazer quando decidi procurá-lo a si.
- Não teve dúvidas durante os nossos contactos por
escrito?
- Não. Só me custou a espera antes de subir a sua
casa. Por ter chegado antes da hora. O que preciso fazer? Beber este
líquido? Quanto tempo demorará a fazer efeito? - Falava enquanto
assinava o contrato.
- Sim, beba. Será rápido e indolor. Não tenha medo.
- Não tenho. Confio em si. - E bebeu decidida todo o
conteúdo da taça de uma só vez. Sorriu para ele e foi
correspondida.
- Não se levante já. Relaxe por uns minutos. Deixe
correr os pensamentos. Sente-se bem?
- Sim, perfeitamente. Quero agradecer-lhe. Tenho o
pagamento aqui na mala. -retirou um envelope fechado que continha
notas levantadas do banco logo pela manhã. Estendeu-lho.
- Obrigado. Não se levante ainda. - recebeu o envelope,
guardou-o numa gaveta da secretária. Voltou a sentar-se em frente ao
sofá comprido.
- Quando quiser... está pronta. Se algum dia voltar a
precisar de mim... cá estarei, para ajudá-la. Sempre e só para
ajuda-la.
- Muito obrigada. Não me esquecerei de si. Muito
obrigada por tudo.
Ele acompanhou-a à porta. Despediram-se com um aperto
de mão caloroso. Ela sorriu uma vez mais. Ele correspondeu ao olhar
prolongado. E ao sorriso.
Ela desceu as escadas ainda mais lentamente do que as
tinha subido. Antes de abrir a porta da rua sentiu vontade de
regressar aquele sítio. Voltar a subir as escadas e visitar o homem.
Talvez a culpa não fosse o único parasita mental a saltar de
memória em memória. O que dizer do amor? Mas logo ao sair para a
rua se esqueceu do que estava a pensar.
Apenas uma certeza a dominava completamente: tinha de
voltar a ver aquele homem.