quinta-feira, 21 de maio de 2015

PANTUFA

Pantufa, de férias na Beira Baixa, a olhar para o maluco do Beckett



O meu nome é Pantufa. Podem achar que é um nome vulgar mas o que foge à regra é facto de eu ter nome. Isto de um cão de rua ter nome não é para qualquer um... A maioria dos meus companheiros é anónima. Ninguém os chama, ninguém os distingue de todos os outros.
Tive sorte. Vivi quinze anos na rua. Sem dono. Mas com alguns amigos. E nesta vida de cão o que faz a diferença são os amigos.
A memória mais antiga que tenho é de ter chegado aquela rua principal de localidade suburbana que poucos sabem onde fica e os que sabem preferiam desconhecer. O local não era nada de extraordinário, mas logo no primeiro dia as pessoas foram simpáticas para mim: ofereceram-me água. Bebi com sofreguidão de cachorro que passara horas a correr. Foi no quiosque de jornais e logo ali começei a somar amizades. Do outro lado da rua cheirou-me a carne. Fui ver e era o talho. E não é que o proprietário gostou de mim? Alimentou-me. Foi muito bom. Por ali fiquei vagueando de uma lado para outro da rua. Uns davam-me festas, outros achavam-me graça ao pêlo e alguém disse que eu parecia uma pantufa e Pantufa fiquei.
Certo dia uma senhora idosa teve pena de me ver a dormir à noite enrolado num tapete à entrada do prédio e deixou-me entrar na garagem. Fez-me uma cama de papelão. Nunca tinha dormido numa coisa tão quente e confortável. Fiquei feliz. No outro dia de manhã veio muito cedo ter comigo e empurrou-me dali para fora. Confuso, lá fui eu para o meio da rua, a chover e tudo. Mas quando chegou a noite voltou a chamar-me para a cama que passou a ser minha. Só podia ficar de noite, que ela lá deveria ter as suas razões. Mas já não era nada mau.
E a vida passou vagarosa e sem grandes sobressaltos durante catorze anos, tirando uma ferida ou outra mais funda que sarava por si ou com betadine que a senhora idosa despejava no meu lombo. Não sou muito grande mas sou cão bravo e respeitado pelos outros camaradas de luta e não permito que ninguém viole as fronteiras do meu território.
Um dia custou-me muito ter de deixar a cama de papelão. Ao segundo pontapé da velhota lá abri os olhos e implorei que me deixasse dormir mais um pouco. Mas à terceira paulada de cabo de vassoura percebi que não seriam admitidas excepções e concordei em fazer-me à estrada. Não senti forças para completar a minha ronda matinal pelas paredes e árvores habituais e a meio percurso voltei para trás, procurei uma sombra e enrosquei-me numa bola. Passei a dormir mais. Cada vez mais. Reparava agora que as pessoas já não eram tão simpáticas. Não me faziam tantas festas. Depois senti a falta de me tocarem. E com espanto começei a notar que se afastavam de mim com repugnância. Fiquei triste.
Além disso perdia muito pêlo e com a avançar do Inverno sofria cada vez mais com o frio. E para piorar ainda mais a situação sentia uma comichão medonha constante, pelo corpo todo e me obrigava a coçar-me sem parar. Deixei de conseguir correr. Tinha dores ao andar. Depois eram dores no corpo todo. Perdi o interesse na vida.
Um dia, estava eu como já era costume, deitado no asfalto quente da estrada a ver se aquecia, pois estava um daqueles bonitos dias de Dezembro mas frios como lâminas aguçadas, chegaram duas moças e pegaram-me ao colo. Foi uma surpresa. Reconheci-as. Eram talvez as únicas que não se afastavam à minha passagem. Bem simpáticas. Confiei nelas. Ainda assim tive medo. Andei pela primeira vez naqueles cubículos com quatro rodas que toda a minha vida vira passar. Não durou muito a viajem. Cheguei a uma casa onde estavam vários animais. Pelo menos lembro-me de dois cães e um gato que na verdade nem vi pois estava muito encolhido dentro de uma caixa colorida. Mas o meu nariz não me engana. Fizeram-me esperar a manhã toda dentro de uma sala muito pequena e escura. Até que me vieram buscar. Um homem novo e uma mulher menos nova mas sem ser velha. Muito mais nova que a “minha” velhota. Mexeu muito em mim o que me deixou espantado. E depois molhou-me com água quente e mexeu muito mais. O cheiro que a água tinha era estranho e intenso. Ora para meu espanto soube-me bem. Fiquei mais confortável e com menos comichões. Picaram-me algumas vezes na pele mas não me importei por aí além, afinal eles falaram a bem comigo e pareciam simpáticos. Por fim deixaram-me dormir numa cama tão boa que tinha até um cobertor. Melhor ainda, no outro dia de manhã ninguém me correu a pontapé. Dormi a manhã toda. De facto dormi as manhãs todas durante um bom par de meses. Nunca imaginei que estivesse tão cansado. Fez-me bem. Veio a Primavera e eu parecia uma flor a renascer. Voltei a correr na rua, a espojar-me na relva, a brincar com as pessoas. E aqui vivo até hoje. As pessoas da minha nova casa gostam de me tocar e dão-me comida todos os dias. E eu para agradecer esta nova vida, lambo-lhes as mãos. Já passou um ano desde que aqui cheguei. Estão sempre a entrar e a sair animais. Brinco com os mais amistosos. Aos gatos, esses seres arrogantes com a mania das grandezas, nem ligo. Tenho a sorte de me esconderem dos sarrafeiros. Esses fico a ouvi-los rosnar de fúria, com o rabinho a dar-a-dar, por não me poderem chegar...
Descobri que sou um belo ruivo de pêlo comprido. Um cão feliz.

2 comentários:

  1. Na primeira pessoa pois claro. O Pantufa -todos os pantufas- é como muitos de nós, humano.
    Gostei muito.

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