Pantufa, de férias na Beira Baixa, a olhar para o maluco do Beckett |
O meu
nome é Pantufa. Podem achar que é um nome vulgar mas o que foge à
regra é facto de eu ter nome. Isto de um cão de rua ter nome não é
para qualquer um... A maioria dos meus companheiros é anónima.
Ninguém os chama, ninguém os distingue de todos os outros.
Tive
sorte. Vivi quinze anos na rua. Sem dono. Mas com alguns amigos. E
nesta vida de cão o que faz a diferença são os amigos.
A
memória mais antiga que tenho é de ter chegado aquela rua principal
de localidade suburbana que poucos sabem onde fica e os que sabem
preferiam desconhecer. O local não era nada de extraordinário, mas
logo no primeiro dia as pessoas foram simpáticas para mim:
ofereceram-me água. Bebi com sofreguidão de cachorro que passara
horas a correr. Foi no quiosque de jornais e logo ali começei a
somar amizades. Do outro lado da rua cheirou-me a carne. Fui ver e
era o talho. E não é que o proprietário gostou de mim?
Alimentou-me. Foi muito bom. Por ali fiquei vagueando de uma lado
para outro da rua. Uns davam-me festas, outros achavam-me graça ao
pêlo e alguém disse que eu parecia uma pantufa e Pantufa fiquei.
Certo
dia uma senhora idosa teve pena de me ver a dormir à noite enrolado
num tapete à entrada do prédio e deixou-me entrar na garagem.
Fez-me uma cama de papelão. Nunca tinha dormido numa coisa tão
quente e confortável. Fiquei feliz. No outro dia de manhã veio
muito cedo ter comigo e empurrou-me dali para fora. Confuso, lá fui
eu para o meio da rua, a chover e tudo. Mas quando chegou a noite
voltou a chamar-me para a cama que passou a ser minha. Só podia
ficar de noite, que ela lá deveria ter as suas razões. Mas já não
era nada mau.
E a
vida passou vagarosa e sem grandes sobressaltos durante catorze anos,
tirando uma ferida ou outra mais funda que sarava por si ou com
betadine que a senhora idosa despejava no meu lombo. Não sou muito
grande mas sou cão bravo e respeitado pelos outros camaradas de luta
e não permito que ninguém viole as fronteiras do meu território.
Um dia
custou-me muito ter de deixar a cama de papelão. Ao segundo pontapé
da velhota lá abri os olhos e implorei que me deixasse dormir mais
um pouco. Mas à terceira paulada de cabo de vassoura percebi que não
seriam admitidas excepções e concordei em fazer-me à estrada. Não
senti forças para completar a minha ronda matinal pelas paredes e
árvores habituais e a meio percurso voltei para trás, procurei uma
sombra e enrosquei-me numa bola. Passei a dormir mais. Cada vez mais.
Reparava agora que as pessoas já não eram tão simpáticas. Não me
faziam tantas festas. Depois senti a falta de me tocarem. E com
espanto começei a notar que se afastavam de mim com repugnância.
Fiquei triste.
Além
disso perdia muito pêlo e com a avançar do Inverno sofria cada vez
mais com o frio. E para piorar ainda mais a situação sentia uma
comichão medonha constante, pelo corpo todo e me obrigava a coçar-me
sem parar. Deixei de conseguir correr. Tinha dores ao andar. Depois
eram dores no corpo todo. Perdi o interesse na vida.
Um
dia, estava eu como já era costume, deitado no asfalto quente da
estrada a ver se aquecia, pois estava um daqueles bonitos dias de
Dezembro mas frios como lâminas aguçadas, chegaram duas moças e
pegaram-me ao colo. Foi uma surpresa. Reconheci-as. Eram talvez as
únicas que não se afastavam à minha passagem. Bem simpáticas.
Confiei nelas. Ainda assim tive medo. Andei pela primeira vez
naqueles cubículos com quatro rodas que toda a minha vida vira
passar. Não durou muito a viajem. Cheguei a uma casa onde estavam
vários animais. Pelo menos lembro-me de dois cães e um gato que na
verdade nem vi pois estava muito encolhido dentro de uma caixa
colorida. Mas o meu nariz não me engana. Fizeram-me esperar a manhã
toda dentro de uma sala muito pequena e escura. Até que me vieram
buscar. Um homem novo e uma mulher menos nova mas sem ser velha.
Muito mais nova que a “minha” velhota. Mexeu muito em mim o que
me deixou espantado. E depois molhou-me com água quente e mexeu
muito mais. O cheiro que a água tinha era estranho e intenso. Ora
para meu espanto soube-me bem. Fiquei mais confortável e com menos
comichões. Picaram-me algumas vezes na pele mas não me importei por
aí além, afinal eles falaram a bem comigo e pareciam simpáticos.
Por fim deixaram-me dormir numa cama tão boa que tinha até um
cobertor. Melhor ainda, no outro dia de manhã ninguém me correu a
pontapé. Dormi a manhã toda. De facto dormi as manhãs todas
durante um bom par de meses. Nunca imaginei que estivesse tão
cansado. Fez-me bem. Veio a Primavera e eu parecia uma flor a
renascer. Voltei a correr na rua, a espojar-me na relva, a brincar
com as pessoas. E aqui vivo até hoje. As pessoas da minha nova casa
gostam de me tocar e dão-me comida todos os dias. E eu para
agradecer esta nova vida, lambo-lhes as mãos. Já passou um ano
desde que aqui cheguei. Estão sempre a entrar e a sair animais.
Brinco com os mais amistosos. Aos gatos, esses seres arrogantes com a
mania das grandezas, nem ligo. Tenho a sorte de me esconderem dos
sarrafeiros. Esses fico a ouvi-los rosnar de fúria, com o rabinho a
dar-a-dar, por não me poderem chegar...
Descobri
que sou um belo ruivo de pêlo comprido. Um cão feliz.
Amei
ResponderEliminarNa primeira pessoa pois claro. O Pantufa -todos os pantufas- é como muitos de nós, humano.
ResponderEliminarGostei muito.