quinta-feira, 21 de maio de 2015

ELISA DA CONCEIÇÃO


Há pessoas que vivem no mundo das crianças toda a sua vida. Não querem crescer.
Brincam com elas de igual para igual. Assim era Elisa. Com os seus 70 anos, a sua cara enrugada e corpo em tonel, era a mais divertida companheira que eu podia imaginar. Sempre de preto, olhos pequenos de toupeira, tinha um hálito bom, um cheiro a sabão nos braços e a hortelã nas mãos e a voz parecia que ria de contentamento. Era assim que ela se realizava: sendo o centro do universo duma criança de 4 anos. Elisa era a madrasta da minha avó materna. Vivia na casa da sua enteada mais nova, a minha tia do Ribatejo que eu visitava todos os fins-de-semana. Eu gostava de todos daquela casa: da minha tia, tio, primo; e delirava com os animais que coabitavam na casa. Os cães, as cadelas, os cachorros, os gatos, as gatas e suas ninhadas. Mas quem fazia as minhas delícias era a velha Elisa com quem brincava de manhã à noite sem conseguir aborrece-la um único instante. Para mim ela era a Ti’Lisa. A minha maior amiga.
Aquela mulher palhaça era viúva e não tinha filhos. Tinha gerado já tarde um bebé que nascera morto. Era uma menina. Quando contava a história vi-a disfarçar uma lágrima. O marido fora um polícia severo que por vezes lhe batia mas por quem ela demonstrava uma devoção misturada com respeito e ternura. Eu testemunhava o seu amor cada vez que lhe pedia para me mostrar a caixinha em forma de coração que pendia do seu grosso cordão de ouro. Elisa abria a caixa, mas antes de me mostrar a cara sisuda do homem fardado de cinzento beijava-a enamorada. Após ter contemplado a foto que me alimentava a imaginação ela guardava-a novamente junto ao peito nunca sem antes lhe voltar a depositar um longo beijo. Esses eram os breves momentos sérios que tínhamos nos intervalos das nossas brincadeiras. Com ela eu podia brincar aos cavalinhos, às bonecas, aos médicos ou aos cowboys. Tudo me era permitido, até pentear-lhe a sua longa cabeleira branca após desmanchar o carrapito, e fazer-lhe umas tranças para que se parecesse com a minha boneca de trapos favorita.
A comida que me oferecia tinha um sabor mais delicioso. O pão com manteiga que me dava à boca após molhar no leite e que eu mordia, entre voltas de bicicleta à roda do quintal, tinha um gosto especial. Com ela o meu apagado apetite devido às amigdalites constantes disparava. Tudo me parecia mais interessante e alegre. O mundo era um local maravilhoso.
Elisa era a segunda mulher do pai da minha avó materna. Casara com ele já depois dos trinta e aturara esse homem estoicamente. Ele não tinha um feitio fácil. Era polícia num regime com uma autoridade severa. Educara as filhas com mão de ferro. E as duas moças tinham-lhe medo antes do respeito. Tratava a mulher com dureza. Ela era-lhe totalmente submissa. No último ano da sua vida ficara acamado. Para além das escaras dos diabetes, Elisa aguentara a senilidade ou a loucura que o fizera não a reconhecer e trocar-lhe o nome pelo o da sua primeira mulher: Maria do Rosário. Depois da sua morte abraçou o luto para o resto da vida.
Depois de mim, esta velha senhora foi amiga do meu irmão e dos dois netos da sua enteada mais nova. A todos fascinou. Os únicos seres para quem ela foi verdadeiramente encantadora. Quando chegava a puberdade despedia-se de nós imperceptivelmente e dedicava-se à criança que se seguia.
Anos mais tarde fui chamada a visita-la no hospital onde agonizava com uma doença terminal. O tumor do fígado adivinhava-se debaixo da pele esverdeada em forma de uma saliência descomunal. Sofreu durante semanas um calvário de náuseas e dores sem remédio nem alívio. Uma expiação cruel na passagem para o outro mundo de uma personagem secundária no palco da sua própria vida. E assim morreu Elisa da Conceição, a estrela mais brilhante que na infância morava no meu coração...

1 comentário:

  1. As memórias que trazemos connosco. Um belo texto e uma comovente homenagem.
    :)

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