domingo, 3 de janeiro de 2021

Bicho-de-contra

Fotografia de Christy Lee Rogers




concha de ataque

contra o mundo

a baba de ovos

estrelados à pressa

a escorrer no queixo

fios de angorá

a virar argamassa

a mentira tecida

na véspera

o espanto do lugar

vazio na cama

uma pessoa habitua-se

a tudo

só não vive sem cão

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A Casa na Praia

 



Rasura de um conto da Mónia Camacho da Antologia Minimalista:


A Casa na Praia


Numa melancolia pouco rigorosa

a casa murmura o teu nome

o jornal coberto de pó

em cima da mesa da cozinha


os pássaros vêm à praia

prisioneiros de nada

uma mulher sai à rua

com pantufas de ananás


A casa é uma teia de aranha

um regresso que se esfumou

o limão das memórias

em todos os guarda-chuvas que perdi

pedaços de geometria

coisas parvas


até que o Sol cai por trás do mar

e a noite esconde tudo 

domingo, 20 de dezembro de 2020

A noite em que perdemos o barco em Algeciras

Lucia Joyce, filha de James Joyce




O mar carmesim

Gibraltar

quando eu era rapariga

os meus seios perfume

sob a muralha moura

os degraus da ravina

do diabo a rosa

no meu cabelo


como as raparigas andaluzas

a sua língua 7 milhas

a cirandar

ao encontro dos desejos

pontos de interrogação

de cabeça para baixo

o coração como louco

eu quero yes

tentar impedir que o sol

nasça amanhã

 

















domingo, 6 de dezembro de 2020

Amanhã escrevo um poema

 

Foto de Terayama Shuji


 

Dói-me a cabeça.

A casa não se aspira sozinha.

Juntaram Shakespeare ao filme.

O miúdo tem febre.

A vizinha pede salsa.

O planeta espera-me no vidrão.

O Amor dá sinal.

O trabalho atropela-me.

Intervalo para o relatório da calamidade mundial.

Os olhos do cão pedem rua.

Cheira a urgência na caixa de areia dos gatos.

O telemóvel grita uma discussão inadiável.

O louco do bairro revolta-se no centro da avenida.

Cai a Net.

O Sol vem desafiar-me à janela.

O silêncio da guitarra toca-me.

Já comia qualquer coisa.

Não sou capaz.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Dias alciónicos, o indíce

 

ÍNDICE


1-clamores do campo

2- uma bruxa no seu cogumelo

3- a alma obscura do mundo

4- mulher-fantasma com cinzas

5- telegrama francês

6- recordando-te, ó Sião

7- um cão jazia sobre fucos

8- respeita a liberdade

9- delta de Cassiopeia

10- a obscuridade está nas nossas almas

11- casa de quinta

12- animais drogados

13- os sinos da igreja de São Jorge

14- querido homem-flor

15- uma onça de ópio

16- doutor pomba

17- velhas bombas enferrujadas

18- dia da hera a morrer

19- óbito de um cidadão de Dublin

20- o angariador

21- KYRIE ELEISON

22- corações frenéticos

23- o fluir da linguagem

24- cidade inteira a desaparecer

25- fantasmas esfaimados

26- um cavaleiro da triste figura em Dublin

27- onde o amor jaz a sangrar

28- vénus, os seus lábios em oração

29- a Boémia à beira-mar

30- cada um com a sua esposa ou uma lua-de-mel na mão (uma imoralidade nacional em três orgasmos) por Ballacky Mulligan

31- rapariga loura na loja Thorton

32- ardem juntos goma e alho

33- verde morte salgada

34- nenhum eléctrico para Sandymount

35- Rosa de Castela

36- à espera que os chás abrissem

37- o tempo nunca pára

38- a canção-oceânica

39- em molho de fígado puré de batata

40- melro preto

41- Bloom

42- a voz humana

43- o que estão as ondas indomadas a dizer?

44- massa-de-música

45- ramerrame inane sobre notas

46- Lydia bronze

47- em Inisfail

48- gravadas com arte rude

49- cartas de carrascos

50- tão desarborizados como Portugal

51- mais uísque, cidadão

52- roubar a Pedro para pagar a Paulo

53- ao som da sineta sagrada

54- o vosso Deus era judeu

55- Maria Estrela-do-Mar

56- Porque têm as mulheres esses olhos de magia?

57-pudim Rainha Ana

58- Frambota de Camboesa

59- Senhora do Loreto

60- um álbum de vistas iluminadas de Dublin

61- o instinto governa o mundo

62- mangerona gentil

63- um touro irlandês numa loja de porcelana inglesa

64- um espigão chamado amargura

65- dragão eléctrico

66- belbutina

67- Nova Bloomusalém

68- humanos levianos

69- o passado foi é hoje

70- no meu cavalo de pau toco as estrelas do céu

71- enquanto Dublin dormia

72- ter ou não ter, eis a questão

73- uma visão da Palestina a partir do Pisgah ou a parábola das ameixas

74- a procrastinação é a ladra do Tempo

75- Milly tolinha

76- árvoreceleste de estrelas

77-da inabitabilidade dos planetas

78- mulheres tolas creem que o amor é suspirar

79- A noite em que perdemos o barco em Algeciras


Dias Alciónicos (apenas um poema)

 Trabalho de rasura a partir de "Ulisses" de James  Joyce numa tradução de Jorge Vaz de Carvalho, 2ª edição de Fevereiro de 2014



a obscuridade está nas nossas almas


Um clique opera o truque

não lhe parece?

nossas almas aferram-se a nós

ainda mais


qual é aquela palavra

que todos os homens conhecem?

estou aqui completamente só

hora de Pã meio-dia faunal

entre plantas-serpentes


a dor está longe

sou como sou

sou como sou

ou tudo ou nada


o poente há-de achar-se a si mesmo

todos os dias perfazem o seu fim

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Ulisses, a rasura (pequena amostra)

 






Depois da leitura veio a rasura 
do Ulisses. Assim nasceram 
74 poemas ainda em acabamento.
Deixo aqui um deles para amostra:



cidade inteira a desaparecer


sol de autonomia

levantando-se a noroeste

cidade inteira que surge

a desaparecer também

casas

filas de casas

ruas

milhas de pavimento

pilhas de tijolo

pedras

mudando de mais

este proprietário

aquele senhorio

nunca morre

cidades erodidas

século após século

pirâmides de areia

construídas à custa

de pão e cebolas

escravos

muralha da China

Babilónia

torres redondas

o resto escombros

subúrbios

má construção

casas-cogumelos de Kerwan

obras da brisa

abrigo para a noite

ninguém vale nada