sexta-feira, 29 de março de 2019

Assimptota

Foto de Jon Tyson no Unsplash






Quantas vezes falhaste
tentando dissecar
a raiz de uma ideia
as vezes que glorificaste
a queda no fosso banal:
uma humilhação épica

Se pudesses ao menos
parar a travessia
dessa velha estrada

Uma rajada de vento
põe a nu um homem a menos
junto aos alicerces da cidade
devorada pelo fogo
distingue-se claramente
a sucessão central
no pelotão da frente
calha a ser uma baixa
na listagem masculina
um curto saque
um fruto falso
um golpe fundo
na bissetriz do conto clássico
entornado numa escola
de intervalos

Os poemas incomunicáveis

E tudo o que deixaste a fermentar
não passou de pão de sofrimento
tábula rasa
que se foi inundando
por cálculos errados
à hora certa
convertidos em estatística
de pequenos números
uma pedrada no caos
uma abstração puída
três impiedades
idolatria
e trinta cartas de volta
um volte-face
coisas vãs
calvário
à saída ao arraial
ferrão
tombo final
parágrafo

Talvez um dia
perto do infinito
se desfaça o desencontro                             
batia o meio-dia
e picos
um nada ficou
como Dante
Deus o tenha
entre tantos
























quinta-feira, 28 de março de 2019

Cinemática

Pintura de Leonora Carrington



Um homem a cavalo
há-de parecer
sempre
um herói o homem
a cavalo pode ser
um macho efémero
o anti homem-elefante
o homem-bode
até fazer vibrar a boca
numa catarata
de blasfémias
ex-herói
o homem-boi
as palavras inundam as máscaras
rasgando os disfarces
à bela e clássica maneira
de Agatha Christie
o homem fácil
do herói sobrou apenas
uma montanha cevada
a feromonas
as palavras deflagram
a jugular ao cavalo
mas o corpo  não vê para além
da inocência do corpo
jura em vão renunciar à subida
no exacto momento do declínio
de Sísifo a vocação
aos solavancos
demora sempre
profeticamente
uns parcos meses




terça-feira, 19 de março de 2019

Matadouro 5




De Lot lembramos
a mulher
volúvel que ousa
olhar para trás
e vê a centopeia fatiada
de todos os momentos
no Tempo

A mulher de Lot
visita regularmente
as crianças cruzando
as trevas a caminho
de Jerusalém

O nome da mulher
de Lot não faz
parte da história
ela é coluna
de sal conserva
na pupila a imagem
da cidade destruída
pela chuva de enxofre
e fogo decisão
dos céus

só a eloquência
do sal pode dizer
o silêncio da cidade
arrasada pelo arbítrio
terreno esse braço
de ferro ganho
na imaginação
do Homem

A mulher de Lot
senta-se à porta
da cidade sente
o cheiro a rosas
e a gás mostarda
ouve a conversa
cristalina dos pássaros
coluna de sal
é uma mulher-memória


sexta-feira, 15 de março de 2019

confessionário





O poema tudo acolhe

o desabafo
do trolha a locução
do talhante o deslize
o obsceno da beata
o transe ocasional
do amante a preguiça
o poeta ocioso

tudo lhe vem
ao seio
tudo lhe vai
à boca
de cena sai
e escorre

quinta-feira, 14 de março de 2019

Espaço Cidadão




Dona Dina faz o gosto
ao dedo e mostra
o pulso na cadeira
no seu compasso
de espera frente
à segurança social
doi-lhe como um raio
irradia a descascar
metáforas

manejando a panela
de pressão braço
acima ombro arcaico
baço resmungando
o diapasão
de um carapau médio
enterrado na goela
obrigara a visita
ao Santa Maria

médicos avisados
dão-se ao luxo
no Hospital da Luz
onde a conta
é preço certo
e anda pela hora
da morte adiada
ufa ainda não foi desta

os números deslizam
devagar as senhas
progridem no trajecto
da obviedade passa
uma jovem inquieta
é jornalista Dina
avança do desporto
e das bonitas hoje
em dia até essas
são inteligentes

mudado que tudo está
Salazar vem à baila
raro o português
ou portuguesa
que não carregue
(Senhor) às costas
o passado

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Poesia





A poesia não conta
histórias
não deslinda
mistérios antes
tenta espalhar
pequenos recados
que fluem
da sombra projectada
no intervalo das palavras
tenras crianças
em sala de aula
com os seus bilhetes
passados por baixo
das carteiras

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Ponte levadiça





Uma Arquitectura da densidade, fotografia de Michael Wolf


Abundam no mundo
os muros
abusos claros
murros clandestinos
chegados a este ponto
trabalha a báscula
da ponte levadiça
reinventa Heraclito
o movimento vertical do ferro
sobre a água
apontando ao céu
a destruição dos caminhos
a muralha que se auto-regenera
em frente ao fosso atónito
e fica-se órfão de casa
braços e pernas arredados
das veredas
e fica-se órfão de cidade
dão de si os machados
enterrados na espera
e fica-se órfão de conterrâneos
órfão de estradas
órfão de bússola
um mundo insuspeito
suspenso