I
um só homem
a "pedra construtora"
não pode fugir
inteiramente
um verme
de uma rocha
como num cristal
desenvolvendo partes novas
abriga parasitas
o problema de trabalhar
o estado real das coisas
os seres brutos
não são capazes
crescem por adição
intermediários
entre as coisas vivas
cristalizados
em oposição
uma visão ampla do mundo
animais contra plantas
as mariposas
a salvo
seu abandono
a emoção de descobrir
a olho nu
a honestidade absoluta
de pensamento
II Gafanhoto
O excesso de água
em campos abertos
cai nos espaços do corpo
O coração delicado
cápsula
a pulsar na respiração
as nervuras das asas
ramificam endurecidas
em repouso
Todas as pernas
são para caminhar
trepar
cada asa
uma projecção
O corpo compreende
a cabeça
adultos não mudam
placas duras
separadas
mas o sangue continua
a circular
o plasma claro
se dissolve
em jovens antes
da metamorfose
Nota: esta é uma experiência pela técnica de rasura do manual de Zoologia Storer, Usinger, Stebbins e Nybakken, utilizado no 1º ano do curso de medicina veterinária , mais conhecido por Storer. Trata-se de uma tradução brasileira de 1986 de três professores do departamento de zoologia do Instituto de biociência da universidade de São Paulo.
Será um trabalho e uma viagem de longo curso, em actualização permanente.
Deixo para já o curto início.
segunda-feira, 27 de julho de 2020
sexta-feira, 24 de julho de 2020
veraneio
Pintura de Amy Shackleton |
os gansos à entrada do hotel
embalsamados
inofensivos assustadores
o ar condicionado ocidental
aquela corrente de ar frio
apropriada
que atrai
a pitada afrodisíaca das ostras
ao lanche
dispensável
mas não completamente
em vão
a fúria do mar à trela
abençoado
o bom casal burguês
as férias serão cumpridas
mais outro ano
o iodo inalado
a morte adiada
mentira
missão
tão comprida
a espada
de D. Afonso Henriques
depois do verão
a inocência
os pezinhos de lã
a ovelhinha
de regresso cordato
ao país dos rodinhas
cidade curral
da civilização
ETERNA SAUDADE
Escolho sair agora, desta mesa elegante de restaurante fino, e tornar-te, assim, imortal. Não morrerás. Não incomodarei a tua viúva com os meus queixumes mal disfarçados. Não escreverei aquela crónica literária, sobre a tua triste morte, na revista conceituada da moda, a recolher aplausos do meu clube de fãs e o desinteresse costumeiro dos concidadãos. Não morrerás! Troco essa dor pelo suplício que agora abraço. Desejo-te uma longa eternidade, macia e leve. Na qual amanheças todos os dias para as razões que te impediram de estar à minha altura e me fizeram sair porta fora, discretamente, claro, depois de te ter permitido pagar o almoço caro em homenagem às convenções gerais. Viverás.
As pessoas são ilegais. Caminham escondidas e pela sombra, subindo e descendo colinas e escadas. Fugir é o seu destino. Sem papéis ou certidões. Os sentimentos são proibidos. Os laços de afecto são escrutinados pela sociedade. O Homem não inventou o quente e o frio mas descobriu a impossibilidade e o averbamento. Assim é o mundo em que vivemos e teremos de nos contentar com coisas pequenas, somos afinal, adultos. Consolos mínimos, em ocasiões. Palavras parcas, quase sempre.
Evitei a morte de uns tantos vivos pela minha vida fora. Não receberei essa notícia funesta, tornei-me imune a esses fins. Estou demasiado longe para que o eco do desaparecimento desses corpos me alcance. Estou a salvo dos braços negros cruzados no caixão. Das coroas de flores lívidas a debruar o defunto. Da paz soluçada que prenuncia a acção dos vermes. Poupo a água dessas lágrimas, eventualmente as terei já chorado por antecipação. Posso até recordá-los como figuras fantasmagóricas, mortos nunca.
Parece cruel, eu sei. É a vida, como se costuma dizer.
Uma vida de papel. Uma vida de silhuetas dançantes, de mosaicos narrativos, de puzzles e patchwork. Tudo é ritmo, luz e escuridão. Simulação, jogos de espelhos, holofotes. A alma a secar por dentro. Medo anestesiado. Lexotans. Existência paliativa. Sem gritaria. Sem sangue. Sem pulso. Sem ondas. Sem feitiçarias.
Saudade eterna.
Saudade eterna.
quarta-feira, 22 de julho de 2020
Dervixe, uma experiência por rasura
I
o eco dos grandes descampados
solares
meu
corpo matéria
em fogo
uma língua
invisível
girafas
outras geometrias
poros excitados como cabeças de alfinetes
em água a ferver
II
os azulejos
descem pelas
fachadas
dando às ruas a paixão das iluminuras
uma ramagem de alecrim
deitada na nossa conversa
quando os dias pequenos do Inverno
acendem rumores em fuga
fazia lembrar uma embarcação
no mar alto
um
adágio a capella
III
um bonsai
de folhas vermelhas
em sangue
um bago de arroz
representa o homem diante de deus
o
mundo em mutação
sinal
decisivo
a memória
o seu
raio verde
o
fruto da lentidão
IV
a chuva tinha transformado o dia
num espesso aquário
os vidros escorriam
aquelas vozes
o rumor
a desistir
um ponto a meio do quadro
como a água
entre pedregulhos e musgos
em sorvedouro
sentia-me num comboio desgovernado
a
descarrilar
V
a silhueta aparecia
entre
veludo
subia as escadas
para apoiar as mãos
a errar todas as máquinas em movimento
ficava a contemplá-la no cadeirão
todos os dias corto
ao meio
os
pensamentos
um modo de depuração
sou uma máquina que contagia
o equilíbrio
para cortar ao meio
a memória
VI
ela sorria
através do ritmo
do vento
era morena
com o sotaque
dos nautas
os lábios uma baía
as pernas
inércia
o nome revelado
no coração da tempestade
VII
passei a acomodar os livros
pela ordem dos anos
as estantes ditaram a sua forma
solitária
um convite à memória
à suspensão do tempo
no meio uma árvore carregada de ameixas
um alívio enorme
o céu breve
como nunca
seguia preso
um vulto atravessou o asfalto
era ela
uma simples aura
aos solavancos
uma morfologia vagabunda
labirinto de ramos
nós
no
gradeamento
do
quarto
ali de pé
o vestido que ondulava
VIII
como uma maré-cheia de luz
ia
abrindo
os
braços
no avesso da corrente
não era deste mundo
acordei
colocando a mão na grande Fénix
renascendo depois
das cinzas
a pequenez do homem diante do infinito
uma
promessa
com três
mãos
o pequeno almoço caiu no chão
como um trapo
IX
a gesticular no anfiteatro
qualquer caderno servia de leque
sensual
naquela posição eu me dava a ver
como maestro
pedaços de realidade
a força de um reiniciar amoroso:
"encontrar"!
"amparar no regaço"
o exemplo de Kandinsky
X
íamos pelo passeio como
se fossemos de mão dada
nossos
corpos sedentos
a enfrentar aquele vazio do dia-a-dia
uma amnésia a dois
os corpos
sedentos
a primeira vez inscrita
na boca
de um oráculo
duas nuvens que o Tejo torna única
XI
ao largo da fábrica de café
uma porta
um quarto minúsculo
frinchas leves
brilhos eram sinais
o cheiro coagulava o tempo
a cidade voltou a ver-nos
a mastigar palavras
a embalar as árvores
negras e ramagens
de cedros
XII
entrei no anfiteatro de gabardine
um pierrot
entre relâmpagos
girafas nas cornijas
frase sim frase não
embarcação possuída por remadores
loucos
nessa manhã de chuva
o mundo
estremeceu
XIII
um actor faz do corpo um fio-de-prumo
que se vai transformando em dicção
um pescador pesca com as mãos
esta pedagogia deambulante
não era capaz de habitar num
espaço fechado
o que mais detesto é o horror
à corporalidade
ao suor
às fibras
aos nervos
às seivas
às cópulas
aos diabinhos de volúpia
aos pajens de linfa
aos valetes de aguadilha
XIV
o tempo comeu as palavras
deixo-me fotografar
com pose de
Edgar Allan Poe
numa cabine no metro
arrumei o nome dela
para sempre
na caixa de bolachas Maria
um estigma de desejo
plano inclinado
onde me movo
com o diafragma aberto
um mapa da cidade
nessa noite voltei a fumar
precisava de um prazer
na varanda
entre o breu da noite inacabada
coloquei o cigarro na boca
o
tempo que vivemos
é
sempre o mesmo
XV
uma aurora boreal tomara conta da noite
ouvi a vizinha
descer
as escadas
com os tamancos de madeira
atravessou a praceta
matraqueando os ladrilhos
de calcário
rodou o pescoço de cisne
e olhou-me de frente
fiquei com a caneca a balançar
entre as mãos
perdido no Mar do Norte
como se alguém tivesse inventado
a escrita literária no interior do esófago
a curva do túnel
XVI
caminhava sobre carris
desenhados a dedo sobre
o pó
suava
aqui era o mundo feito de letras
numa cegueira total
na penúltima estação vi-a
uma mancha rosa
uma promessa
transfusão de todo o corpo
pessoas são labirintos
círculos inscritos em quadrados
tochas de cor a rodar
sombras dentro de uma lanterna mágica
a tempestade é sempre uma pergunta
XVIII
sobre a mesa da casa de jantar
a bola
ria
durante as horas do dia
seguia-a como um gato
olhos mitigando o infinito
o gelo do
tempo
Cesário Verde tinha uma meia de vidro
na cabeça
o seu teatro de
espectros
como se cuidasse da Lua
XIX
aquele ritual segundo o qual
caíamos em nós
verdadeiramente
avançando os nossos vultos
como duas linhas de penumbra
que acasalam forças
jogo de morosidades
aliviados e desfeitos
tesão
enquanto ela
abraçando-se
a mim
assaltava o alecrim
em silêncio sem Nietzsche
figuras conduzidas pelo sol
adágio sem retorno
vivíamos para deixar de ser
XX
nevava nas nossas abelhas
no nosso mel
escorria
sobre a barriga
sobre os mamilos
sobre o rosto
e eu
muito devagarinho
ia avançando
com o corpo
a imitar um bicho-de-conta
uma centopeia
um flamingo
a brincar com o amor
XXI
Edgar Allan Poe era
o fadista simbólico
Alexandre da Macedónia era
o D. Sebastião universal
a amputação alimenta
as suas incisões
através da tristeza
decidi fotografar-me no metro
solidificar a memória
o amor perdido
os flashes: doce
fuzilamento
deixei crescer o bigode
daguerreótipo com três
dimensões
XXII
Eva impelida pelo vento
levava pelos ares
a planta da cidade
uma bandeira
a procura da verdade total
subi ao terceiro andar para cumprimentar as trepadeiras
uma borboleta de prata
caía em jeito de duplo arco-íris
verdade de acrobata
vaivém de miragens talvez a vizinha
fosse a serpente
assoprando
manipulando
a arte do fole
os nossos olhares tocaram-se como relâmpago
XXIII
os cartazes há muito rasgados
crescem sem piedade
à última estação do metro
no vidro fosco dos túneis
agulhas sobrepostas
dois relógios de parede
um homem uma carruagem
fato-de-macaco azul
dedeiras alaranjadas
cara manchada de fuligem
investigava os divórcios de Kandinsky
como se fosse uma zebra
toda a sua energia de jovem
um fôlego notável
a mulher diante de mim perdeu
o fato de banho
uma urgência em mãos
"acha que posso ajudá-la a encontrar
aquilo que perdeu?"
a sintonia é um fio de seda muito frágil
XXIV
na pastelaria o espelho
um vulcão
cada tique
uma outra face
ela desatava a girar
sobre o seu próprio eixo
um planeta à procura do sol
no cinema o Azul, de Kieslowski
Alain Delon era um cão agastado
com o cosmos
enquanto a bola de sabão crescia
fez splash
como se fugisse de
mim
XXV
ela crocitava como um corvo
o vento assobiava como o alfabeto
o amor é uma ostra
a boca do metro revelou-me
histórias devastadoras
a canção gravada numa cassete BASF
percorrida por corpos que se entregam
corresponde a uma viagem
num tempo sem início
num tempo sem fim
"Morríamos juntos"
suspendendo o ser
antecedendo o nó
passámos às rochas do Guincho
na tentação do desequilíbrio
os faróis dos automóveis batiam-nos
a saia branca e vermelha
a
experimentar furiosamente
(a ilusão de)
um
tempo sem fim
XXVI
a chuva preenchia o espaço todo
uma intuição líquida
o Allan Poe fotografado por Brady
lenço enrolado ao pescoço
a forma do nariz sobre o bigode
as olheiras
descobri ao fotografar-me
o meu
segundo nascimento
vingar o que perdi
XXVII
a mudança de casa é uma forma de cicatrizar
por milagre
a saudade germina nesse movimento
Destino: a palavra
cai
em si
clarão
perseguimo-lo como uma luz violenta
triste shadda
um papagaio que fazia batota
uma bela flor de mil pétalas
caminhava para assaltar a minha Tróia
uma
catapulta
cara a cara com a esfinge de Gizé
pernas vergadas
um parafuso
tronco solto
folha de
papel vegetal
uma clarabóia dos diabos
dois abrolhos entre amores proibidos
XXVIII
eu retirava a minha máscara
a senhora retirava a sua
ficávamos nus
um na frente do outro
" por aqui?"
um rio de paz
com tanta fé no olhar
no meio do frenesim
XXIX
ela tirou o pé do sapato
fiquei a devorar o tarso
as linhas de cada dedo
a melodia do metatarso
levantava a curva do calcanhar
acariciava o outro lado do mundo
a luz violeta-lilás
inundou com raro brilho
o
tornozelo
a pele dava a ver
as artérias
rios secretos
lagoas interiores
falanges ingeridas uma a uma
água da fonte
de Castália de Delfos
pensar nos nervos
do dorso
daquele pé
XXX
E o fim da tarde fez-se noite
já não nos bastava o gás ou a queda
livre
procurávamos o abismo
as falésias
o limite
"morrer
juntos"
os braços guindastes soberbos
um dervixe
XXXI
tão bem construída
a minha personagem
entre quimeras e teatro barato
com as maquilhagens a desfazerem-se
na ficha técnica
montagem alternada
no grande plano
o rosto imobiliza a luz
um cachecol vermelho
XXXII
do baú saiu
mola invisível
aquele
suspiro
faúlhas a brilhar na escuridão
um
lacinho
gatinhos amarelos a fumar boquilha
material de graxa
a
ramagem de alecrim
as
nossas florestas negras
o
perfume da saia rodada
XXXIII
a fera estava à beira do rio para dar vazão aos instintos
o seu transe
através dos ramos da buganvília
como dois macacos felizes
era íngreme a nossa voz
numa manhã de cata-ventos
o ar salpicado de tinta vermelha, azul e amarela
XXXIV
como parte do meu corpo
uma
espuma a desfazer-se
pingos de sangue sobre o gesso
luz na penumbra gelada
um fado em convulsão silenciosa
num café virado para o rio
a
tarde entrou pela água
a cidade deslizou
revirando raízes
toda a cidade abatia diante de nós
o amor é uma dissolução
XXXV
fi-la sorrir como uma bruxa
ouvi-a respirar
a intensidade aumentava
uma pausa
o ritmo decrescia
ponte entre a
inspiração e a expiração
deitar-me naquele fôlego
as estrelas cresciam no céu
cada vez mais Poe
fado profundo
um pato negro de sentinela
XXXVI
as nuvens enclausuravam a cidade
os ventos contrários ateavam a superfície
sobrava o meu corpo
resíduo da noite
marinheiro de chapéu
o leiteiro quebrou este limbo
os meninos encheram o parque infantil
a caixa de areia da noite
um cometa retangular
o corpo a enrolar-se
nos círculos de Kandinsky
com o cigarro na boca
com o mapa da existência mais
vazio
XXXVII
um pinguim das Galápagos
rematava as palavras
contra a escuridão
as cegonhas tinham desaparecido
um réptil sem cabeça
a olhar uma das suas cidades
aéreas
o menino ginete encheu-se de livros
fragmentos marcados a vermelho
"Gnaisse"
um tratado por revelar
XXXVIII
na carcaça do Fiat 600
cresceu um arbusto onde se rasgaram as memórias
o relógio da igreja permanece estático
um tempo que
pastoreia
o breviário da
voz
a incandescência
aquela parte da vida
arrebatamento
bastará espreitar pelo buraquinho da porta
os dois juntos
nalguma parte do mundo
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